“Ladrões de Beleza” de Pascal Brückner (Difel)
“Uma noite sentei a Beleza nos meus joelhos – E achei-a amarga. – e insultei-a.”
Arthur Rimbaud
Une saison en enfer
Une saison en enfer pode ser a descrição espacio-temporal adequada à acção deste romance, do autor do best-seller Lua-de-Fel. No inferno gelado dos Alpes, na fronteira franco-suíça, esconde-se uma quinta chamada de “O Feneiro” – local onde o feno é posto a secar – onde a Beleza murcha, estiola por falta de cuidados de afecto, mimo. Segundo a lógica presente no romance, a Beleza quando não é amada, está condenada a morrer, por deixar de ter consciência do fascínio que exerce nos outros.
A idolatria da Beleza associada à juventude, por parte dos donos da quinta situada no Monte do Jura – um dos locais mais inacessíveis e inóspitos dos Alpes –, revela naquelas personagens, um bloqueio relativo ao respectivo amadurecimento psíquico, motivado por uma deficiente construção quer do Ego quer do superego.
Este bloqueio em relação ao amadurecimento psíquico, tem a ver com a não aceitação do envelhecimento e consequentes alterações morfológicas que o processo implica. Isto desencadeia a obsessão primeiro, pela tentativa de conservação a todo o custo do aspecto que tiveram durante a juventude e, posteriormente, pela destruição da beleza dos outros que, para eles se torna ofensiva.
Estamos a falar de uma das pulsões mais recalcadas que emanam do inconsciente humano, por não ser socialmente aceitável e que é a raiz de alguns dos crimes mais cruéis perpetrados por seres humanos psicóticos.
Neste casal, a psicose evolui com o desfasamento entre o amadurecimento físico e psíquico. Contudo, a raiz desta distorção da personalidade é anterior a este desfasamento, ocorrendo ainda na infância, por volta dos cinco anos, altura em que se constrói o superego (a noção de respeito pelos outros). Este, em personalidades sociopatas, como é o caso, pura e simplesmente não existe, devido a uma baixíssima tolerância em relação à frustração, que impede que o superego se forme.
O casal Jérome e Francesca Steiner revela já, desde a época em que eram jovens e belos, um certo cinismo como parte integrante e fundamental da sua personalidade base, que comporta uma correspondente incapacidade de se ligarem afectivamente aos belos seres que admiram. Limitam-se, assim, a usufruir do seu encanto na tentativa de tentar absorvê-lo por um processo semelhante à osmose. Ambos são dotados de um narcisismo patológico que leva a que, quando deixam de ter motivos para se admirarem fisicamente, vendo-se, ao mesmo tempo, incapazes de exercer o poder nos outros através da sedução, passam a odiar visceralmente os seres belos, pelo medo de por eles serem subjugados.
Para eles, todas as criaturas que possuem o magnetismo, a capacidade para enfeitiçar os outros, despertam neles todo um leque de emoções negativas: o ódio, o despeito, a inveja, que acabam por fazer germinar o desejo de destruição.
A lógica que defende este tipo de atitude é altamente distorcida e tortuosa e, apesar de os argumentos apresentados fazerem, aparentemente, sentido, a argumentação não pode ser mais falaciosa porque apoiada em falsos silogismos: são utilizados frequentemente a racionalização (atribuição de um motivo impessoal para justificar uma dada atitude que é, na realidade, despoletada pela vertente emocional negativa que é ocultada) e a sublimação (atribuição de um objectivo socialmente aceitável para justificar uma acção socialmente condenável) como mecanismos de defesa do ego.
«Os seres belos, homens ou mulheres, são deuses que desceram até nós e que troçam de nós com a sua perfeição. Por onde passam semeiam a divisão, a infelicidade (…) A beleza humana é a injustiça por excelência. Só com o seu aspecto, alguns seres desvalorizam-nos, suprimem-nos do mundo dos vivos».
O romance desenvolve-se através de duas narrativas que se interceptam.
A primeira é a de Benjamim e de Hélène, contada pelo primeiro, um escritor medíocre, que se dedica a plagiar os grandes mestres. Hélène, a Bela, é a sua fada-madrinha que está decidida a fazer de Benjamim um escritor de sucesso. Hélène é, simultaneamente, o seu passaporte para a fortuna e para a notoriedade. O preço a pagar é a adoração incondicional da sua musa. Infelizmente para além de um sentimento crónico de misoginia, Benjamim despreza-se em demasia pela sua vulgaridade, o que o impede de apreciar verdadeiramente quem o estima. A gratidão é a forma mais rápida de matar o amor. É talvez por essa razão que Benjamim se deixa influenciar pelo discurso sofista e enganador dos Steiner quando Hélène se torna a presa do casal psicopata.
A segunda narrativa é levada a cabo por Mathilde, uma psicanalista, já vergada peso dos problemas dos outros ao que se juntam aos seus próprios conflitos pessoais. Mathilde revela, no seu discurso, sintomas de depressão, um cansaço extremo relativo à sua profissão, motivado pela instabilidade emocional de uma relação insatisfatória e pela solidão.
Jovem e medianamente bela, amante de um actor medíocre, um pedante sexual cujo principal objectivo numa relação é o de evitar todos os clichés afectivos e sexuais. Ferdinand, o namorado, parece estar destinado a transformar-se noutro Jérome Steiner.
A história de Mathilde cruza-se com a de Benjamim e Hélène no momento em que aquele surge no hospital psiquiátrico como cliente, atormentado pela culpa e pelo remorso. Decide então confiar a sua história a Mathilde…
Ladrões de Beleza é um livro que fala da perversão do ser humano quando motivado quer pela inveja quer pela falta de auto-estima. Benjamim e Raymond – o anão mal amado, criado dos Steiner – são duas personagens que mostram até que ponto uma personalidade frágil pode ser subjugada pela sedução de um discurso que alimente as suas próprias fraquezas.
Há em Ladrões de Beleza uma intertextualidade com o best- seller O Perfume de Patrick Süskind, no que toca à tentativa de apropriação e extracção da beleza alheia. O ponto de divergência, em relação a Süskind, reside na explicação dos motivos que levam a tal acto. Enquanto que a tónica do discurso no livro de O Perfume é extremamente sensorial apelando para as sensações olfactivas, a tonalidade do discurso de Brückner é sobretudo de cariz racional e filosófico.
Um livro intrigante.
Onde o suspense está presente até ao último parágrafo.
Cláudia de Sousa Dias
Arthur Rimbaud
Une saison en enfer
Une saison en enfer pode ser a descrição espacio-temporal adequada à acção deste romance, do autor do best-seller Lua-de-Fel. No inferno gelado dos Alpes, na fronteira franco-suíça, esconde-se uma quinta chamada de “O Feneiro” – local onde o feno é posto a secar – onde a Beleza murcha, estiola por falta de cuidados de afecto, mimo. Segundo a lógica presente no romance, a Beleza quando não é amada, está condenada a morrer, por deixar de ter consciência do fascínio que exerce nos outros.
A idolatria da Beleza associada à juventude, por parte dos donos da quinta situada no Monte do Jura – um dos locais mais inacessíveis e inóspitos dos Alpes –, revela naquelas personagens, um bloqueio relativo ao respectivo amadurecimento psíquico, motivado por uma deficiente construção quer do Ego quer do superego.
Este bloqueio em relação ao amadurecimento psíquico, tem a ver com a não aceitação do envelhecimento e consequentes alterações morfológicas que o processo implica. Isto desencadeia a obsessão primeiro, pela tentativa de conservação a todo o custo do aspecto que tiveram durante a juventude e, posteriormente, pela destruição da beleza dos outros que, para eles se torna ofensiva.
Estamos a falar de uma das pulsões mais recalcadas que emanam do inconsciente humano, por não ser socialmente aceitável e que é a raiz de alguns dos crimes mais cruéis perpetrados por seres humanos psicóticos.
Neste casal, a psicose evolui com o desfasamento entre o amadurecimento físico e psíquico. Contudo, a raiz desta distorção da personalidade é anterior a este desfasamento, ocorrendo ainda na infância, por volta dos cinco anos, altura em que se constrói o superego (a noção de respeito pelos outros). Este, em personalidades sociopatas, como é o caso, pura e simplesmente não existe, devido a uma baixíssima tolerância em relação à frustração, que impede que o superego se forme.
O casal Jérome e Francesca Steiner revela já, desde a época em que eram jovens e belos, um certo cinismo como parte integrante e fundamental da sua personalidade base, que comporta uma correspondente incapacidade de se ligarem afectivamente aos belos seres que admiram. Limitam-se, assim, a usufruir do seu encanto na tentativa de tentar absorvê-lo por um processo semelhante à osmose. Ambos são dotados de um narcisismo patológico que leva a que, quando deixam de ter motivos para se admirarem fisicamente, vendo-se, ao mesmo tempo, incapazes de exercer o poder nos outros através da sedução, passam a odiar visceralmente os seres belos, pelo medo de por eles serem subjugados.
Para eles, todas as criaturas que possuem o magnetismo, a capacidade para enfeitiçar os outros, despertam neles todo um leque de emoções negativas: o ódio, o despeito, a inveja, que acabam por fazer germinar o desejo de destruição.
A lógica que defende este tipo de atitude é altamente distorcida e tortuosa e, apesar de os argumentos apresentados fazerem, aparentemente, sentido, a argumentação não pode ser mais falaciosa porque apoiada em falsos silogismos: são utilizados frequentemente a racionalização (atribuição de um motivo impessoal para justificar uma dada atitude que é, na realidade, despoletada pela vertente emocional negativa que é ocultada) e a sublimação (atribuição de um objectivo socialmente aceitável para justificar uma acção socialmente condenável) como mecanismos de defesa do ego.
«Os seres belos, homens ou mulheres, são deuses que desceram até nós e que troçam de nós com a sua perfeição. Por onde passam semeiam a divisão, a infelicidade (…) A beleza humana é a injustiça por excelência. Só com o seu aspecto, alguns seres desvalorizam-nos, suprimem-nos do mundo dos vivos».
O romance desenvolve-se através de duas narrativas que se interceptam.
A primeira é a de Benjamim e de Hélène, contada pelo primeiro, um escritor medíocre, que se dedica a plagiar os grandes mestres. Hélène, a Bela, é a sua fada-madrinha que está decidida a fazer de Benjamim um escritor de sucesso. Hélène é, simultaneamente, o seu passaporte para a fortuna e para a notoriedade. O preço a pagar é a adoração incondicional da sua musa. Infelizmente para além de um sentimento crónico de misoginia, Benjamim despreza-se em demasia pela sua vulgaridade, o que o impede de apreciar verdadeiramente quem o estima. A gratidão é a forma mais rápida de matar o amor. É talvez por essa razão que Benjamim se deixa influenciar pelo discurso sofista e enganador dos Steiner quando Hélène se torna a presa do casal psicopata.
A segunda narrativa é levada a cabo por Mathilde, uma psicanalista, já vergada peso dos problemas dos outros ao que se juntam aos seus próprios conflitos pessoais. Mathilde revela, no seu discurso, sintomas de depressão, um cansaço extremo relativo à sua profissão, motivado pela instabilidade emocional de uma relação insatisfatória e pela solidão.
Jovem e medianamente bela, amante de um actor medíocre, um pedante sexual cujo principal objectivo numa relação é o de evitar todos os clichés afectivos e sexuais. Ferdinand, o namorado, parece estar destinado a transformar-se noutro Jérome Steiner.
A história de Mathilde cruza-se com a de Benjamim e Hélène no momento em que aquele surge no hospital psiquiátrico como cliente, atormentado pela culpa e pelo remorso. Decide então confiar a sua história a Mathilde…
Ladrões de Beleza é um livro que fala da perversão do ser humano quando motivado quer pela inveja quer pela falta de auto-estima. Benjamim e Raymond – o anão mal amado, criado dos Steiner – são duas personagens que mostram até que ponto uma personalidade frágil pode ser subjugada pela sedução de um discurso que alimente as suas próprias fraquezas.
Há em Ladrões de Beleza uma intertextualidade com o best- seller O Perfume de Patrick Süskind, no que toca à tentativa de apropriação e extracção da beleza alheia. O ponto de divergência, em relação a Süskind, reside na explicação dos motivos que levam a tal acto. Enquanto que a tónica do discurso no livro de O Perfume é extremamente sensorial apelando para as sensações olfactivas, a tonalidade do discurso de Brückner é sobretudo de cariz racional e filosófico.
Um livro intrigante.
Onde o suspense está presente até ao último parágrafo.
Cláudia de Sousa Dias