Artur Carlos Maurício Pestana dos Santos é conhecido pelo pseudónimo de Pepetela, tendo nascido em Benguela, a 29 de Outubro de 1941. A sua obra reflecte sobre a história contemporânea de Angola e os problemas que a sociedade angolana enfrenta. Durante a guerra colonial, Pepetela, sendo angolano de ascendência portuguesa, lutou juntamente com MPLA (Movimento Popular de Libertação de Angola)pela independência daquele país, então uma colónia portuguesa. A sua obra nos anos 2000, na qual se enquadra o presente romance, critica a situação angolana, cujos textos são marcados por um estilo vincadamente satírico, onde se inclui a série policial Jaime Bunda. As suas obras mais recentes também são, para além de Predadores onde critica asperamente as classes dominantes de Angola, O Quase Fim do Mundo, uma alegoria pós-apocalíptica, e O Planalto e a Estepe, que examina as ligações entre Angola e outros países ex-comunistas. Licenciado em Sociologia, Pepetela é docente da Faculdade de Arquitectura da Universidade Agostinho Neto em Luanda.
Em Predadores, a corrupção do homem pelo homem é caracterizada como uma psicose social responsável pelo apodrecimento da estrutura burocrática que sustenta o mecanismo de funcionamento das Instituições de um Estado, quando este se alia ao crescimento desregulado do capitalismo selvagem. Neste romance, o Autor propõe-se dissecar, expondo exemplos concretos da forma como evolui a estrutura económica de um país – passando por vários regimes políticos e sofrendo vários tipos de influência social, cultural e ideológica, que se arrasta ao longo de várias décadas com deficiências estruturais graves, apesar da imensidade dos recursos naturais de que dispõe – ao longo de um período que abarca quatro décadas. Ao lermos uma obra desta envergadura ficamos conscientes até que ponto o estado actual daquela economia não é alheio às consequências da descolonização portuguesa, nem ao teor das relações que o mesmo país recém-independente estabeleceu, desde então, com as principais super-potências económicas – e bélicas – mundiais, interessadas apenas em explorar os recursos naturais locais em proveito próprio, mais do que em desenvolver a região.
Pepetela utiliza a acuidade e a frieza do olhar de sociólogo para inserir um conjunto de personagens fictícias, representativas da mentalidade e da cultura daquele país, sem esquecer os elementos cumulativos da cultura local que se fundiram ou foram sendo moldados pela influência externa, isto é, pela forma como se foram “casando” duas formas de viver diametralmente postas – o modo de viver africano, a cultura ancestral e a respectiva relação com os elementos locais, com a terra em si, e os invasores europeus e americanos.
O livro é, todo ele, tal como dá a entender o título, uma implacável crítica às classes dominantes, aos predadores, que exploram de forma “canibalesca”, os seres mais fracos da própria espécie.
A figura mais representativa desta classe é Vladimiro Caposso, novo-rico, oportunista, grande empresário e latifundiário, que exerce uma forte pressão no sistema bancário e político daquele país no sentido de obter privilégios e benefícios, no sentido de forjar leis que favoreçam os seus negócios de forma que não pareçam ilegais. Vladimiro Caposso é um ex-militante do Partido Comunista de Angola, que cedo deixa de ser, logo que se lhe apresenta outra forma mais fácil de obter mais poder e que lhe possa ser útil aos seus objectivos de enriquecer meteoricamente. A qualquer preço.
A filha mais nova, Mireille, é uma predadora mais soft, mais discreta. Trata-se de uma beldade, culta e inacessível, que gosta de brincar com as emoções dos que a amam, tal como um felino que se diverte com a presa antes de a matar, neste caso, de a dispensar.
Outro predador, mais frio e calculista, com ar vagamente lupino, acentuado pelos olhos claros e cabelos cinzentos como o pêlo do lobo do Alasca, é o investidor americano Wolf, é um dos poucos cuja inteligência rapace consegue superar a esperteza saloia de Caposso.
Do lado oposto à classe dos predadores, temos os idealistas que acreditam no fruto do trabalho, no treino intensivo e na preparação adequada ao exercício de uma dada profissão como é o caso do jovem engenheiro Nacib, filho de um sapateiro. O jovem consegue, com grande esforço e persistência, tirar um curso superior enquanto trabalha numa oficina de mecânica de um amigo do pai. Nos EUA, apercebe-se que as fronteiras sociais são um pouco mais diluídas do que no Velho Mundo, embora o controlo social seja muito maior - por exemplo, nota que os Americanos não são dados a manifestações afectivas em públicos por temerem a crítica social, reservando as efusões apaixonadas para o espaço privado. Ali, conhece uma jovem onde se relaciona de igual para igual, mas em África vive uma angústia constante, sentindo o peso das origens humildes da da condição sócio-económica operária da própria família, por se apaixonar por uma mulher de condição social muito superior.
O trabalho árduo não lhe permite enriquecer, apenas viver de forma um pouco mais confortável do que os pais, o mesmo acontecendo ao advogado idealista e honesto, defensor de causas perdidas que conhece quando tem de processar Caposso pelo desvio ilegal de um rio, que deixa várias povoações e pastagens sem água. É, sobretudo, a distância em termos sócio-económicos que interfere no seu relacionamento com Mireille. Com o desenlace da trama, damo-nos conta que não basta uma revolução para derrubar os muros erigidos por preconceitos e estereótipos, sendo necessárias várias décadas de trabalho duro e efectivo para produzir uma mudança subtil.
Mireille é uma jovem muito mais superficial do que aparenta. Preocupa-se apenas em fazer o que gosta, sem se preocupar com o bem estar-alheio, ao contrário da irmã, a altruísta e romântica Djamila.
A narrativa
A trama é construída mediante um vertiginoso jogo temporal de avanços e recuos. A estória inicia-se com a descrição de um crime, cuidadosamente premeditado e planeado ao mais ínfimo detalhe, de forma a encobrir pistas que mostrem tratar-se de um crime passional e, simultaneamente, incriminar uma entidade partidária rival do partido político amigo de Caposso.
Após o primeiro facto que introduz a estória ficcional, o Autor adiciona um elemento algo insólito: inicia um monólogo, onde explica a intenção da história, tece comentários pessoais, como uma voz externa à narrativa e, só então, faz a regressão temporal para explicar a construção e evolução da personalidade de Caposso e a forma como esta se encaixa na História do País, demonstrando como a elasticidade moral do personagem se torna directamente proporcional à riqueza obtida.
Por outro lado, as personagens que se apercebem do verdadeiro carácter de Caposso e não partilham dos mesmos ideais ocupam, cada vez mais, uma posição periférica no jogo de poder e influência, como é o caso do sogro, do filho mais velho do empresário, ou o jovem engenheiro, apaixonado por Mireille…
Quanto à posição assumida por Vladimiro na educação dos filhos, esta vai de um extremo ao outro: exigente com as filhas – apesar de se mostrar sempre mais condescendente com Mireille – quanto ao desempenho na escola e ao desejo que obtenham formação superior – mas permissivo com os filhos, aos quais não dá valor nem permite o menor grau de autonomia. No entanto, a todos eles, acaba por mutilar, de uma forma ou de outra, a personalidade, uma vez que lhe interessa realmente controlar as suas vidas e torná-los, a todos, dependentes da sua pessoa.
Mireille sabe, no entanto, aproveitar o afecto incondicional que lhe dedica o pai, para fazer apenas o que gosta, tirando partido da adoração que este lhe dedica, optando por uma vida de diletante.
O combustível “verde”
Pepetela explora, com realismo e evidente sentido de humor, o hábito generalizado de aplicação de subornos à população em geral, sob a forma de generosas gorjetas – sobretudo em dólares, vulgarmente chamadas de “gasosas”. A prática de atribuição de “gasosa” é transversal, atravessando todas as camadas sociais. A própria aplicação da lei está condicionada pelo montante de que se pode dispor para atribuição destas “gasosas” que funcionam como combustível para que a “máquina” ou estrutura burocrática desbloqueie os processos e trabalhe efectivamente.
A cobiça dos “outros”
O Autor dedica, praticamente, um capítulo inteiro a explicar as razões pelas quais um empresário americano possa ter interesse em investir num país como Angola, através do olhar de Nacib, enquanto este estuda nos EUA.
É através dos passos de Nacib que também ficamos a conhecer a vida nos bairros pobres em Angola, as perigosas deambulações dos meninos de rua, as tradições ancestrais que resultam em autênticos atentados aos direitos humanos – como as mutilações genitais – e que colocam a vida de muitos adolescentes em risco, a que se junta a falta de comida, a insalubridade e a exposição por parte dos jovens a situações de elevado perigo eminente.
Parece haver, no entanto, uma minoria que prefere não escolher o enriquecimento a qualquer custo e acreditar num ideal, ao apostar na moderação das ambições na qualidade do ensino e no trabalho persistente… é o caso de Nacib quando se alia ao advogado das classes mais pobres, José Matias…
O mosaico sócio-económico completa-se com a esquematização da forma como as divisas públicas são desviadas para off-shores e arrecadadas pela especulação financeira, servindo-se os caciques de lacaios que trabalham em instituições do Governo ou à frente da gerência de instituições bancárias, os quais enriquecem entupidos de …”gasosas”, como o funcionário bancário a quem Caposso apelida de “Rato”.
O assedio sexual no trabalho e a prostituição infantil feminina perecem ser, também, práticas institucionalizadas. O primeiro, sobrevive e perpetua-se devido ao silêncio e ao medo de perder o trabalho, enquanto o segundo é alimentado pela fome e pela ignorância, das próprias famílias, que vendem as filhas ou, na melhor das hipóteses, na exploração sexual das mesmas jovens, optando pelo relaxamento das normas de forma a obter benesses. Toda a situação é sustentada pelo extraordinário declive resultante da assimetria de rendimentos que cava o fosso entre pobres e ricos.
As pausas, cheias de sarcasmos, contém apartes do narrador e o mérito de conseguir aligeirar um pouco a trama, ao colocar uma nota de humor a raiar a sátira.
Também a decisão do Autor em introduzir um detalhado glossário no final do livro, contendo o léxico local, profusamente utilizado no texto, é uma mais-valia para o romance, facilitando a compreensão do mesmo, o qual adquire verosimilhança com a introdução dos regionalismos.
A trama obedece a uma estrutura descontínua, cheia de avanços e recuos, como uma espécie de dança entre passado e presente a explicar, de forma dinâmica, a origem da fortuna do protagonista e em paralelo com a decadência da Angola contemporânea, face à corrupção generalizada.
A vulgaridade, patente na exibição do novo-riquismo de Vladimiro Caposso, o qual se mostra mais preocupado com as aparências para atrair investidores do que com a saúde das empresas que possui, acaba por fazê-lo negligenciar a rentabilização de alguns dos seus bens, não pagando aos trabalhadores. Uma postura que terminará por levá-lo a ser engolido por outros predadores maiores do que ele.
Este Vladimiro simboliza a arrogância de uma classe dirigente, cujo principal traço de personalidade consiste em desprezar as pessoas em geral, desde a secretária, de fidelidade canina, a que chama de Fátima Magricela, até ao genro que lhe compra parte das acções no empório.
A única pessoa que parece conquistar-lhe, momentaneamente, algum respeito é o Inspector Celso Cardoso, incorruptível funcionário de Polícia, exímio cumpridor da Lei, excepto quando recebe expressamente – e por escrito – ordens das chefias em contrário.
As referências pejorativas no léxico popular, relativamente ao regime sul-africano, estão patentes no uso corrente da expressão sul-africães com evidente sarcasmo, a denunciar um omnipresente sentimento de desconfiança em relação a tudo o que é originário da África do Sul ou que lembre o regime do apartheid.
Mas o caciquismo na política e o modus operandi dos grupos de pressão são especialmente evidentes quando se trata de censura à comunicação social: no romance, um jornalista é despedido por ter publicado um artigo onde é comentada o comportamento inconveniente de Caposso, durante um concerto, durante o qual falava em voz alta ao telemóvel.
A reviravolta acontece na parte final da trama, onde presenciamos um Vladimiro numa posição económica muito mais frágil, obrigado a adoptar uma atitude mais discreta pois corre o risco de deixar de ser intocável. Vladimiro é um predador demasiado confiante, por deixar a descoberto alguns pontos vulneráveis. O final do romance tem a ver não tanto com a visão optimista e algo lírica de uma justiça triunfante, mas com uma percepção darwinista de uma sociedade, onde a sobrevivência cabe aos mais aptos ou aos mais trapaceiros e não necessariamente aos mais inteligentes. Onde os velhos predadores são apenas substituídos por outros mais hábeis, enquanto o sistema de sobrevivência baseado na lei do mais forte tende a perdurar.
Um livro inquietante, céptico e pessimista mas que, nas entrelinhas, deixa perceber acreditar no poder da denúncia...
Cláudia de Sousa Dias