O Leopardo é um clássico da literatura italiana da primeira metade do século XX subordinado a um tema que se tornou particularmente caro aos habitantes do continente europeu, em virtude das convulsões sociais e políticas que acompanharam a transição do século XIX para o século XX, sobretudo com a desagregação de impérios como o dos Habsburgos ou dos Bourbons: a circulação das élites. O caso italiano é disso um expoente máximo por ser constituído, na altura, por um aglomerado de pequenos principados ou mini-repúblicas, isto é uma península dividida em cidades-estado, disputando o poder entre si e disputadas por potências imperiais vizinhas.
O trabalho de unificação é levado a cabo por Giuseppe Garibaldi, já na última metade do século XIX, culminando com a ascensão ao trono de Vítor Emanuel de Sabóia. Isto implicou alguns acidentes tectónicos nas estruturas da sociedade italiana, facto que Lampedusa explora (e muito bem) neste belíssimo romance que evoca a nostalgia de um mundo em vias de desaparecer.
Estamos na Sicília, em meados do século XIX, quando o revolucionário Giuseppe Garibaldi desembarca em Marsala chefiando “os descamisados”, ou simplesmente, “os camisas vermelhas”. O objectivo é a reunificação da Península Itálica, a expulsão dos Bourbons - cuja pretensão de hegemonia, partindo de Nápoles de onde reina a dinastia Bourbon, irrita de sobremaneira os italianos – e sua substituição pela dinastia rival de Piemonte, apoiando Vítor Emanuel da casa de Sabóia.
Assumindo como seus os ideais da Revolução Francesa – Liberdade, Igualdade e Fraternidade –, as tropas de Garibaldi, pretendem o estabelecimento de uma nova ordem social ao defender a igualdade de oportunidades como o principal objectivo da revolução. Recebem, por isso, o apoio directo de uma classe em franca ascensão: uma burguesia endinheirada que lucra em progressão geométrica com o endividamento galopante de uma nobreza dissipadora e cada vez mais passiva.
Lampedusa, ao elaborar, durante os seus dois últimos anos de vida, O Leopardo - enquanto repousava no palazzo della marina –, o seu romance sobre a circulação das élites, inspira-se directamente no modelo teórico do sociólogo aristocrata contemporâneo á Revolução, o marquês Vilfredo Paretto, mais propriamente na teoria dos resíduos, ou seja, arquétipos ou modelos sociais de conduta dominante.
Em O Leopardo, estão presentes sobretudo os dois principais tipos sociais do referido modelo de Paretto, que consiste nos Leões ou, neste caso, Leopardos – animal que figura no brasão dos salina – que representam a nobreza ancestral, por tratar-se dos animais que figuram no topo da cadeia alimentar, tal como a nobreza figurava no topo da pirâmide social.
Lampedusa escolhe, talvez, a figura do Leopardo, não só pelo seu individualismo – característica que tem em comum com o príncipe de Salina – como pela sua adaptabilidade, algo que é fundamental para a manutenção do status quo do protagonista e da sua família.
Logo abaixo dos Leopardos estão as Raposas, os Chacais, as Hienas, cuja astúcia desprovida de escrúpulos, aliada a uma fortíssima motivação para vencer fazem da burguesia em ascensão uma classe para a qual os fins justificam os meios na sua rota de ascensão em direcção ao topo da escala social: agiotas, banqueiros, especuladores ou, simplesmente, grandes industriais que enriquecem misteriosamente de um momento para o outro. A ambição deste tipo social esbarra, porém, com o conservadorismo dos Leões e dos Leopardos que demoram, ainda, algumas gerações antes de os considerarem como seus iguais.
Porém, a adaptabilidade do Leopardo Fabrizio Salina impele-o a ser condescendente, flexível, com a nova classe em ascensão, cujo poder económico poderá ajudar a sua família a manter o padrão de vida ao qual está habituada: “é necessário mudar, para que tudo fique na mesma”.
Personagens
Fabrizio Salina, o protagonista, é a fusão entre a cultura alemã, herdada da mãe – o racionalismo, o apego às normas e à ordem, traduzidas no fascínio pelas leis da física, nomeadamente da astronomia – e a indolência e fogosidade italianas como legado paterno.
Sendo um homem dotado de inteligência (muito) acima de média no seu grupo de pares – que se caracteriza, sobretudo pela frivolidade ideológica a par de uma extrema sensibilidade estética – Fabrizio estaca-se do seu grupo. É, antes de tudo, graças ao seu encanto pessoal que, mais do que a sua irrepreensível genealogia, o Leopardo Salina não é segregado pelos seus iguais que o consideram algo excêntrico, inspirando-lhes um misto de admiração e receio.
Fabrizio Salina é, ainda, um homem sensual, propenso a grandes paixões, cujo temperamento esbarra com a castradora religiosidade da sua aristocrática esposa, Stella.
Stella, a princesa di Salina, é aquilo a que se pode chamar de una vera signora, perfeita na estrita observância do profundo respeito pelas convenções, das normas de etiqueta e do saber-estar.
No entanto, o seu fervor religioso, manifesto até durante o acto sexual, assim como a sua frivolidade, acabam por exasperar o marido e esfriar a sua paixão inicial.
Já Tancredi, o príncipe di Falconeri, sobrinho de Fabrizio, é um jovem belo, inteligente, dotado de um humor colorido de um sarcasmo afectuoso, dirigido, maioritariamente ao Zio Fabrizio – “Zione” (Tiozão), como lhe chama o sobrinho – o qual não resiste àquela descarada ironia que tem as suas raízes numa juventude que se crê imortal. A inteligência de Tancredi está ligada ao seu sentido de oportunidade, à astúcia felina (ou de ave predadora) que lhe permite realizar um casamento vantajoso, salvando-o da ruína e, ao mesmo tempo, realizar o desejo de possuir a bela e voluptuosa Angélica, filha de um novo-rico, recentemente promovido a barão e com pretensões aristocráticas.
É, também, o mesmo materialismo de Tancredi que o faz transitar habilmente do partido dos “camisas vermelhas” para o exército real.
Angélica é uma jovem de origem humilde, que tem acesso a uma educação refinada, em virtude do enriquecimento meteórico do pai. Apesar de, no início, o verniz da educação e o refinamento da toilette não conseguirem ocultar totalmente a sua origem camponesa.
Contudo, Angélica acaba por ser uma lufada de ar fresco dentro de uma aristocracia debilitada por sucessivos casamentos consanguíneos, maus hábitos alimentares, ausência de vida ao ar livre e falta de exercício físico.
Apesar de alguns pequenos deslizes no que toca à etiqueta e ao protocolo, Angélica é inteligente, activa, uma jovem que se torna culta e interventiva no que diz respeito a causas sociais e na defesa dos direitos das mulheres. É a única personagem feminina que consegue conservar a beleza e o encanto até à velhice, preservando, até depois da morte de Tancredi, a vivacidade da juventude.
Já as irmãs Salina, filhas de Fabrizio e Stella, estiolam pelo excesso de rigidez a que as obrigam as expectativas daqueles que as rodeiam, mercê do seu estatuto. Tornam-se demasiado tímidas e recatadas para inspirarem verdadeira paixão. A sua frieza e aparente indiferença acabam sempre por “gelar o sangue” aos seus pretendentes.
O Clima e a Cultura
Outro aspecto que é largamente explorado no romance é a correlação entre o clima e a cultura sicilianos que condicionam, em larga medida, o comportamento e até a forma de pensar dos habitantes da ilha.
O clima, marcado por um Verão inclemente que dura metade do ano e por ventos que fustigam impiedosamente o solo árido da regiões montanhosas à volta do Etna, afasta os eflúvios pestilentos, mas faz, também, com que o pó se infiltre por todas as frinchas e recubra de uma pegajosa camada de sujidade, que adere à pele como um manto, todo e qualquer transeunte que se atreva a sair fora de casa. Isto obriga uma população inteira a adaptar as suas saídas de casa às contingências da meteorologia.
Por outro lado, a própria história da ilha, marcada por sucessivas invasões de todos os quadrantes do mediterrâneo, tem como consequência o desenvolvimento de um sentimento colectivo de indiferença por quem se encontra no poder. Sobretudo, quando o órgão central de decisão, se encontra geograficamente distante da ilha.
Estrutura narrativa, estilo e linguagem
A presença de um narrador omnisciente, exterior à época em que se passa a história e, ao mesmo tempo, contemporâneo ao Autor que escreve o romance, que introduz uma nota de realismo no discurso e dá ao leitor a capacidade de apreciação global, do ponto de vista de todas as personagens e do seu papel ou lugar na trama. E que permite, simultaneamente, que o narrador exprima, de forma invulgar, a veia crítica que dá o distanciamento necessário dos acontecimentos, tornando o romance credível, do ponto de vista do leitor.
É através deste distanciamento do narrador que nos apercebemos que Fabrizio foi o último dos Leopardos genuínos, sem contar com o filho rebelde que abandona o lar para trabalhar na indústria, em Inglaterra.
Existe, também uma enorme proximidade entre o narrador e o Príncipe di Salina, que poderiam perfeitamente ser dois amigos íntimos, irmãos ou, simplesmente, a mesma pessoa.
A escrita de Lampedusa é introspectiva, pormenorizada e sempre explicativa, tanto do ponto de vista psicossociológico, como dos comportamentos individuais e colectivos.
A linguagem é sensorial, marcada principalmente por sensações visuais, pictóricas – não só relativas à paisagem natural, mas também aos ambientes fechados. Por exemplo, os salões do Palazzo Donnafugatta, o labiríntico refúgio por onde passeiam Angélica e Tancredi ao tentar escapar aos olhares vigilantes, a misteriosa câmara secreta onde se realizavam, um século antes, os jogos eróticos proibidos, na ala mais recôndita do palácio…
Muito fica por dizer acerca deste O Leopardo de Lampedusa. Desde as críticas ao antigo regime, à estreiteza de horizontes e extensão de preconceitos da Igreja – sobretudo no que dizia respeito à sexualidade – até à luta impiedosa pelo poder, levada a cabo pela nova classe emergente, no novo regime – os Chacais e as Hienas que se dilaceram uns aos outros, após destronarem os Leões e os Leopardos, numa clara alusão às famílias dos uomini d’onore, que compõem a célebre máfia siciliana que então começava a mostrar os dentes e a deixar crescer as garras.
Uma obra imprescindível para a compreensão das mudanças sociais na Itália dos últimos 150 anos assim, como da cultura siciliana contemporânea.
Um livro altamente recomendável, pela riqueza linguística e ideológica que fazem deste romance um dos maiores tesouros literários vindos de uma península europeia onde a Arte é, desde há milénios, encarada como um valor absoluto.
Cláudia de Sousa Dias