“O Sorriso de Percival” de Luísa Monteiro (Ausência)
Ana Paula Moreira, Docente da cadeira de Semiótica na Universidade do Algarve, afirma que, nesta obra, a «Autora respira ao tempo do mesmo ou “aquele que é partido pela metade”. Uma escrita que abre a porta para a intertextualidade do Desejo.»
Luísa Monteiro fala-nos, então, do abismo entre pensamento, impulso, desejo e a palavra propriamente dita, escrita ou não-dita. Ou se calhar inter-dita. A Palavra que veste a máscara, que dissimula ou altera o sentido do pensamento original, através de uma estratégia individual de auto-censura, criado inconscientemente (ou não), para não ferir o outro ou, simplesmente adequar-se ao Eu colectivo.
A estrutura da obra desdobra-se em quatro contos inspirados nos últimos momentos de vida de Manuel Teixeira Gomes, António Aleixo, Branquinho da Fonseca e de…um leitor imaginário.
Ao ler a obra fiquei agradavelmente surpreendida ao encontrar algumas crónicas de Pó d’Enraizamento como parte integrante de alguns destes contos de grande beleza, solidão e ousadia a que já nos habituou esta autora de origem minhota, com a sua prosa ácida, temperada pelo sol quente e pela suavidade morna do vento sul vindo do Norte de África.
Os quatro Percivais presentes na obra têm como denominador comum, a procura da metade perdida, do Eu que se reflecte na outra metade de um espelho partido ao meio – na infindável tarefa de encontrar no outro os estilhaços que encaixem nos seus. Que, no fundo, se resume a reunir os dois arquétipos separados – o Ying e o Yang – a metade masculina e feminina, independente do sexo biológico a que se refere.
Percival é, assim, o ser perfeito que reúne as duas metades – os dois arquétipos: masculino e feminino.
No primeiro conto introdutório – O Sorriso de Percival (um poema da metade ) -, a cargo do narrador anónimo, que veste a pele de um viúvo celibatário – um professor que se apaixona por uma aluna, que imagina quase como uma mulher saída da Bíblia, com o maço de livros à cintura como se de uma bilha de água se tratasse. Livros que matam a sede inesgotável – de conhecimento – da jovem a quem ele apelida de Líbia, fazendo lembrar um pouco o romano Catulo, pela forma como o narrador invoca a sua musa.
Destaca-se a deliciosa e terna cumplicidade dos amigos para com a solidão do professor em contraste com o violento sentimento de culpa e auto-censura por parte deste por sentir-se, de certa forma, violar a ética profissional. E também de pena, por sentir-se responsável pelo desaparecimento dos últimos resquícios de infância, na jovem.
A simbologia utilizada em cada conto daria, por si só, para escrever um volume de quatrocentas páginas, tal a profusão de metáforas, personificações, alegorias, sinestesias, encontradas na riquíssima prosa poética de Luísa Monteiro.
A mais significativa e frequente é a simbologia da sinestesia e trocadilho fonético relacionado com a palavra amora – amor a…alguém. Ou a sedução negra do olhar de um pássaro nocturno que canta antes do romper da alvorada – melros ou rouxinóis. Também o girassol é identificado com o amor/paixão que segue a poesia “como se de sol se tratasse”.
A morte crava o ferro na carne do escritor que, até ao último instante, prossegue na demanda do seu Graal – a tal outra metade.
A morte está presente sob o signo cabalístico do número quatro.
Serão, desta forma, quatro os contos que escreve.
Antes disserta, ainda, sobre a natureza do amor: aquele que considera verdadeiro, aquele que não morre –, a identidade ou o amor-próprio. O falso amor é identificado com a necessidade de posse, de apropriação, de anulação da vontade do outro. Aquele que mata e que morre. Destrutivo.
O primeiro conto do narrador-escritor, intitulado Noivos Judeus, é um canto de morte, feito em homenagem a Manuel Teixeira Gomes, no leito de morte que é fotografado pela bela Madame Berg. O quarto é o número 13. Ou seja, a antecâmara da morte – 1+3=4, o número da Morte.
Um conto que é um diálogo entre dois ex-amantes, onde impera a nostalgia.
Já no que respeita ao segundo, trata-se de um monólogo, dedicado aos amigos de Branquinho da Fonseca.
A personagem é uma espécie de dandy, transtornado não se sabe bem se pelo absinto ou pelo ópio, que fala do amor nefasto – “(…) o doce veneno que nos envelhece e nos mata”. A desesperança e a descrença na realidade do Graal. A negação do Paraíso…
Trata-se de O regresso do Pródigo onde o narrador se imagina a regressar a casa para assistir ao seu próprio funeral aproveitando para observar as reacções daqueles que se intitulam seus amigos.
Um discurso onde predomina o sentimento de amargura de um génio incompreendido, onde se nota um pesado agudo ressentimento, resultado da falta de amor. Um texto que se saboreia como um remédio amargo, embora necessário, pela crítica impiedosa mas pertinente face à indiferença.
É a estória de um potencial sibarita, que passou ao lado do vinho da vida, sem chegar a saboreá-lo, pelo ateísmo emocional que professa:
“Sou viúvo de uma viúva, está a ouvir? – De uma viúva? (…) uma dessas lacrimosas, vestidas de luto que nunca ousam cortar o cabelo?
Dessas cheias de noite e de chuva, de caminhar felino e ondulante, com uma tristeza romântica, cheias de melodias e violoncelos graves no bater dos cílios?... Ah, meu amigo, essas viúvas são um luxo (…) de dia, são escorregadias e misteriosas como a noite, mas é de noite que elas revelam o corpo argênteo de lua e nos cegam com os seus relâmpagos tempestuosos de prazer…”
O escritor delira com a consciência alterada por substâncias tóxicas (ou fármacos) nos seus últimos momentos de vida…numa alucinante viagem para aquilo que ele julga ser “um túnel de luz”. Ao fundo…o Graal?
Na estória dedicada a António Aleixo Um Cão não chora, temos uma fábula canina, de ternurentos cães humanizados e de dupla visão. Ou homens dotados de visão canina – duas vezes superior à dos restantes humanos.
Aleixo, o dono de um dos cães, é também um homem partido pela metade: uma criança de olhar ensombrado pelo “tempo ranhoso da ditadura”. E, simultaneamente, um Leviathan, “enorme como as estátuas dos anjos”
O amigo, é o serra-da-estrela Seba – como Sebastien Melmoth, pseudónimo de Oscar Wilde – mais outro ser dilacerado, partido pela metade.
O amigo Rafeiro está infeliz por ter feito amizade com “um homem telúrico a quem a condição social tratou de colocar na sombra o seu lado mais eloquente e sensível” – António Aleixo. Também ele de um dualismo que o torna incompleto e o impele a uma constante procura da metade em falta: “submisso e amargo” e, ao mesmo tempo, de alma “soberana e primaveril”. Para que a fatalidade se abate porque no seu país “o palco estava atulhado de um público infame e sem alma que nunca conhecera a terna máxima helénica de que «o início do saber é o amor»”.
O cão chora a morte do dono sob o aguilhão da saudade. O abandono do cão pelo dono que a terra Natal despreza…
O último conto – In delirium – é dedicado aos leitores da última estória de amores dilacerados.
Uma jovem de beleza não convencional, andrógina, de traços masculinos e femininos procura a metade que a completa,
Um escritor com falta de inpiração procura uma personagem fora do comum: encontra uma narradora com forte personalidade. A paixão torna-se inevitável como uma possessão.
Passa, então a contar as suas fantasias sexuais a Úrsula – o seu Eu feminino – amor, sexo, proibido, permitido, implícito, explícito, rompendo convenções como se de hímenes se tratasse – num registo que torna LM muito próxima de Maria Gabriella Llansol.
A dureza nihilista daqueles que tudo procuram saber da dor e do sofrimento, sem nunca o terem sentido na pele, numa clara alusão às guerras do fim do século como os Balcãs e o Iraque. Onde a principal vítima sacrificial é o Amor. Aquele que não morre. Ou não devia morrer. Mas que é constante e diariamente aniquilado pelo ódio, e o desejo de domínio, de Poder.
O leitor é, desta forma, desafiado a espicaçar o espírito crítico de forma a evitar a morte da consciência, pela humanização das imagens de horror, diariamente debitadas pelos media.
A História repete-se, num contínuo desenvolvimento em espiral, seguindo um padrão sequencial como no crescimento das plantas (lembram-se da sequência Fibonacci?)…
Porque “escrever é secar desertos (síntese evidenciada pela caricatura das situações ou personagens) com o único fundamento da chuva”. Ou seja, a Mudança.
Uma utopia que vale a pena perseguir.
Cláudia de Sousa Dias
Luísa Monteiro fala-nos, então, do abismo entre pensamento, impulso, desejo e a palavra propriamente dita, escrita ou não-dita. Ou se calhar inter-dita. A Palavra que veste a máscara, que dissimula ou altera o sentido do pensamento original, através de uma estratégia individual de auto-censura, criado inconscientemente (ou não), para não ferir o outro ou, simplesmente adequar-se ao Eu colectivo.
A estrutura da obra desdobra-se em quatro contos inspirados nos últimos momentos de vida de Manuel Teixeira Gomes, António Aleixo, Branquinho da Fonseca e de…um leitor imaginário.
Ao ler a obra fiquei agradavelmente surpreendida ao encontrar algumas crónicas de Pó d’Enraizamento como parte integrante de alguns destes contos de grande beleza, solidão e ousadia a que já nos habituou esta autora de origem minhota, com a sua prosa ácida, temperada pelo sol quente e pela suavidade morna do vento sul vindo do Norte de África.
Os quatro Percivais presentes na obra têm como denominador comum, a procura da metade perdida, do Eu que se reflecte na outra metade de um espelho partido ao meio – na infindável tarefa de encontrar no outro os estilhaços que encaixem nos seus. Que, no fundo, se resume a reunir os dois arquétipos separados – o Ying e o Yang – a metade masculina e feminina, independente do sexo biológico a que se refere.
Percival é, assim, o ser perfeito que reúne as duas metades – os dois arquétipos: masculino e feminino.
No primeiro conto introdutório – O Sorriso de Percival (um poema da metade ) -, a cargo do narrador anónimo, que veste a pele de um viúvo celibatário – um professor que se apaixona por uma aluna, que imagina quase como uma mulher saída da Bíblia, com o maço de livros à cintura como se de uma bilha de água se tratasse. Livros que matam a sede inesgotável – de conhecimento – da jovem a quem ele apelida de Líbia, fazendo lembrar um pouco o romano Catulo, pela forma como o narrador invoca a sua musa.
Destaca-se a deliciosa e terna cumplicidade dos amigos para com a solidão do professor em contraste com o violento sentimento de culpa e auto-censura por parte deste por sentir-se, de certa forma, violar a ética profissional. E também de pena, por sentir-se responsável pelo desaparecimento dos últimos resquícios de infância, na jovem.
A simbologia utilizada em cada conto daria, por si só, para escrever um volume de quatrocentas páginas, tal a profusão de metáforas, personificações, alegorias, sinestesias, encontradas na riquíssima prosa poética de Luísa Monteiro.
A mais significativa e frequente é a simbologia da sinestesia e trocadilho fonético relacionado com a palavra amora – amor a…alguém. Ou a sedução negra do olhar de um pássaro nocturno que canta antes do romper da alvorada – melros ou rouxinóis. Também o girassol é identificado com o amor/paixão que segue a poesia “como se de sol se tratasse”.
A morte crava o ferro na carne do escritor que, até ao último instante, prossegue na demanda do seu Graal – a tal outra metade.
A morte está presente sob o signo cabalístico do número quatro.
Serão, desta forma, quatro os contos que escreve.
Antes disserta, ainda, sobre a natureza do amor: aquele que considera verdadeiro, aquele que não morre –, a identidade ou o amor-próprio. O falso amor é identificado com a necessidade de posse, de apropriação, de anulação da vontade do outro. Aquele que mata e que morre. Destrutivo.
O primeiro conto do narrador-escritor, intitulado Noivos Judeus, é um canto de morte, feito em homenagem a Manuel Teixeira Gomes, no leito de morte que é fotografado pela bela Madame Berg. O quarto é o número 13. Ou seja, a antecâmara da morte – 1+3=4, o número da Morte.
Um conto que é um diálogo entre dois ex-amantes, onde impera a nostalgia.
Já no que respeita ao segundo, trata-se de um monólogo, dedicado aos amigos de Branquinho da Fonseca.
A personagem é uma espécie de dandy, transtornado não se sabe bem se pelo absinto ou pelo ópio, que fala do amor nefasto – “(…) o doce veneno que nos envelhece e nos mata”. A desesperança e a descrença na realidade do Graal. A negação do Paraíso…
Trata-se de O regresso do Pródigo onde o narrador se imagina a regressar a casa para assistir ao seu próprio funeral aproveitando para observar as reacções daqueles que se intitulam seus amigos.
Um discurso onde predomina o sentimento de amargura de um génio incompreendido, onde se nota um pesado agudo ressentimento, resultado da falta de amor. Um texto que se saboreia como um remédio amargo, embora necessário, pela crítica impiedosa mas pertinente face à indiferença.
É a estória de um potencial sibarita, que passou ao lado do vinho da vida, sem chegar a saboreá-lo, pelo ateísmo emocional que professa:
“Sou viúvo de uma viúva, está a ouvir? – De uma viúva? (…) uma dessas lacrimosas, vestidas de luto que nunca ousam cortar o cabelo?
Dessas cheias de noite e de chuva, de caminhar felino e ondulante, com uma tristeza romântica, cheias de melodias e violoncelos graves no bater dos cílios?... Ah, meu amigo, essas viúvas são um luxo (…) de dia, são escorregadias e misteriosas como a noite, mas é de noite que elas revelam o corpo argênteo de lua e nos cegam com os seus relâmpagos tempestuosos de prazer…”
O escritor delira com a consciência alterada por substâncias tóxicas (ou fármacos) nos seus últimos momentos de vida…numa alucinante viagem para aquilo que ele julga ser “um túnel de luz”. Ao fundo…o Graal?
Na estória dedicada a António Aleixo Um Cão não chora, temos uma fábula canina, de ternurentos cães humanizados e de dupla visão. Ou homens dotados de visão canina – duas vezes superior à dos restantes humanos.
Aleixo, o dono de um dos cães, é também um homem partido pela metade: uma criança de olhar ensombrado pelo “tempo ranhoso da ditadura”. E, simultaneamente, um Leviathan, “enorme como as estátuas dos anjos”
O amigo, é o serra-da-estrela Seba – como Sebastien Melmoth, pseudónimo de Oscar Wilde – mais outro ser dilacerado, partido pela metade.
O amigo Rafeiro está infeliz por ter feito amizade com “um homem telúrico a quem a condição social tratou de colocar na sombra o seu lado mais eloquente e sensível” – António Aleixo. Também ele de um dualismo que o torna incompleto e o impele a uma constante procura da metade em falta: “submisso e amargo” e, ao mesmo tempo, de alma “soberana e primaveril”. Para que a fatalidade se abate porque no seu país “o palco estava atulhado de um público infame e sem alma que nunca conhecera a terna máxima helénica de que «o início do saber é o amor»”.
O cão chora a morte do dono sob o aguilhão da saudade. O abandono do cão pelo dono que a terra Natal despreza…
O último conto – In delirium – é dedicado aos leitores da última estória de amores dilacerados.
Uma jovem de beleza não convencional, andrógina, de traços masculinos e femininos procura a metade que a completa,
Um escritor com falta de inpiração procura uma personagem fora do comum: encontra uma narradora com forte personalidade. A paixão torna-se inevitável como uma possessão.
Passa, então a contar as suas fantasias sexuais a Úrsula – o seu Eu feminino – amor, sexo, proibido, permitido, implícito, explícito, rompendo convenções como se de hímenes se tratasse – num registo que torna LM muito próxima de Maria Gabriella Llansol.
A dureza nihilista daqueles que tudo procuram saber da dor e do sofrimento, sem nunca o terem sentido na pele, numa clara alusão às guerras do fim do século como os Balcãs e o Iraque. Onde a principal vítima sacrificial é o Amor. Aquele que não morre. Ou não devia morrer. Mas que é constante e diariamente aniquilado pelo ódio, e o desejo de domínio, de Poder.
O leitor é, desta forma, desafiado a espicaçar o espírito crítico de forma a evitar a morte da consciência, pela humanização das imagens de horror, diariamente debitadas pelos media.
A História repete-se, num contínuo desenvolvimento em espiral, seguindo um padrão sequencial como no crescimento das plantas (lembram-se da sequência Fibonacci?)…
Porque “escrever é secar desertos (síntese evidenciada pela caricatura das situações ou personagens) com o único fundamento da chuva”. Ou seja, a Mudança.
Uma utopia que vale a pena perseguir.
Cláudia de Sousa Dias