“Um Pintor na Corte” de Sonia Overall (Civilização)
Após uma carreira consolidada como crítica e editora, Sonia Overall decide começar, ela própria, a produzir obra literária. Um pintor na Corte é o seu primeiro romance editado em Portugal.
A Autora dedicou grande parte do seu tempo consagrado à produção deste romance, à pesquisa sobre a pintura do período Tudor e, em particular, à vida e obra do mestre Hillyarde, o pintor-mor do período final do reinado de Elizabeth I.
O tema central de Um Pintor na Corte gira à volta da rede de intrigas que se gera dentro e à volta das oficinas de pintura, especializadas em retratos de figuras eminentes da corte. Tratando-se de um regime totalitário, uma vez que a monarquia absolutista da “rainha Virgem” como então lhe chamavam, dava margem para o triunfo dos bajuladores, isto é, daqueles que pintavam os seus clientes, favorecendo-os. Um facto que, logo à partida, coloca Rob em franca desvantagem, uma vez que o extremo realismo com que executa o seu trabalho, através de um estudo minucioso das feições, da cor e das proporções da estatura e do corpo humano, das articulações dos músculos e dos nervos da precisão com que executa cada ruga, cada movimento sugerido pelas sobrancelhas e pela veracidade com que imprime os esgares que conferem o colorido à personalidade de cada um, não agrada, de todo, a quem quer ser adulado.
Os quadros de Rob colocam-no num patamar muito superior em relação aos seus pares. Mas são, também, a sua própria ruína, uma vez que clientes vaidosos e hipócritas não gostam de ver expostos os seus pontos fracos.
Outro aspecto focado pela Autora é a forte concorrência enfrentada pela Guilda dos pintores britânicos face à escola flamenga dos Países-Baixos, que se traduz num acirrado sentimento xenófobo a todas as obras de arte ou artistas vindos “de fora”.
A principal falha na construção do romance é sobretudo ideológica, prendendo-se na persistência de alguns lugares comuns e estereótipos, como por exemplo, a forma como tanto o narrador como as personagens, se referem aos “católicos”, sempre pejorativamente tratados de “papistas” e retratados como pessoas “não confiáveis”. O principal anti-herói, Petty, amigo de Rob, surge no final como uma espécie de Judas do Renascimento agindo com astúcia e velhacaria, ao colocar as convicções políticas e religiosas – de pendor papista, claro – acima das relações de amizade e da ética, deixando-se levar por rancores mesquinhos.
Por outro lado, a questão emocional é desenvolvida a par da carreira de Rob através de uma estranha parceria com Kat, uma popular cortesã, cuja beleza consegue angariar ao pintor vários clientes importantes, colocando-o quase que numa posição de proxeneta.
Rob é um jovem belo e sensível, mas paradoxalmente frio e puritano, que se mantém, apesar de uma paixão platónica por Kat, fiel a um amor do passado – embora a muito custo –, fruto de uma promessa resultante da trágica morte da noiva, cujo acidente na carruagem, a caminho da Igreja, lhe expõe o interior do corpo: a carne dilacerada, as vísceras, o rosto exangue em contraste com o tom violáceo dos lábios. Uma imagem cujo impacto lhe fica gravado na memória de forma indelével e que acaba por servir de inspiração para o próprio trabalho, estimulando-o a representar os seus quadros com o maior realismo e fidelidade possíveis, tanto no que respeita às cores como às formas, passando a dedicar-se ao estudo anatómico dos corpos.
Por outro lado, a frustração de Kat impele-a a tentar encontrar um sucedâneo do acto sexual que não consegue consumar com Rob e, simultaneamente a procurar compensar o desejo com os inúmeros amantes que lhes proporcionam, também, o padrão de vida que ambos desejam…Mas Kat acabará por pagar um preço elevado por ser a musa de um pintor excêntrico como Dudley…
A maior qualidade na escrita de Sonia Overall reside nas fabulosas descrições onde o realismo impresso na escrita só se pode comparar à pintura executada pelo seu personagem.
Se não, veja-se as descrições que se seguem:
«Os olhos do homem, pequenos e de expressão porcina, expressavam malevolência e ossos fracturados» (pp. 51).
E sobre a Rainha, aos 50 anos:
«Ela era magnificente: aterradora, de faces magras e absurdamente pintadas. Maravilhosa, apesar de estar a aproximar-se da fase da Lua Nova da sua vida, tendo deixado a juventude para trás (…). A estrutura óssea da sua testa e nariz era saliente, de expressão fria, como mármore italiano desgastado pelo tempo e bem polido. Os seus olhos reflectiam argúcia e secura, eram escuros e perscrutantes (…). Conseguia ver as linhas com tanta clareza, cada aplicação da pintura que ela tinha na face, todas as partículas de pó branco, que tive a sensação de ser uma mosca que zunia e brilhava ao lado dela. Copiei todos os ângulos das suas bochechas onde, em tempos idos, tinham existido curvas suaves: passei a papel todas as concavidades que eram fruto do envelhecimento e rugas de preocupação. As linhas do nariz dela revelavam orgulho e vaidade, o queixo falava das suas obrigações e os olhos encovados davam-nos a saber das desilusões dos tempos em que era donzela. A fronte, que continuava macia, era régia (…) era aí que o peso das coroas fora sustentado. Desenhei tudo o que aí via: avareza e temor, azedume e contentamento, os desejos de uma mulher e os anseios pelos prazeres simples».
É óbvio que quem pinta assim fará mais inimigos do que aliados ao longo da careira, sobretudo num regime totalitário.
E quem escreve como Overall acabará por ser inevitavelmente um mestre após dedicar-se a tempo inteiro a uma actividade tão absorvente como a escrita.
Cláudia de Sousa Dias
A Autora dedicou grande parte do seu tempo consagrado à produção deste romance, à pesquisa sobre a pintura do período Tudor e, em particular, à vida e obra do mestre Hillyarde, o pintor-mor do período final do reinado de Elizabeth I.
O tema central de Um Pintor na Corte gira à volta da rede de intrigas que se gera dentro e à volta das oficinas de pintura, especializadas em retratos de figuras eminentes da corte. Tratando-se de um regime totalitário, uma vez que a monarquia absolutista da “rainha Virgem” como então lhe chamavam, dava margem para o triunfo dos bajuladores, isto é, daqueles que pintavam os seus clientes, favorecendo-os. Um facto que, logo à partida, coloca Rob em franca desvantagem, uma vez que o extremo realismo com que executa o seu trabalho, através de um estudo minucioso das feições, da cor e das proporções da estatura e do corpo humano, das articulações dos músculos e dos nervos da precisão com que executa cada ruga, cada movimento sugerido pelas sobrancelhas e pela veracidade com que imprime os esgares que conferem o colorido à personalidade de cada um, não agrada, de todo, a quem quer ser adulado.
Os quadros de Rob colocam-no num patamar muito superior em relação aos seus pares. Mas são, também, a sua própria ruína, uma vez que clientes vaidosos e hipócritas não gostam de ver expostos os seus pontos fracos.
Outro aspecto focado pela Autora é a forte concorrência enfrentada pela Guilda dos pintores britânicos face à escola flamenga dos Países-Baixos, que se traduz num acirrado sentimento xenófobo a todas as obras de arte ou artistas vindos “de fora”.
A principal falha na construção do romance é sobretudo ideológica, prendendo-se na persistência de alguns lugares comuns e estereótipos, como por exemplo, a forma como tanto o narrador como as personagens, se referem aos “católicos”, sempre pejorativamente tratados de “papistas” e retratados como pessoas “não confiáveis”. O principal anti-herói, Petty, amigo de Rob, surge no final como uma espécie de Judas do Renascimento agindo com astúcia e velhacaria, ao colocar as convicções políticas e religiosas – de pendor papista, claro – acima das relações de amizade e da ética, deixando-se levar por rancores mesquinhos.
Por outro lado, a questão emocional é desenvolvida a par da carreira de Rob através de uma estranha parceria com Kat, uma popular cortesã, cuja beleza consegue angariar ao pintor vários clientes importantes, colocando-o quase que numa posição de proxeneta.
Rob é um jovem belo e sensível, mas paradoxalmente frio e puritano, que se mantém, apesar de uma paixão platónica por Kat, fiel a um amor do passado – embora a muito custo –, fruto de uma promessa resultante da trágica morte da noiva, cujo acidente na carruagem, a caminho da Igreja, lhe expõe o interior do corpo: a carne dilacerada, as vísceras, o rosto exangue em contraste com o tom violáceo dos lábios. Uma imagem cujo impacto lhe fica gravado na memória de forma indelével e que acaba por servir de inspiração para o próprio trabalho, estimulando-o a representar os seus quadros com o maior realismo e fidelidade possíveis, tanto no que respeita às cores como às formas, passando a dedicar-se ao estudo anatómico dos corpos.
Por outro lado, a frustração de Kat impele-a a tentar encontrar um sucedâneo do acto sexual que não consegue consumar com Rob e, simultaneamente a procurar compensar o desejo com os inúmeros amantes que lhes proporcionam, também, o padrão de vida que ambos desejam…Mas Kat acabará por pagar um preço elevado por ser a musa de um pintor excêntrico como Dudley…
A maior qualidade na escrita de Sonia Overall reside nas fabulosas descrições onde o realismo impresso na escrita só se pode comparar à pintura executada pelo seu personagem.
Se não, veja-se as descrições que se seguem:
«Os olhos do homem, pequenos e de expressão porcina, expressavam malevolência e ossos fracturados» (pp. 51).
E sobre a Rainha, aos 50 anos:
«Ela era magnificente: aterradora, de faces magras e absurdamente pintadas. Maravilhosa, apesar de estar a aproximar-se da fase da Lua Nova da sua vida, tendo deixado a juventude para trás (…). A estrutura óssea da sua testa e nariz era saliente, de expressão fria, como mármore italiano desgastado pelo tempo e bem polido. Os seus olhos reflectiam argúcia e secura, eram escuros e perscrutantes (…). Conseguia ver as linhas com tanta clareza, cada aplicação da pintura que ela tinha na face, todas as partículas de pó branco, que tive a sensação de ser uma mosca que zunia e brilhava ao lado dela. Copiei todos os ângulos das suas bochechas onde, em tempos idos, tinham existido curvas suaves: passei a papel todas as concavidades que eram fruto do envelhecimento e rugas de preocupação. As linhas do nariz dela revelavam orgulho e vaidade, o queixo falava das suas obrigações e os olhos encovados davam-nos a saber das desilusões dos tempos em que era donzela. A fronte, que continuava macia, era régia (…) era aí que o peso das coroas fora sustentado. Desenhei tudo o que aí via: avareza e temor, azedume e contentamento, os desejos de uma mulher e os anseios pelos prazeres simples».
É óbvio que quem pinta assim fará mais inimigos do que aliados ao longo da careira, sobretudo num regime totalitário.
E quem escreve como Overall acabará por ser inevitavelmente um mestre após dedicar-se a tempo inteiro a uma actividade tão absorvente como a escrita.
Cláudia de Sousa Dias