Bartleby é, para quem ainda não conhece, uma personagem de Hermann Melville, escritor e poeta que influencia consideravelmente a escrita deste autor contemporâneo de língua castelhana. A personagem Bartleby serve de inspiração à obra de Enrique Vila-Matas por lhe chamar a atenção a passividade e propensão de todos os Bartleby da vida quotidiana para nada fazer e para viver, dia após dia, sem concretizar nenhum objectivo. Trata-se, dno entender do Autor, de uma casta de seres humanos que se destaca pelo seu carácter anódino. Nesta obra, Vila-Matas dedica-se a escrever sobre “escritores bartleby”, isto é, aqueles que não escrevem ou estão longos períodos inactivos, paralisados devido a prolongadíssimas crises de inspiração, adiando a hora de escrever ad infinitum…
Ao longo da presente obra, o Autor dedica-se a explorar um conjunto de situações concretas que envolvem os detalhes e o porquê de tão pouca produtividade literária. Enrique Vila-Matas tornar-se-á, com esta publicação, no perito do silêncio na escrita, convertida para o português pela tradução de José Agostinho Batista e Jean de la Bruyère.
A glória ou o mérito de alguns homens consiste em escrever bem; o de outros consiste em não escrever.
O narrador de Bartleby & Companhia não é propriamente um homem que prime pela beleza física, sendo dotado de uma pronunciada corcunda – a figura do “corcunda” aparece também num dos contos de Vila Matas na obra Filhos sem Filhos, a qual será também objecto de análise neste blogue. Este narrador começa por declarar nunca ter tido sorte com as mulheres, para além viver uma existência durante a qual nada se passa de extraordinário, uma vida perfeitamente Bartlebyniana, ou seja, banal. O homem deseja, no entanto, escrever. É então que decide colmatar a falta de argumento para criar uma estória com o talento para a análise e assim, descobrir as razões pelas quais tanta gente com um excelente potencial para a escrita ou possuidores de um elevado grau de inteligência e cultura, simplesmente não escrevem ou deixam repentinamente de o fazer.
O narrador propõe-se identificar um amplo espectro de autores que sofrem da Síndrome de Bartleby no que toca à produção literária. Vila-Matas classifica este estado de alma como O mal endémico das letras contemporâneas. A pulsão negativa ou a atracção pelo nada que faz com que certos criadores, embora tendo a consciência literária muito exigente (ou talvez precisamente por isso) nunca cheguem a escrever ou escrevem um ou dois livros e depois renunciam à escrita ou, depois de avançarem com uma obra fiquem, um dia, paralisados para sempre.
A estes, Vila-Matas chama-lhes escritores da literatura do Não, descrevendo-os de forma algo anedótica e às motivações secretas de alguns dos mais apelativos casos de criadores que renunciaram à escrita, salientando que estes acreditam já ter explorado todas as temáticas possíveis e imagináveis pelo que a produção literária nos dias de hoje já só encontra inspiração oriunda da pulsão negativa: “Só do Não pode surgir a escrita do porvir”.
Alguns aspectos específicos mais emblemáticos da obra
Enrique Vila-Matas é da opinião de que “há tantos escritores quantas as formas de abordar a literatura”.
Há, segundo as suas palavras mesmo aqueles que se apagam para deixar que outros assinem as suas obras, como é o caso da autora de “O Divã”, um conto assinado por Göethe e escrito pela sua amante.
Bartleby & Companhia é um delicioso caderno de notas de rodapé sobre aqueles escritores que nunca o foram ou que, por qualquer motivo, deixam de o ser.
Abrange os dramas pessoais de almas sensíveis como a de Robert Walser o qual sabia que escrever que não se pode escrever, também é escrever, lembrando vagamente Mario Vargas Llosa em A Tia Júlia e o Escrevedo”, ou o pessimismo de Samuel Beckett, o qual afirma que um dia, até as palavras nos abandonam.
Enrique Vila-Matas, através da máscara do seu narrador, ocupa-se em analisar a relação de cada um deles com a escrita e, por sua vez, com o mundo que os rodeia, incluindo a família, as mulheres, o sexo, os editores, os críticos, os colegas e, claro está, a própria literatura.
A este respeito, são observadas a forma como cada qual se propõe desobedecer aos cânones da escrita e a desafiar a intemporalidade dos temas tratados, desde a tendência para a melancolia ou para a depressão, até à inevitável crise temática pela ausência de ideias.
O leque de autores sobre os quais este narrador de Vila-Matas dedica a sua atenção é muito mais vasto do que se julga à primeira vista e inclui (pasme-se) escritores clássicos, mundialmente famosos como Franz Kafka, Marcel Proust e Fernando Pessoa, para além dos já esperados escritores que se movem na semi-obscuridade, fruto do estigma de “autor local” ou que tiveram somente o seu apogeu em determinado período específico ao da História da Literatura e se tornaram obsoletos com o passar dos anos.
Dentro dos clássicos situam-se ainda nomes insuspeitados e outros nem tanto: Rimbaud, como sabemos esgota a sua criatividade no final da adolescência, no auge da juventude pois com uma precocidade genial, já tinha escrito toda a sua obra e caiu no silêncio literário que duraria até ao fim dos seus dias.”
Mas a Sócrates ninguém se teria, até à presente obra, lembrado de atribuir-lhe a Síndrome de Bartleby:
«Até 1836 ninguém se atrevia a recordar qual era a verdadeira personalidade de Sócrates; atreveu-se Louis Férdinand Lélut em Du démon de Socrate . Chega a afirmar que “as sua excursões mentais de carácter alucinado podiam ter muito a ver com a sua recusa da escrita. Porque não é grato para ninguém dedicar-se a inventariar por escrito as suas próprias alucinações.»
O desfile dos desmotivados, permanentes ou temporários, prossegue com Hölderlin, Juan Rulfo, Marcel Duchamp. Em contrapartida, para os escritores do Sim o importante é preservar a memória, dedicando-se furiosamente à escrita.
A literatura, por muito que nos apaixone negá-lo, permite resgatar do esquecimento tudo isso sobre o qual o olhar contemporâneo, cada dia mais imoral, pretende deslizar com a mais profunda indiferença.
Mas também o humor negro não deixa de estar presente neste caderno de notas de rodapé nesta antologia dos Bartleby de Enrique Vila-Matas. É na verdade impossível ler a maior parte destes textos sem deixar escapar uma sonora gargalhada:
Assim, pois, Joseph Joubert passou a vida à procura de um livro que nunca escreveu, embora, se olharmos bem, o escrevesse sem o saber, pensando em escrevê-lo.
Ou então quando imagina uma suposta troca de correspondência entre um Autor Não (ou autor Bartleby) e um Autor Sim:
“Inventei que Derrain me escrevia. Como o Autor de Eclipses Litteraires não se digna responder à minha carta, decidi escrever a mi8m próprio, assinando Derrain”.
Isto a propósito de um prefácio não escrito por Baudelaire para “As Flores do Mal”, onde o poeta do spleen apelaria aos escritores para não revelarem os segredos do ofício, as fontes de inspiração ou de transfiguração da realidade ou mesmo de dar a entender quão estrita é, muitas vezes, a linha que demarca a fronteira entre charlatanismo e imaginação.
Uma agradável surpresa é a abordagem da lírica portuguesa sob este prisma por Enrique Vila-Matas que nos chega, em primeiro lugar, pela divulgação sublime relação de amizade entre Miguel Torga e o poeta mais ou menos obscuro Edmundo Bettencourt, a propósito da Síndrome de Bartleby, através da qual se explora, ainda, o ambiente propício à depressão e a recusa categórica dos falsos estimulantes para a criatividade. Daqui passa a aludir-se ao recurso ao ópio por parte de alguns escritores como Quincey, cuja respectiva nota de rodapé revela uma das mais hilariantes passagens da obra, ao frisar que a sua obra consiste no “texto fundador da História das Letras Drogadas”, com que o Bartleby de Vila-Matas remata, fumando um cigarro:
O fumo cega os meus olhos. Sei que devo terminar, que cheguei ao fim desta nota de rodapé. Mas não vejo quase nada, não posso continuar a escrever, o fumo transformou-se perigosamente na minha síndroma de Bartleby…
O autor é, sobretudo, mordaz. Utiliza o mais virulento sarcasmo nalgumas das suas personagens, eu diria mesmo em quase todas, mas particularmente direccionado ao artista que decide chamar a atenção sobre a sua pessoa mas não encontra nada mais criativo para dizer a não ser que: A arte é uma estupidez. A frase é de um autor mexicano sobre o qual se dizia que no seu trágico desespero, arrancava brutalmente os cabelos da sua peruca…
Pessoa é aqui mencionado pelo brusco desaparecimento do seu heterónimo de inspiração escassa, o Barão de Teives, mas as tiradas mais violentas são dirigidas ao poeta italiano Giacomo Leopardi, a propósito de algumas das suas frases supostamente hiper-dramáticas:
“Sou tímido com as mulheres, logo deus não existe”.
Em suma, para a personagem de Vila-Matas, ao homem não criativo – claro que o virote é, sarcasticamente, dirigido aos críticos que não são capazes de acrescentar nada à literatura, a não ser de falar do que escrevem os outros, a autora deste blogue inclusive – resta-lhe dissertar sobre a falta de criatividade.
O homem não criativo pode atribuir-se uma força superior à do criativo, pois a este só é possível o poder de criar enquanto aquele dispõe desse mesmo poder mas, para além disso, tem o poder de renunciar a criar.
É claro que o não criativo é, por Excelência, o leitor se encontra numa posição superior à daquele que escreve, uma vez que terá avaliar o que este escreveu. O leitor e o crítico recusam-se, o entanto, submeter-se à posição de avaliado.
Envolvendo o acto de escrever, o autor debruça-se sobre as pulsões contraditórias que convidam o escritor a produzir obra, tendo muitas vezes, para isso de renunciar à vida ou vice-versa – o que explica a atitude de escritores como Rimbaud.
Vila-Matas explora, também as contingências dos homens com elevado potencial, mas que que fruto das pressões sociais a que são sujeitos se transformam em homens comuns, em Bartlebys sem ideias originais ou criatividade, diluindo-se a sua capacidade criativa em objectivos materiais exigidos pelas convenções da sociedade em que vivem. O exemplo escolhido é o de como um estudante brilhante e refinado se transforma num indivíduo, gordo e apagado, embora próspero, num típico pai de família da classe média alta. Outro alvo da sua ironia são aqueles que, ao recusarem-se constantemente a escrever, acusam os génios de lhes roubarem as ideias: Queria escrever algo como O Memorial do Convento mas Saramago antecipou-se-me.
É, também, abordada a questão da ambição daqueles que desejam eclipsar todos os outros grandes escritores até à data, fazendo da literatura um conjunto de cânones rígidos que actuam como as tábuas de Moisés, mas dada a impossibilidade de tal empreitada, nunca chegam a escrever.
Na opinião de Vila-Matas os artistas do Não sofrem, ao contrário dos gregos da Antiguidade Clássica, que eram estimulados pela hybris, de um ascetismo doentio que os transforma em monstros, terminando por citar, mais uma vez, Franz Kafka, o seu autor paradigmático: Um escritor que não escreve é um monstro que convida à loucura, de que a escrita quando jorrasse seria a terapia ideal.
E mais não digo. Vou começar a escrever.
Já.
Cláudia de Sousa Dias