“O Mandarim” de Eça de Queirós (Edições Expresso; Planeta DeAgostini)
Dentre a vasta produção literária de Eça de Queirós, os contos são aquilo que mais pretende ilustrar determinadas características de alguns tipos sociais ou estereótipos da época. A esta intenção junta-se a força da alegoria que pretende dar uma orientação ética à semelhança das fábulas de La Fontaine e Esopo.
É nesta categoria que se enquadra o conto O Mandarim escrito após a viagem do Autor às terras do sol nascente. Nesta obra, Eça dá largas à fantasia que é, apesar de tudo, filtrada pelo racionalismo e sentido crítico do Autor.
Trata-se de uma fábula em tudo semelhante ao Fausto de Goethe na qual Teodoro, um funcionário público de escassos rendimentos, recebe a visita de um estranho e misterioso personagem semelhante a um Mefistófeles travestido de dândi. A sua função no conto é a de tentar, seduzir. O objectivo é mostrar o processo de corrupção inerente à natureza humana. Isto é, saber qual é o preço da integridade de um homem. Melhor dizendo, até que ponto podem resistir os valores que representam o respeito pela integridade física e propriedade alheia. Trata-se de um duelo entre o Desejo e o Dever. Ou, em linguagem freudiana, entre Ego e Superego. Duas forças opostas que se digladiam na mente da personagem principal.
Para o Autor, por aquilo que se pode depreender nas entrelinhas, toda a alma tem o seu preço. A natureza humana é, naturalmente, corruptível. O cepticismo de Eça vai de encontro à convicção de muitos estudiosos do comportamento e dos processos mentais em geral, para os quais mesmo as mentes mais racionais ou mais altruístas tendem, por vezes, a procurar a solução mais fácil e imediata apesar de ser muitas vezes contrária à lógica ou ao raciocínio mais linear. Por exemplo: quantas vezes não nos damos ao trabalho de separar o lixo em casa, apesar de sabermos as consequências negativas em termos de impacto ambiental, apenas porque é mais cómodo?
No caso de Teodoro, para agarrar a sorte, basta-lhe esboçar um gesto aparentemente inofensivo cujas consequências não estão à vista...A tentação é demasiado grande. Mesmo para os padrões do século XXI, cento e seis mil contos é uma fortuna considerável. No século XIX, é o equivalente ao património de um sátrapa oriental.
O peso das consequências do seu acto só será sentido a posteriori, quando já é demasiado tarde para voltar atrás.
A construção da narrativa foi elaborada em duas versões: a primeira, em forma de folhetim, foi publicada no Diário de Portugal e a segunda destinava-se à Revue Universelle. Esta última é composta por capítulo mais longos – menos seccionada ao contrário do que acontece na versão folhetinesca – e alguns parágrafos são introduzidos com o objectivo de proporcionar aos leitores descrições mais detalhadas, de modo a permitir-lhes visualizar as situações com maior nitidez. O sentimentalismo e moralismo na versão destinada ao Diário de Portugal são atenuados. Alguns substantivos abstractos deixam de ser representados por maiúsculas retirando-lhe o valor alegórico.
São, por outro lado, realçados valores relacionados com uma ética mais universal de teor kantiano. Esta versão aperfeiçoada de O Mandarim foi adaptada a um público-alvo tendencialmente laico onde é destacado como virtude de homem do seu tempo o agnosticismo de Teodoro que, no Diário de Portugal aparece como um atributo extremamente mal visto pela opinião pública.
As personagens são deliciosamente cómicas como é típico nas sátiras queirosianas.
O funcionário público Teodoro é fisicamente pouco apelativo, meticuloso, de hábitos rotineiros. Aspira a uma vida principesca povoada de luxo, opulência e sensualidade desenfreada.
D.Augusta, a venal dona da pensão onde habita Teodoro enquanto pobre, é uma viúva já entrada na idade, mulher de dois amantes, e cuja maior prova de afecto ao seu favorito é a de usar “o dedo mínimo branquinho e papudo (...),” para “sulcar-lhe as repas lustrosas com o pentezinho dos bichos...”.
Vladimira, a bela e sedutora esposa do general russo que o novo milionário conhece na sua viagem ao extremo oriente torna-se a sua amante intelectual com quem este discute a situação geopolítica da Europa, a obra de Zola, o niilismo, a beleza de Sarah Bernhardt. Eça nunca deixará de associar a mulher intelectual às cocottes pela facilidade com que umas e outras possuem em se integrar no mundo hermético dos temas de conversa considerados como exclusivos do mundo masculino.
É assim que a generala Vladimira surge como uma cortesã de luxo disfarçada de respeitável senhora da alta sociedade, seduzindo envolta num vestido de seda cor de folha morta, à semelhança da sensualmente opulenta Condessa de Gouvarinho em Os Maias e cativando pela palavra como a carismática esposa do doutor Fradinho em O Conde de Abranhos.
Eça é igualmente pródigo em demonstrar, a partir da altura em que a sorte bate à porta de Teodoro, a forma como a civilização ocidental se rende ao culto do deus do dinheiro. É depois de enriquecer brutalmente que o ex-funcionário público conhece o poder do vil metal que lhe abre as portas para tudo o que antes lhe era inacessível. Inclusive a hipocrisia e a bajulação. É depois de enriquecer que Teodoro conhece o sabor da traição pela mão de uma Cândida criatura semelhante à rosa inglesa de Alexandria em A Relíquia.
O cinismo passa a fazer parte da personalidade do novo milionário a par de uma existência sibarita chegando, inclusive, a comparar-se com Tibério ou Heliogábalo nas suas festas à Trimalchion (vide O Satyricon de Fellini).
Apesar de tudo, o protagonista não consegue deixar de pensar nas consequências do seu acto.
Decide então empreender uma viagem até à China – local de origem da sua fortuna – para minimizar as consequências nefastas do seu acto...
É desta formas que vamos empreender uma viagem, pela pena de Eça de Queirós, à terra dos mandarins, com a voz de Teodoro como guia turístico. As paisagens, as cidades, as tradições e costumes, a estratificação social, as condições de vida e as relações com o exterior, são analisadas e descritas com o olhar crítico de um cientista social de espírito positivista.
O Mandarin é uma das mais acutilantes críticas sociais de um autor que mostra a burguesia e a nobreza como as classes sociais que se empenham em mostrar à plebe carenciada, “um Paraíso distante”, “para lhe desviar a atenção dos seus cofres repletos e das suas searas” ou denunciar a pretensão e ignorância dos políticos e geoestrategas portugueses que acreditavam poder varrer a China apenas com cinquenta homens, numa altura em que o vasto Império da Manchúria importava tecnologia e estratégia militar do exército prussiano!
Mais uma obra de importante reflexão sobre o desenvolvimento do País, da mediocridade intelectual e social que grassava então o Portugal à qual que se alia uma intrigante fábula surrealista com toda a carga alegórica e moralizante a ela associada.
Delicioso e divertidíssimo.
Para desfrutar numa tarde de boa disposição.
Cláudia de Sousa Dias
É nesta categoria que se enquadra o conto O Mandarim escrito após a viagem do Autor às terras do sol nascente. Nesta obra, Eça dá largas à fantasia que é, apesar de tudo, filtrada pelo racionalismo e sentido crítico do Autor.
Trata-se de uma fábula em tudo semelhante ao Fausto de Goethe na qual Teodoro, um funcionário público de escassos rendimentos, recebe a visita de um estranho e misterioso personagem semelhante a um Mefistófeles travestido de dândi. A sua função no conto é a de tentar, seduzir. O objectivo é mostrar o processo de corrupção inerente à natureza humana. Isto é, saber qual é o preço da integridade de um homem. Melhor dizendo, até que ponto podem resistir os valores que representam o respeito pela integridade física e propriedade alheia. Trata-se de um duelo entre o Desejo e o Dever. Ou, em linguagem freudiana, entre Ego e Superego. Duas forças opostas que se digladiam na mente da personagem principal.
Para o Autor, por aquilo que se pode depreender nas entrelinhas, toda a alma tem o seu preço. A natureza humana é, naturalmente, corruptível. O cepticismo de Eça vai de encontro à convicção de muitos estudiosos do comportamento e dos processos mentais em geral, para os quais mesmo as mentes mais racionais ou mais altruístas tendem, por vezes, a procurar a solução mais fácil e imediata apesar de ser muitas vezes contrária à lógica ou ao raciocínio mais linear. Por exemplo: quantas vezes não nos damos ao trabalho de separar o lixo em casa, apesar de sabermos as consequências negativas em termos de impacto ambiental, apenas porque é mais cómodo?
No caso de Teodoro, para agarrar a sorte, basta-lhe esboçar um gesto aparentemente inofensivo cujas consequências não estão à vista...A tentação é demasiado grande. Mesmo para os padrões do século XXI, cento e seis mil contos é uma fortuna considerável. No século XIX, é o equivalente ao património de um sátrapa oriental.
O peso das consequências do seu acto só será sentido a posteriori, quando já é demasiado tarde para voltar atrás.
A construção da narrativa foi elaborada em duas versões: a primeira, em forma de folhetim, foi publicada no Diário de Portugal e a segunda destinava-se à Revue Universelle. Esta última é composta por capítulo mais longos – menos seccionada ao contrário do que acontece na versão folhetinesca – e alguns parágrafos são introduzidos com o objectivo de proporcionar aos leitores descrições mais detalhadas, de modo a permitir-lhes visualizar as situações com maior nitidez. O sentimentalismo e moralismo na versão destinada ao Diário de Portugal são atenuados. Alguns substantivos abstractos deixam de ser representados por maiúsculas retirando-lhe o valor alegórico.
São, por outro lado, realçados valores relacionados com uma ética mais universal de teor kantiano. Esta versão aperfeiçoada de O Mandarim foi adaptada a um público-alvo tendencialmente laico onde é destacado como virtude de homem do seu tempo o agnosticismo de Teodoro que, no Diário de Portugal aparece como um atributo extremamente mal visto pela opinião pública.
As personagens são deliciosamente cómicas como é típico nas sátiras queirosianas.
O funcionário público Teodoro é fisicamente pouco apelativo, meticuloso, de hábitos rotineiros. Aspira a uma vida principesca povoada de luxo, opulência e sensualidade desenfreada.
D.Augusta, a venal dona da pensão onde habita Teodoro enquanto pobre, é uma viúva já entrada na idade, mulher de dois amantes, e cuja maior prova de afecto ao seu favorito é a de usar “o dedo mínimo branquinho e papudo (...),” para “sulcar-lhe as repas lustrosas com o pentezinho dos bichos...”.
Vladimira, a bela e sedutora esposa do general russo que o novo milionário conhece na sua viagem ao extremo oriente torna-se a sua amante intelectual com quem este discute a situação geopolítica da Europa, a obra de Zola, o niilismo, a beleza de Sarah Bernhardt. Eça nunca deixará de associar a mulher intelectual às cocottes pela facilidade com que umas e outras possuem em se integrar no mundo hermético dos temas de conversa considerados como exclusivos do mundo masculino.
É assim que a generala Vladimira surge como uma cortesã de luxo disfarçada de respeitável senhora da alta sociedade, seduzindo envolta num vestido de seda cor de folha morta, à semelhança da sensualmente opulenta Condessa de Gouvarinho em Os Maias e cativando pela palavra como a carismática esposa do doutor Fradinho em O Conde de Abranhos.
Eça é igualmente pródigo em demonstrar, a partir da altura em que a sorte bate à porta de Teodoro, a forma como a civilização ocidental se rende ao culto do deus do dinheiro. É depois de enriquecer brutalmente que o ex-funcionário público conhece o poder do vil metal que lhe abre as portas para tudo o que antes lhe era inacessível. Inclusive a hipocrisia e a bajulação. É depois de enriquecer que Teodoro conhece o sabor da traição pela mão de uma Cândida criatura semelhante à rosa inglesa de Alexandria em A Relíquia.
O cinismo passa a fazer parte da personalidade do novo milionário a par de uma existência sibarita chegando, inclusive, a comparar-se com Tibério ou Heliogábalo nas suas festas à Trimalchion (vide O Satyricon de Fellini).
Apesar de tudo, o protagonista não consegue deixar de pensar nas consequências do seu acto.
Decide então empreender uma viagem até à China – local de origem da sua fortuna – para minimizar as consequências nefastas do seu acto...
É desta formas que vamos empreender uma viagem, pela pena de Eça de Queirós, à terra dos mandarins, com a voz de Teodoro como guia turístico. As paisagens, as cidades, as tradições e costumes, a estratificação social, as condições de vida e as relações com o exterior, são analisadas e descritas com o olhar crítico de um cientista social de espírito positivista.
O Mandarin é uma das mais acutilantes críticas sociais de um autor que mostra a burguesia e a nobreza como as classes sociais que se empenham em mostrar à plebe carenciada, “um Paraíso distante”, “para lhe desviar a atenção dos seus cofres repletos e das suas searas” ou denunciar a pretensão e ignorância dos políticos e geoestrategas portugueses que acreditavam poder varrer a China apenas com cinquenta homens, numa altura em que o vasto Império da Manchúria importava tecnologia e estratégia militar do exército prussiano!
Mais uma obra de importante reflexão sobre o desenvolvimento do País, da mediocridade intelectual e social que grassava então o Portugal à qual que se alia uma intrigante fábula surrealista com toda a carga alegórica e moralizante a ela associada.
Delicioso e divertidíssimo.
Para desfrutar numa tarde de boa disposição.
Cláudia de Sousa Dias