“Alves e Companhia” de Eça de Queirós (Planeta deAgostini)
Uma das mais divertidas sátiras queirosianas que tem por base um tema que é muito caro ao Autor: o adultério.
O protagonista masculino desta divertida comédia é Godofredo da Conceição Alves, responsável por um empreendimento comercial e financeiro de grande sucesso. Bem instalado na vida, casado, próspero de consolidado prestígio social - características que o aproximam bastante do banqueiro Cohen de Os Maias, Godofredo assemelha-se ainda, em muito, ao marido de Madame Bovary de Flaubert. Godofredo Alves é um homem atencioso para com a esposa, provedor – Eça chega mesmo a compará-lo a um pássaro que provê o ninho. Trata-se de uma alma generosa na sua essência, embora dada a acessos de cólera passional.
A protagonista feminina – Ludovina ou Lulu – para além da semelhança com algumas características psicológicas da heroína flaubertiana, apresenta traços físicos e de personalidade comuns com a Raquel de Os Maias – o tédio no casamento que a leva, por um lado, a entusiasmar-se por Machado e, por outro, a uma posterior submissão ao marido, mais por conveniência do que por afecto. Fisicamente, Lulu vai buscar a Raquel a pesada massa de cabelos negros a cair pelas costas, um ar semi-penteado “a sugerir intimidade”. Lulu possui também características de “Genoveva” a mulher fatal de A Tragédia da Rua das Flores, pela sua aparente frivolidade e materialismo. Contudo, Ludovina é mais sensível às dificuldades e desigualdades sociais do que Genoveva. Para compor esta personagem Eça foi, ainda, buscar a imponente estatura de Maria Eduarda para dotar Lulu de “um corpo magnífico, de rainha bárbara”, o porte erecto, “o cabelo ondeado e crespo” e o olhar negro.
Sócios e Rivais
Godofredo Alves e o seu sócio, Machado, têm uma relação muito sui generis. Em termos profissionais, trata-se de uma parceria extremamente bem articulada, com base numa relação de complementaridade. Godofredo, do alto dos seus trinta e sete anos, transmite a imagem de solidez e estabilidade, reforçada pela sua vida de homem casado, habituado a assumir responsabilidades e a honrar compromissos. É, contudo, um homem indolente, com uma faceta romântica, escondida no cantinho mais secreto de uma mente sonhadora.
Já Machado, o sócio, é um jovem e belo mancebo de vinte e seis anos, que incarna o dinamismo, a simpatia, a capacidade de decisão e a visão estratégica para o negócio, aliada a uma distinção que lhe confere o magnetismo necessário para atrair clientes. É um jovem muito atraente, com um aspecto que chama a atenção: loiro, elegante, apreciador de aventuras clandestinas que, tal como a fêmea do cuco, gosta de deixar o ovo no ninho alheio. Neste caso, um macho humano que gosta de deixar os seus espermatozóides em ninho alheio...ou, para sermos mais exactos, em vaginas casadas.
Em termos pessoais, ambos os sócios são íntimos sem, no entanto, haver verdadeira camaradagem masculina entre eles. Machado nunca comenta com Godofredo acerca das suas aventuras íntimas, embora este lhas adivinhe pelas suas atitudes e saídas misteriosas, conjecturas que lhe são posteriormente confirmadas por terceiros. Apesar disso, as famílias de ambos conhecem-se, o jovem Machado é presença assídua na casa de Godofredo, frequentando jantares e serões na companhia de Lulu, sendo o seu comportamento, pelo menos na presença do marido, socialmente correcto para com ela. E o de Lulu, o de uma autêntica mulher de César, isto é, acima de qualquer suspeita.
O tema da obra é recorrente em Eça de Queirós repetindo-se aqui, numa declinação de um triângulo amoroso já presente em O Primo Basílio, Os Maias e até em A tragédia da rua das Flores. Desta vez, porém, o Autor constrói uma divertida sátira, com o objectivo de reduzir o orgulho masculino e a falsa moralidade burguesa a pó. Um contraste gritante com o pesado drama de O Primo Basílio, uma obra que apesar de versar sobre o mesmo tema, é destinada a sensibilizar a consciência colectiva dos portugueses, ao invés de troçar da moral e dos pseudo bons costumes como o faz – e fá-lo brilhantemente – em Alves e Companhia. Uma obra com algo de Moliére, muito mais desenvolvida e cheia de pormenores burlescos do que o episódio de que envolve Ega e o casal Cohen em Os Maias e, simultaneamente, muito menos inocente do que a paixão entre Vítor e a esposa do pintor em A Tragédia da Rua das Flores.
Ainda em relação à crítica social, outro tema invariavelmente tratado por Eça de Queirós em toda a sua obra, é notório o ataque à burocracia no funcionalismo público, concretamente no Ministério da Marinha – logo na cena inicial –, ao factor C como “desburocratizador” e à ausência de espírito crítico, dentro daquela categoria social, e à pobreza intelectual dos mesmos. Eça execrava, realmente, a pobreza de espírito principalmente quando esta se manifestava sob a forma de pensamento crítico.
A Pseudo-Moral
Na sequência do facto de Godofredo surpreender a mulher com o sócio, verifica-se uma série de consequências surpreendentes. Para além da reacção emocional clássica, ao encontrar a mulher nos braços do sócio – um dos momentos mais emocionantes do romance – um previsível acesso de fúria, que se torna pouco dignificante, com uma acentuada componente de ridículo, em virtude de Godofredo tropeçar num tapete ao precipitar-se para os amantes dando-lhes, inadvertidamente, a oportunidade a um de fugir e a outra de se trancar a salvo no quarto; a tentativa de forçar a porta torna a situação ainda mais ridícula para Godofredo, que está desesperado para aplicar o “correctivo” à mulher. Esta balbucia algumas tentativas patéticas de justificação e atenuantes sem qualquer tipo de fundamento. Sobretudo quando as provas se amontoam à sua volta de forma irrefutável...Trata-se , sem dúvida, de uma das passagens mais tragicómicas do romance.
A ilustrar o acesso de passionalidade, tipicamente lusitano, em relação a este tipo de situação, Godofredo mostra o desejo de bater-se com o rival para “lavar a honra”, apesar da inabilidade manifesta no manejo de armas, ao contrário do que sucede com Machado.
Passado o momento de cólera e depois de enviar a esposa para casa do pai, outro tipo de preocupações começa a assolar a mente do empresário. A sobrepor-se à moral, o medo do ridículo leva-o a enviar a mulher, juntamente com o sogro e a cunhada, para uma estadia à beira-mar, fora da cidade para, aparentemente, tratar de um problema de saúde.
Esse mesmo medo torna-se no seu ponto vulnerável, expondo-o à chantagem do sogro que começa a sangrá-lo perigosamente nas suas finanças. A própria criada de Godofredo aproveita-se da situação para negligenciar o trabalho, sabendo que o patrão para conservar o seu silêncio em relação a tão embaraçoso assunto, não a pode despedir...
A separação do casal leva, desta forma, ao caos doméstico, com a criada a comportar-se, de certa forma, como a execrável Juliana de O Primo Basílio sem chegar, contudo, a fazer chantagem abertamente.
Destaca-se o papel magistral dos padrinhos do duelo, que actuam como dissuasores e dissipadores da tragédia. São os grandes responsáveis pelo lado cómico e burlesco do romance, ao usar magistralmente da arte do sofisma para conduzir à desculpabilização do par “transgressor”, à reconciliação dos sócios e ao regresso ao lar da esposa adúltera.
Principalmente porque, enquanto consolam Godofredo, comentam entre si os pormenores picantes das suas próprias aventuras com mulheres casadas.
O que, aqui, Eça pretende denunciar é exactamente a sobreposição de motivos menos nobres para sufocar um escândalo que seria condenado pela moral da época.
Em relação a Lulu, os motivos que a movem e a impelem a regressar ao lar, também não são dos mais altruístas ou genuínos. Também ela mascara as suas verdadeiras motivações. Lulu começa por sentir, em primeiro lugar, as saudades do conforto e do luxo em casa do marido, dos presentes que lhe eram regularmente oferecidos e não propriamente do afecto ou paixão que o marido lhe despertava.
A reconciliação de Godofredo Alves com a esposa reveste-se assim, de carácter prático onde se nota um certo alívio, pelo regresso da ordem doméstica com a chegada da dona da casa.
A evolução da vida destas três personagens mostra uma certa acomodação onde o bem-estar financeiro como que engole outras pretensões relacionadas com aventuras escaldantes, no caso de Machado, ou a preocupação com a honra ou a moral, no caso de Godofredo. As personagens esforçam-se por manter uma convivência cordial, chegando até a haver entreajuda e convívio – depois do casamento de Machado. Nota-se o sacrifício dos grandes amores a uma vida anódina, mas onde há em contrapartida, suficiente bem-estar material pode ser facilmente confundido com felicidade ou realização pessoal.
Não muito diferente da vida de muitos casais em pleno século XXI.
Mais uma obra brilhante do Eça intemporal a agitar a consciência dos portugueses.
Que se lê de um só fôlego.
Ou melhor dizendo, entre duas gargalhadas.
Cláudia de Sousa Dias
O protagonista masculino desta divertida comédia é Godofredo da Conceição Alves, responsável por um empreendimento comercial e financeiro de grande sucesso. Bem instalado na vida, casado, próspero de consolidado prestígio social - características que o aproximam bastante do banqueiro Cohen de Os Maias, Godofredo assemelha-se ainda, em muito, ao marido de Madame Bovary de Flaubert. Godofredo Alves é um homem atencioso para com a esposa, provedor – Eça chega mesmo a compará-lo a um pássaro que provê o ninho. Trata-se de uma alma generosa na sua essência, embora dada a acessos de cólera passional.
A protagonista feminina – Ludovina ou Lulu – para além da semelhança com algumas características psicológicas da heroína flaubertiana, apresenta traços físicos e de personalidade comuns com a Raquel de Os Maias – o tédio no casamento que a leva, por um lado, a entusiasmar-se por Machado e, por outro, a uma posterior submissão ao marido, mais por conveniência do que por afecto. Fisicamente, Lulu vai buscar a Raquel a pesada massa de cabelos negros a cair pelas costas, um ar semi-penteado “a sugerir intimidade”. Lulu possui também características de “Genoveva” a mulher fatal de A Tragédia da Rua das Flores, pela sua aparente frivolidade e materialismo. Contudo, Ludovina é mais sensível às dificuldades e desigualdades sociais do que Genoveva. Para compor esta personagem Eça foi, ainda, buscar a imponente estatura de Maria Eduarda para dotar Lulu de “um corpo magnífico, de rainha bárbara”, o porte erecto, “o cabelo ondeado e crespo” e o olhar negro.
Sócios e Rivais
Godofredo Alves e o seu sócio, Machado, têm uma relação muito sui generis. Em termos profissionais, trata-se de uma parceria extremamente bem articulada, com base numa relação de complementaridade. Godofredo, do alto dos seus trinta e sete anos, transmite a imagem de solidez e estabilidade, reforçada pela sua vida de homem casado, habituado a assumir responsabilidades e a honrar compromissos. É, contudo, um homem indolente, com uma faceta romântica, escondida no cantinho mais secreto de uma mente sonhadora.
Já Machado, o sócio, é um jovem e belo mancebo de vinte e seis anos, que incarna o dinamismo, a simpatia, a capacidade de decisão e a visão estratégica para o negócio, aliada a uma distinção que lhe confere o magnetismo necessário para atrair clientes. É um jovem muito atraente, com um aspecto que chama a atenção: loiro, elegante, apreciador de aventuras clandestinas que, tal como a fêmea do cuco, gosta de deixar o ovo no ninho alheio. Neste caso, um macho humano que gosta de deixar os seus espermatozóides em ninho alheio...ou, para sermos mais exactos, em vaginas casadas.
Em termos pessoais, ambos os sócios são íntimos sem, no entanto, haver verdadeira camaradagem masculina entre eles. Machado nunca comenta com Godofredo acerca das suas aventuras íntimas, embora este lhas adivinhe pelas suas atitudes e saídas misteriosas, conjecturas que lhe são posteriormente confirmadas por terceiros. Apesar disso, as famílias de ambos conhecem-se, o jovem Machado é presença assídua na casa de Godofredo, frequentando jantares e serões na companhia de Lulu, sendo o seu comportamento, pelo menos na presença do marido, socialmente correcto para com ela. E o de Lulu, o de uma autêntica mulher de César, isto é, acima de qualquer suspeita.
O tema da obra é recorrente em Eça de Queirós repetindo-se aqui, numa declinação de um triângulo amoroso já presente em O Primo Basílio, Os Maias e até em A tragédia da rua das Flores. Desta vez, porém, o Autor constrói uma divertida sátira, com o objectivo de reduzir o orgulho masculino e a falsa moralidade burguesa a pó. Um contraste gritante com o pesado drama de O Primo Basílio, uma obra que apesar de versar sobre o mesmo tema, é destinada a sensibilizar a consciência colectiva dos portugueses, ao invés de troçar da moral e dos pseudo bons costumes como o faz – e fá-lo brilhantemente – em Alves e Companhia. Uma obra com algo de Moliére, muito mais desenvolvida e cheia de pormenores burlescos do que o episódio de que envolve Ega e o casal Cohen em Os Maias e, simultaneamente, muito menos inocente do que a paixão entre Vítor e a esposa do pintor em A Tragédia da Rua das Flores.
Ainda em relação à crítica social, outro tema invariavelmente tratado por Eça de Queirós em toda a sua obra, é notório o ataque à burocracia no funcionalismo público, concretamente no Ministério da Marinha – logo na cena inicial –, ao factor C como “desburocratizador” e à ausência de espírito crítico, dentro daquela categoria social, e à pobreza intelectual dos mesmos. Eça execrava, realmente, a pobreza de espírito principalmente quando esta se manifestava sob a forma de pensamento crítico.
A Pseudo-Moral
Na sequência do facto de Godofredo surpreender a mulher com o sócio, verifica-se uma série de consequências surpreendentes. Para além da reacção emocional clássica, ao encontrar a mulher nos braços do sócio – um dos momentos mais emocionantes do romance – um previsível acesso de fúria, que se torna pouco dignificante, com uma acentuada componente de ridículo, em virtude de Godofredo tropeçar num tapete ao precipitar-se para os amantes dando-lhes, inadvertidamente, a oportunidade a um de fugir e a outra de se trancar a salvo no quarto; a tentativa de forçar a porta torna a situação ainda mais ridícula para Godofredo, que está desesperado para aplicar o “correctivo” à mulher. Esta balbucia algumas tentativas patéticas de justificação e atenuantes sem qualquer tipo de fundamento. Sobretudo quando as provas se amontoam à sua volta de forma irrefutável...Trata-se , sem dúvida, de uma das passagens mais tragicómicas do romance.
A ilustrar o acesso de passionalidade, tipicamente lusitano, em relação a este tipo de situação, Godofredo mostra o desejo de bater-se com o rival para “lavar a honra”, apesar da inabilidade manifesta no manejo de armas, ao contrário do que sucede com Machado.
Passado o momento de cólera e depois de enviar a esposa para casa do pai, outro tipo de preocupações começa a assolar a mente do empresário. A sobrepor-se à moral, o medo do ridículo leva-o a enviar a mulher, juntamente com o sogro e a cunhada, para uma estadia à beira-mar, fora da cidade para, aparentemente, tratar de um problema de saúde.
Esse mesmo medo torna-se no seu ponto vulnerável, expondo-o à chantagem do sogro que começa a sangrá-lo perigosamente nas suas finanças. A própria criada de Godofredo aproveita-se da situação para negligenciar o trabalho, sabendo que o patrão para conservar o seu silêncio em relação a tão embaraçoso assunto, não a pode despedir...
A separação do casal leva, desta forma, ao caos doméstico, com a criada a comportar-se, de certa forma, como a execrável Juliana de O Primo Basílio sem chegar, contudo, a fazer chantagem abertamente.
Destaca-se o papel magistral dos padrinhos do duelo, que actuam como dissuasores e dissipadores da tragédia. São os grandes responsáveis pelo lado cómico e burlesco do romance, ao usar magistralmente da arte do sofisma para conduzir à desculpabilização do par “transgressor”, à reconciliação dos sócios e ao regresso ao lar da esposa adúltera.
Principalmente porque, enquanto consolam Godofredo, comentam entre si os pormenores picantes das suas próprias aventuras com mulheres casadas.
O que, aqui, Eça pretende denunciar é exactamente a sobreposição de motivos menos nobres para sufocar um escândalo que seria condenado pela moral da época.
Em relação a Lulu, os motivos que a movem e a impelem a regressar ao lar, também não são dos mais altruístas ou genuínos. Também ela mascara as suas verdadeiras motivações. Lulu começa por sentir, em primeiro lugar, as saudades do conforto e do luxo em casa do marido, dos presentes que lhe eram regularmente oferecidos e não propriamente do afecto ou paixão que o marido lhe despertava.
A reconciliação de Godofredo Alves com a esposa reveste-se assim, de carácter prático onde se nota um certo alívio, pelo regresso da ordem doméstica com a chegada da dona da casa.
A evolução da vida destas três personagens mostra uma certa acomodação onde o bem-estar financeiro como que engole outras pretensões relacionadas com aventuras escaldantes, no caso de Machado, ou a preocupação com a honra ou a moral, no caso de Godofredo. As personagens esforçam-se por manter uma convivência cordial, chegando até a haver entreajuda e convívio – depois do casamento de Machado. Nota-se o sacrifício dos grandes amores a uma vida anódina, mas onde há em contrapartida, suficiente bem-estar material pode ser facilmente confundido com felicidade ou realização pessoal.
Não muito diferente da vida de muitos casais em pleno século XXI.
Mais uma obra brilhante do Eça intemporal a agitar a consciência dos portugueses.
Que se lê de um só fôlego.
Ou melhor dizendo, entre duas gargalhadas.
Cláudia de Sousa Dias