"Na Sombra do Javali" de Lawrence Norfolk (Planeta)
Nesta obra, nada é o que parece. Tudo são máscaras que se sobrepõem umas às outras. Em camadas. Que se vão retirando. Uma a uma. Até ficar exposto à luz do dia o verdadeiro rosto da Besta. O qual se revela e, simultaneamente, se dissolve ou se desintegra com a exposição à luz e à medida que se anunciam as trombetas do Apocalipse. Em contrapartida, os seus contornos vão-se acentuando no silêncio das trevas, numa caverna da História, onde heróis e vilões se nivelam numa selvajaria quase canibal, subjacente ao lado mais animal da condição humana.
Na Sombra do Javali é uma metáfora social e histórica, baseada no mito de Meleagro a Atalanta, que serve de base ao desdobramento do romance em duas histórias que, no fundo, são a mesma, mas contadas em três épocas distintas.
A base do romance é um triângulo amoroso, composto por dois homens e uma mulher e, os ingredientes, o amor, o ciúme a vingança e a morte, que geram a energia psicodinâmica potenciadora da acção.
Primeiro, na época que corresponde à Antiguidade, a inspirar um belíssimo poema em prosa épica – cuja autoria pertence a Solomon Memel, protagonista da acção passada no século vinte, qual adiciona a função de heterónimo de Lawrence Norfolk.
Memel reinventa a mítica caçada ao Javali de Cálidon, cuja ferocidade aterroriza as gentes locais, deixando um rasto de destruição por onde passa. Os amantes, Atalanta e Meleagro, despertam o ciúme e o despeito de Melaneu, o qual se considera o detentor de direitos adquiridos relativamente ao afecto da jovem caçadora que, em todos os aspectos, se assemelha a Diana ou Artemísia.
O estilo poético da prosa de Norfolk/Memel exalta a beleza dos movimentos das personagens de inspiração heróica, como seres perfeitos e mitológicos que são – afinal trata-se de semi-deuses – unidos, apesar das rivalidades que opões alguns deles, para destruir um inimigo comum.
A Besta, neste caso personificada pelo Javali, é uma metáfora da época antiga, transposta para o tempo presente. Ou, para o passado próximo de Solomon Memel, que remonta à segunda Guerra Mundial. O javali simboliza, desta forma, o Nazismo Alemão.
O romance trata, sobretudo, do desejo residual da luta contra a ferocidade de uma ameaça humana face ao próprio Homem, que não deixa pedra sobre pedra por onde passa.
A segunda época histórica começa um pouco antes do início da guerra, quando três crianças brincam despreocupadamente junto a um ribeiro numa província Romena -outrora pertencente ao Império Austro-Húngaro – enquanto perseguem os seus próprios sonhos: Solomon, Ruth e Jacob. Ou Meleagro, Atalanta e Melaneu, mas no século XX.
Durante a guerra, este segundo trio desfaz-se. O amor de Solomon e Ruth mantém-se ao longo das décadas, mas as circunstâncias não lhes possibilitam uma vida em comum ( inveja dos deuses ou ciúme das Fúrias?).
Jacob/Melaneu acaba por desaparecer dilacerado pelo ciúme e pela esquizofrenia.
Sol, ainda durante a guerra, foge para a Grécia. Lá, reúne-se a um grupo da Resistência local – os andartes – e conhece Anastasia Kosta, de pseudónimo Thyella, amante do jovem Xantos, na unidade chefiada por Geraxos. E acaba por projectar nos dois jovens o amor entre ele e Ruth. Imagina-os, simultaneamente, como os seus dois míticos heróis, Melegro e Atalanta, à medida que se converte, voyeuristicamente, ele próprio no caçador nocturno: Melaneu. O que se torna particularmente interessante na obra é a transição de papéis na mesma personagem, em situações diferentes. Sol vê em Thyella a imagem física e as atitudes de Atalanta, a sua guerreira vingadora. Perfeita para compor um poema épico. Mas a integridade do seu afecto por Ruth mantém-se.
No tempo presente, já no dealbar dos anos 2000, Sol é já um escritor de sucesso. O seu poema Na Sombra do Javali faz parte do currículo escolar das escolas secundárias e é objecto de várias teses por vários universitários. Ruth, por seu lado, tornou-se realizadora de cinema. Os dois encontram-se novamente em Paris, com o objectivo de transformar em película o êxito literário de Sol.
Mas, parece haver alguém interessado em boicotar o trabalho…
Na verdade, o discurso presente no poema de Solomon adequa-se como uma luva ao formato de guião de cinema, devido aos planos utilizados quer relativamente à panorâmica das montanhas da Grécia, quer às minuciosas descrições dos movimentos corporais e aos detalhes de expressões faciais, da textura da pele ou da trajectória de um braço em movimento, desde o dobrar de uma articulação, ao retesar dos músculos, ao esticar o arco, à trajectória de uma flecha…
Esta visão cinematográfica é enfatizada pela utilização do presente histórico na descrição das movimentações e comportamentos das três personagens principais: Meleagro, Melaneu e Atalanta.
Durante a caça ao javali, a figura feminina de Atalanta/Thyella é, também, olhada como uma presa, do ponto de vista do caçador nocturno (Solomon - que a olha na sombra ou, então, Melaneu, o pretendente rejeitado). Os restantes companheiros vêm-na como uma intrusa, numa empresa considerada, na cultura da Grécia arcaica, como exclusivamente masculina.
Note-se que Melaneu é, na realidade, a projecção que Solomon faz da personalidade de Jacob. E Sol coloca-se, muitas vezes, no lugar de Melaneu/Jacob ao observar a resistente Thyella. A personagem arquetípica de Melaneu, inspirada no comportamento obsessivo de Jacob, é comparada à de um caçador nocturno devido à dissimulação inerente ao carácter deste, pelo facto de nunca actuar frontalmente, mas sempre camuflado. Jacob/Melaneu é movido, simultaneamente pelo ciúme e pela inveja. Melaneu segue o percurso de Meleagro e Atalanta, à espera de atacar e ficar com o prémio para si. Jacob, tenta, além disso, prejudicar o trabalho de Ruth e Solomon por motivos idênticos.
O caçador nocturno observa os amantes dirigirem-se para a morte na gruta do Javali, à espera de os ver cair na armadilha.
A presa de Melaneu é Atalanta.
A de Jacob é Ruth.
Sol observa Thyella – aquela que vai vestir a imagem física de Atalanta no imaginário do escritor – colocando-se na pele do caçador nocturno, para melhor compreender as suas atitudes e descrever o seu comportamento. Sol acabará mesmo por agir como o caçador nocturno, ao trair os companheiros, colocando a “fera” alemã no seu encalço. Neste caso, não por vingança ou despeito, mas para salvar a pele.
A cadela (de Atalanta) farejou o cheiro que ele (Melaneu) não conseguia disfarçar. O caçador nocturno esconde os seus sinais, vigia sem ser visto, escuta sem ser ouvido. A presa não sente a mão que lhe rodeia o pescoço.
Era assim que Melaneu a cercava – paciente, atento – (…) Mas um animal assim perseguido e não caçado nunca poderia voltar a ser caçado assim e transformar-se-ia numa infindável perseguição (…). Acorrentados naquela perseguição, a presa arrastada, o caçador, como um boi para o altar…
A Fatalidade acaba por se consumar na escuridão da caverna.
Ao longo de toda a epopeia de Solomon Memel apercebemo-nos, gradualmente, não estarmos já a falar, como já foi dito, de um verdadeiro javali, mas antes da fera humana. Trata-se de uma metáfora de guerra e exortação da união de esforços no sentido de deter o inimigo comum: a Besta Humana.
No caso de Sol, a epopeia escrita a partir de um episódio da Mitologia Clássica exprime o desejo ancestral de subordinação a um Deus dos Exércitos pelo povo judeu e do desejo de mobilização bélica, no sentido de combater o nazismo. Solomon desejaria, na realidade, que o povo judeu se tivesse unido, na altura, para combater o nazismo em vez de caminhar como vítima sacrificial para os campos de extermínio pelos javalis alemães…
Um javali nasceu para destruir criaturas maiores do que ele. De baixa constituição, com enormes ombros couraçados para investir, presas para atacar o inimigo derrubado, lacerando-o depois.
A lenda é construída, posteriormente, sobre a realidade, em camadas, através da tradição oral, onde os episódios que lhe dão origem são, sucessivamente recontados. Por essa razão, acabam por preencher o silêncio da verdade e inundam de mentiras a escuridão.
Solomon escreve, a dada altura, que somos autores dos nossos próprios monstros. E esta é a primeira grande pista para o desvendar da trama propriamente dita. Saber o que se passou naquela cratera resguardada por montanhas numa das regimes mais inóspitas da Grécia…
Depois especula-se sobre o destino dos caçadores de Cálidon e passa-se à acção propriamente dita, a qual se desenvolve num alucinante vaivém entre o passado próximo dos dois protagonistas da segunda época – Sol e Ruth – e o presente. na altura em que se roda o filme na Cidade Luz.
Do passado, emerge um misterioso editor, Jacob Feuerbach, para assombrar Solomon e trazer ao de cima algumas contradições e factos por explicar…
O que tem de inédito numa obra como esta é o facto de as personagens do tempo presente passarem grande parte do tempo a comentá-la, a pretexto da rodagem do filme e do guião que lhe está subjacente.
E, claro a simbologia do Javali – um porco selvagem (um “porco nazi”), impróprio para consumo, até pelos cânones da dieta judaica. Uma fera abjecta.
O Mal habita o javali. É a causa da violência, da licenciosidade. Os que o caçam, também caçam aquilo que ele significa.
Por outro lado, as próprias personagens comentam, entre si a obra de Sol, efectuando autênticas tertúlias e, por vezes, acesos debates quando se deparam com alguns detractores do poeta judeu: os temas da sua poesia são universais porque os extraiu de uma vida representativa (arquétipos). Isto torna-se particularmente evidente nos temas tratados durante a acção passada no século XX: perda, fuga, resistência, vingança…
Enquanto Solomon retira, por um lado, da lembrança de Ruth o afecto que transpõe para o romance de Meleagro e Atalanta, transporta, a imagem física de Thyella e Xanthos po outro, os quais correspondem à imagem não só física, mas também de alguns traços de personalidade fundamentais para compor as personalidade destes dois seres lendários.
Thyella é, na realidade uma jovem algo sinistra que inspira, tanto admiração como medo, naqueles que a rodeiam. Ela faz parte dos grupos da resistência grega, nas montanhas do Peloponeso, num local chamado Agrapha – lugar não escrito. É temida pelos alemães, devido ao hábito que tem de castrar os inimigos que captura. A sua fama é de cruel como Artemísia. E a sua perícia, assim como a frieza com que executa o acto desenvolvida, durante quase duas décadas, numa aldeia onde as jovens são treinadas, desde cedo, na matança do porco, castrando-o para a carne ficar mais saborosa, assaz conhecidas entre as hostes alemãs. Daí a fazer idêntica operação a um javali das SS…
Outro dos aspectos menos comuns, numa obra do género, é a dificuldade em identificar de que lado está o bem ou o mal. Norfolk não deixa de fazer notar o colaboracionismo romeno (saudosismo do governo austro-húngaro?) com os invasores alemães, numa localidade onde as pessoas eram convocadas para comparecerem ao Palácio da Cultura para aí serem fuziladas. Por outro lado, a desvalorização da questão nazi, no início da guerra, por alguns membros da comunidade judaica ao julgarem-se imunes porque crentes na protecção do poder das amizades influentes é apenas mais um dos lados delicados da questão.
Por outro lado, pessoas mobilizadas ao serviço da resistência como Ruth eram, não raro, estigmatizadas e achincalhadas por se confundirem com os colaboracionistas.
As sucessivas regressões de Sol a uma época passada e povoada de lembranças dolorosas traduzem uma tentativa desesperada de reconstituição do filme da Memória numa tentativa desesperada de contornar as armadilhas do Tempo, da interpretação pessoal dos factos, da tentação de preencher das lacunas com falsas verdades – ou verdadeiras mentiras – por forma a encobrir o silêncio.
Silêncio que esconde traição…denúncia sob tortura……vergonha…raiva…ânsia de vizinhança. As raízes das motivações que levam alguém a escrever um livro intitulado Na Sombra do Javali.
Afinal o que há de verdade naquilo que aconteceu com “os filhos de Téstio”, independentemente de ter acontecido há quatro milénios ou há poço mais de meio século atrás?
A caverna é, na realidade, a câmara de tortura, do corpo ou da mente, onde têm lugar todos sacrifícios ao apetite voraz do javali.
A frase-chave que leva ao desvendar da intenção de quem escreve, está bem patente nas linhas que se seguem:
Acreditas que o javali se recorda das suas vítimas?!
O javali apenas se lembra daqueles que o venceram.
Para o Autor, os judeus de toda a Europa deveriam, na altura, ter-se unido e lutado, como os caçadores de Cálidon.
O último diálogo entre Ruth e Solomon denuncia a impotência e pusilanimidade daqueles que se colocam na posição de vítimas. A dada altura, todas as personagens trocaram, em determinado, momento de papéis. Até Sol. Até Thyella. Não o puderam evitar.
Terá vencido o javali, afinal?
Cláudia de Sousa Dias
Na Sombra do Javali é uma metáfora social e histórica, baseada no mito de Meleagro a Atalanta, que serve de base ao desdobramento do romance em duas histórias que, no fundo, são a mesma, mas contadas em três épocas distintas.
A base do romance é um triângulo amoroso, composto por dois homens e uma mulher e, os ingredientes, o amor, o ciúme a vingança e a morte, que geram a energia psicodinâmica potenciadora da acção.
Primeiro, na época que corresponde à Antiguidade, a inspirar um belíssimo poema em prosa épica – cuja autoria pertence a Solomon Memel, protagonista da acção passada no século vinte, qual adiciona a função de heterónimo de Lawrence Norfolk.
Memel reinventa a mítica caçada ao Javali de Cálidon, cuja ferocidade aterroriza as gentes locais, deixando um rasto de destruição por onde passa. Os amantes, Atalanta e Meleagro, despertam o ciúme e o despeito de Melaneu, o qual se considera o detentor de direitos adquiridos relativamente ao afecto da jovem caçadora que, em todos os aspectos, se assemelha a Diana ou Artemísia.
O estilo poético da prosa de Norfolk/Memel exalta a beleza dos movimentos das personagens de inspiração heróica, como seres perfeitos e mitológicos que são – afinal trata-se de semi-deuses – unidos, apesar das rivalidades que opões alguns deles, para destruir um inimigo comum.
A Besta, neste caso personificada pelo Javali, é uma metáfora da época antiga, transposta para o tempo presente. Ou, para o passado próximo de Solomon Memel, que remonta à segunda Guerra Mundial. O javali simboliza, desta forma, o Nazismo Alemão.
O romance trata, sobretudo, do desejo residual da luta contra a ferocidade de uma ameaça humana face ao próprio Homem, que não deixa pedra sobre pedra por onde passa.
A segunda época histórica começa um pouco antes do início da guerra, quando três crianças brincam despreocupadamente junto a um ribeiro numa província Romena -outrora pertencente ao Império Austro-Húngaro – enquanto perseguem os seus próprios sonhos: Solomon, Ruth e Jacob. Ou Meleagro, Atalanta e Melaneu, mas no século XX.
Durante a guerra, este segundo trio desfaz-se. O amor de Solomon e Ruth mantém-se ao longo das décadas, mas as circunstâncias não lhes possibilitam uma vida em comum ( inveja dos deuses ou ciúme das Fúrias?).
Jacob/Melaneu acaba por desaparecer dilacerado pelo ciúme e pela esquizofrenia.
Sol, ainda durante a guerra, foge para a Grécia. Lá, reúne-se a um grupo da Resistência local – os andartes – e conhece Anastasia Kosta, de pseudónimo Thyella, amante do jovem Xantos, na unidade chefiada por Geraxos. E acaba por projectar nos dois jovens o amor entre ele e Ruth. Imagina-os, simultaneamente, como os seus dois míticos heróis, Melegro e Atalanta, à medida que se converte, voyeuristicamente, ele próprio no caçador nocturno: Melaneu. O que se torna particularmente interessante na obra é a transição de papéis na mesma personagem, em situações diferentes. Sol vê em Thyella a imagem física e as atitudes de Atalanta, a sua guerreira vingadora. Perfeita para compor um poema épico. Mas a integridade do seu afecto por Ruth mantém-se.
No tempo presente, já no dealbar dos anos 2000, Sol é já um escritor de sucesso. O seu poema Na Sombra do Javali faz parte do currículo escolar das escolas secundárias e é objecto de várias teses por vários universitários. Ruth, por seu lado, tornou-se realizadora de cinema. Os dois encontram-se novamente em Paris, com o objectivo de transformar em película o êxito literário de Sol.
Mas, parece haver alguém interessado em boicotar o trabalho…
Na verdade, o discurso presente no poema de Solomon adequa-se como uma luva ao formato de guião de cinema, devido aos planos utilizados quer relativamente à panorâmica das montanhas da Grécia, quer às minuciosas descrições dos movimentos corporais e aos detalhes de expressões faciais, da textura da pele ou da trajectória de um braço em movimento, desde o dobrar de uma articulação, ao retesar dos músculos, ao esticar o arco, à trajectória de uma flecha…
Esta visão cinematográfica é enfatizada pela utilização do presente histórico na descrição das movimentações e comportamentos das três personagens principais: Meleagro, Melaneu e Atalanta.
Durante a caça ao javali, a figura feminina de Atalanta/Thyella é, também, olhada como uma presa, do ponto de vista do caçador nocturno (Solomon - que a olha na sombra ou, então, Melaneu, o pretendente rejeitado). Os restantes companheiros vêm-na como uma intrusa, numa empresa considerada, na cultura da Grécia arcaica, como exclusivamente masculina.
Note-se que Melaneu é, na realidade, a projecção que Solomon faz da personalidade de Jacob. E Sol coloca-se, muitas vezes, no lugar de Melaneu/Jacob ao observar a resistente Thyella. A personagem arquetípica de Melaneu, inspirada no comportamento obsessivo de Jacob, é comparada à de um caçador nocturno devido à dissimulação inerente ao carácter deste, pelo facto de nunca actuar frontalmente, mas sempre camuflado. Jacob/Melaneu é movido, simultaneamente pelo ciúme e pela inveja. Melaneu segue o percurso de Meleagro e Atalanta, à espera de atacar e ficar com o prémio para si. Jacob, tenta, além disso, prejudicar o trabalho de Ruth e Solomon por motivos idênticos.
O caçador nocturno observa os amantes dirigirem-se para a morte na gruta do Javali, à espera de os ver cair na armadilha.
A presa de Melaneu é Atalanta.
A de Jacob é Ruth.
Sol observa Thyella – aquela que vai vestir a imagem física de Atalanta no imaginário do escritor – colocando-se na pele do caçador nocturno, para melhor compreender as suas atitudes e descrever o seu comportamento. Sol acabará mesmo por agir como o caçador nocturno, ao trair os companheiros, colocando a “fera” alemã no seu encalço. Neste caso, não por vingança ou despeito, mas para salvar a pele.
A cadela (de Atalanta) farejou o cheiro que ele (Melaneu) não conseguia disfarçar. O caçador nocturno esconde os seus sinais, vigia sem ser visto, escuta sem ser ouvido. A presa não sente a mão que lhe rodeia o pescoço.
Era assim que Melaneu a cercava – paciente, atento – (…) Mas um animal assim perseguido e não caçado nunca poderia voltar a ser caçado assim e transformar-se-ia numa infindável perseguição (…). Acorrentados naquela perseguição, a presa arrastada, o caçador, como um boi para o altar…
A Fatalidade acaba por se consumar na escuridão da caverna.
Ao longo de toda a epopeia de Solomon Memel apercebemo-nos, gradualmente, não estarmos já a falar, como já foi dito, de um verdadeiro javali, mas antes da fera humana. Trata-se de uma metáfora de guerra e exortação da união de esforços no sentido de deter o inimigo comum: a Besta Humana.
No caso de Sol, a epopeia escrita a partir de um episódio da Mitologia Clássica exprime o desejo ancestral de subordinação a um Deus dos Exércitos pelo povo judeu e do desejo de mobilização bélica, no sentido de combater o nazismo. Solomon desejaria, na realidade, que o povo judeu se tivesse unido, na altura, para combater o nazismo em vez de caminhar como vítima sacrificial para os campos de extermínio pelos javalis alemães…
Um javali nasceu para destruir criaturas maiores do que ele. De baixa constituição, com enormes ombros couraçados para investir, presas para atacar o inimigo derrubado, lacerando-o depois.
A lenda é construída, posteriormente, sobre a realidade, em camadas, através da tradição oral, onde os episódios que lhe dão origem são, sucessivamente recontados. Por essa razão, acabam por preencher o silêncio da verdade e inundam de mentiras a escuridão.
Solomon escreve, a dada altura, que somos autores dos nossos próprios monstros. E esta é a primeira grande pista para o desvendar da trama propriamente dita. Saber o que se passou naquela cratera resguardada por montanhas numa das regimes mais inóspitas da Grécia…
Depois especula-se sobre o destino dos caçadores de Cálidon e passa-se à acção propriamente dita, a qual se desenvolve num alucinante vaivém entre o passado próximo dos dois protagonistas da segunda época – Sol e Ruth – e o presente. na altura em que se roda o filme na Cidade Luz.
Do passado, emerge um misterioso editor, Jacob Feuerbach, para assombrar Solomon e trazer ao de cima algumas contradições e factos por explicar…
O que tem de inédito numa obra como esta é o facto de as personagens do tempo presente passarem grande parte do tempo a comentá-la, a pretexto da rodagem do filme e do guião que lhe está subjacente.
E, claro a simbologia do Javali – um porco selvagem (um “porco nazi”), impróprio para consumo, até pelos cânones da dieta judaica. Uma fera abjecta.
O Mal habita o javali. É a causa da violência, da licenciosidade. Os que o caçam, também caçam aquilo que ele significa.
Por outro lado, as próprias personagens comentam, entre si a obra de Sol, efectuando autênticas tertúlias e, por vezes, acesos debates quando se deparam com alguns detractores do poeta judeu: os temas da sua poesia são universais porque os extraiu de uma vida representativa (arquétipos). Isto torna-se particularmente evidente nos temas tratados durante a acção passada no século XX: perda, fuga, resistência, vingança…
Enquanto Solomon retira, por um lado, da lembrança de Ruth o afecto que transpõe para o romance de Meleagro e Atalanta, transporta, a imagem física de Thyella e Xanthos po outro, os quais correspondem à imagem não só física, mas também de alguns traços de personalidade fundamentais para compor as personalidade destes dois seres lendários.
Thyella é, na realidade uma jovem algo sinistra que inspira, tanto admiração como medo, naqueles que a rodeiam. Ela faz parte dos grupos da resistência grega, nas montanhas do Peloponeso, num local chamado Agrapha – lugar não escrito. É temida pelos alemães, devido ao hábito que tem de castrar os inimigos que captura. A sua fama é de cruel como Artemísia. E a sua perícia, assim como a frieza com que executa o acto desenvolvida, durante quase duas décadas, numa aldeia onde as jovens são treinadas, desde cedo, na matança do porco, castrando-o para a carne ficar mais saborosa, assaz conhecidas entre as hostes alemãs. Daí a fazer idêntica operação a um javali das SS…
Outro dos aspectos menos comuns, numa obra do género, é a dificuldade em identificar de que lado está o bem ou o mal. Norfolk não deixa de fazer notar o colaboracionismo romeno (saudosismo do governo austro-húngaro?) com os invasores alemães, numa localidade onde as pessoas eram convocadas para comparecerem ao Palácio da Cultura para aí serem fuziladas. Por outro lado, a desvalorização da questão nazi, no início da guerra, por alguns membros da comunidade judaica ao julgarem-se imunes porque crentes na protecção do poder das amizades influentes é apenas mais um dos lados delicados da questão.
Por outro lado, pessoas mobilizadas ao serviço da resistência como Ruth eram, não raro, estigmatizadas e achincalhadas por se confundirem com os colaboracionistas.
As sucessivas regressões de Sol a uma época passada e povoada de lembranças dolorosas traduzem uma tentativa desesperada de reconstituição do filme da Memória numa tentativa desesperada de contornar as armadilhas do Tempo, da interpretação pessoal dos factos, da tentação de preencher das lacunas com falsas verdades – ou verdadeiras mentiras – por forma a encobrir o silêncio.
Silêncio que esconde traição…denúncia sob tortura……vergonha…raiva…ânsia de vizinhança. As raízes das motivações que levam alguém a escrever um livro intitulado Na Sombra do Javali.
Afinal o que há de verdade naquilo que aconteceu com “os filhos de Téstio”, independentemente de ter acontecido há quatro milénios ou há poço mais de meio século atrás?
A caverna é, na realidade, a câmara de tortura, do corpo ou da mente, onde têm lugar todos sacrifícios ao apetite voraz do javali.
A frase-chave que leva ao desvendar da intenção de quem escreve, está bem patente nas linhas que se seguem:
Acreditas que o javali se recorda das suas vítimas?!
O javali apenas se lembra daqueles que o venceram.
Para o Autor, os judeus de toda a Europa deveriam, na altura, ter-se unido e lutado, como os caçadores de Cálidon.
O último diálogo entre Ruth e Solomon denuncia a impotência e pusilanimidade daqueles que se colocam na posição de vítimas. A dada altura, todas as personagens trocaram, em determinado, momento de papéis. Até Sol. Até Thyella. Não o puderam evitar.
Terá vencido o javali, afinal?
Cláudia de Sousa Dias