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Blog sobre todos os livros que eu conseguir ler! Aqui, podem procurar um livro, ler a minha opinião ou, se quiserem, deixar apenas a vossa opinião sobre algum destes livros que já tenham lido. Podem, simplesmente, sugerir um livro para que eu o leia! Fico à espera das V. sugestões e comentários! Agradeço a V. estimada visita. Boas leituras!

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Bibliomaníaca e melómana. O resto terão de descobrir por vocês!

Monday, February 28, 2011

"Musk" de Percy Kemp (Bizâncio)


A tragicomédia da sedução olfactiva e animal contidas num num frasco de perfume em vias de extinção é a essência deste romance. "Musk" é história da loucura obsessiva do agente secreto Armand Eme (M de Musk) cujo hobby preferido é a sedução, num divertida paródia aos filmes de 007.
O personagem é um homem narcisista e meticuloso ao extremo - sobretudo no tocante ao cuidado da sua toilette -, vive apenas em função de si mesmo, de tal modo que a vaidade parece ser tudo o que lhe resta já que, na sua vida, não há mais ninguém suficientemente importante a quem dedicar a atenção nos tempos de ócio...

Esta é, talvez, a explicação para que esta personagem se sinta completamente desorientada quando se vê, subitamente, privada da sua principal arma de sedução: o perfume Musk.

Este aroma, devido à imposição da nova gerência da empresa que o produz, é retirado do mercado, sendo substituído por uma nova fórmula, com o objectivo de satisfazer os novos objectivos de produção e não necessariamente para proteger a espécie animal que contribui para o seu fabrico. O que obriga a que o musk, produzido pelas glândulas sexuais de uma espécie de antílope em vias de extinção, deixe de ser comercializado. Em seu lugar, é colocado um produto de odor semelhante, mas de origem sintética. A protecção da espécie e as exigências do mercado obligent.

E o senhor Eme vê-se então despojado, espoliado do seu mais eficaz afrodisíaco. Que lhe é tanto mais necessário quanto maior o inexorável avanço da idade que o vai, lentamente, privando dos seus encantos naturais. Conservados pela ilusão mágica do perfume - autêntico efeito placebo.

Consequentemente, a história gira em torno das mais extravagantes estratégias elaboradas pelo protagonista de forma a conseguir arrecadar a maior quantidade de perfume possível de tão erógeno aroma e prolongar um pouco mais a vida, a juventude e a capacidade de suscitar desejo no sexo oposto.

A história de Musk ilustra um pouco aquilo que acontece com as grandes marcas de alta perfumaria. Até há algumas décadas atrás, estas dedicavam-se a elaborar fórmulas de luxo destinadas ao consumo de uma élite. Hoje em dia, o mercado da alta perfumaria estende-se às massas. É, pois, necessário produzir em grandes quantidades e com o mínimo de custos, obrigando à substituição de alguns ingredientes, extremamente caros, ou de difícil obtenção -, como é o caso do âmbar cinzento, há algum tempo atrás mencionado nas notícias, proveniente das baleias-cachalote (presente em perfumes de marcas de tradição parfumeur), agora substituído porum ingrediente de odor semelhante proveniente das agulhas de pinheiro; ou do célebre fixador do desaparecido perfume Joy, de Jean Patou, cujo extracto implica o sacrifício de inúmeros exemplares de uma rara espécie de escorpião, o que obrigou a retirar o perfume do circuito comercial português, encontrando-se à venda apenas num número bastante restrito de países entre os quais a França e E.U.A.

A escolha do tema, por parte do Autor, teve como inspiração a substituição dos ingredientes da sua marca de chocolates preferida, juntamente com uma pequena alteração do respectivo invólucro. Esta situação levou-o a estabelecer um paralelismo com o mundo da perfumaria, construindo uma personagem que faz lembrar um pouco a obsessão de Jean-Baptiste Grenouille, o vilão de O Perfume de Patrick Süskind.

Um conto para desfutar durante o fim-de-semana do bom humor ao estilo britânico de Percy Kemp.

Cláudia de Sousa Dias

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Tuesday, February 22, 2011

“Blues de um Gato Velho” de Óscar Málaga Gallegos (Teorema)


Escrevi este livro porque compreendi que a palavra é água sagrada, rio inexplicável, o único que sulcam os anjos que esperam reunir-se no Egipto.


Oscar Málaga Gallegos


Este Autor peruano natural de Lima, veio ao mundo em 1946 e aprendeu a ler e aos dois anos e meio de idade. Largos anos mais tarde, estudou Letras na Universidade Nacional de S. Marcos e emigrou, já nos anos 1970, para França onde estudou Sociologia, na Sorbonne.


Nos anos 1980, regressou ao Peru onde foi editor da revista cultural Caretas. Mais tarde, prosseguiu a carreira de editor mas em Pequim, na versão escrita em castelhano da revista China Ilustrada, acumulando a função de professor de Cultura Latino-americana e Língua Espanhola, em várias universidades daquele país. Aí conhece Xi-Pei a jovem oriental que é, actualmente, sua companheira. É, além de tudo, um poeta prolífico, várias vezes premiado.


A acção de Blues de um Gato Velho decorre, precisamente, em Pequim, no Verão de 1995, cinco anos após a violenta repressão da manifestação estudantil na Praça de Tien- a-men, pelo Exército Chinês.


Durante algum tempo, partilhei o meu destino com uma rapariga que lia Charles Bukowski na versão original. Já foi há tanto tempo, que recordo cada segundo com uma precisão satânica. Lia-o com a ajuda de uma dicionário de Oxford. Queria aprender inglês. Quando sorria, dava a impressão de se mostrar perdida, no meio de um grupo de turistas fugidos do Inferno.


A acção do romance tem muito de auto-biográfico, o protagonista e narrador - que parece ser uma projecção do próprio Oscar Málaga Gallegos -, acumula também as funções de escritor, jornalista, editor e docente. Durante a estadia naquele país, apaixona-se por uma jovem pequinesa, de aspecto felino: cabelos negros e olhos dourados, à semelhança dos gatos que lhe povoam o apartamento (a descrição é o decalque perfeito da imagem da lindíssima Xi-Pei, a quem é dedicado o livro). Os dois protagonistas são fulminados por uma paixão à primeira vista, a bordo de um autocarro lotado, sufocados pelo calor dos corpos comprimidos, espalmados como numa lata de conservas dentro da qual a jovem se tenta refrescar abanar-se com um livro de Charles Bukowski, a fazer as vezes de leque. O primeiro encontro de ambos, a bordo do autocarro onde até o leitor se sente quase a sofrer de morte por asfixia, é uma das passagens mais sensuais do romance.


Erotismo sem tabus x Lirismo Apaixonado


A obra de que aqui tratamos é caracterizada por um discurso pautado por um refinado erotismo, no qual a emoção e a sensualidade são exploradas de forma a raiar o sublime e o sexo é imbuído de poesia telúrica, apesar de temperada por um humor sombrio que serve de contraponto. No discurso do narrador há como que uma nuvem cinzenta de melancolia a pairar sobre a fervilhante imaginação do protagonista. Mas não só. A mesma nuvem aziaga tende a sobrevoar os dois amantes, semeando-lhes as vidas de fortes contrastes entre luz e sombra, conferindo intensidade dramática à acção. A mesma nuvem de melancolia, ou spleen Baudelairiano, desloca-se por todo o apartamento, tal como os belos gatos negros de olhos dourados como os de Sha-Li-Pi, a protagonista e amante do homem que escreve a estória. Trata-se de uma jovem extremamente dotada e inteligente que fala todas as línguas, como os pássaros. Blues de um Gato Velho é uma estória que, no entender do autor, tem o seu quê de épica suicida cuja inspiração vem do escritor e poeta norte-americano Charles Bukowski – o “Gato Velho”. Oscar Málaga Gallegos traça, aqui, os contornos de uma paixão obsessiva e trágica, por se adivinhar interrompida de forma abrupta e se saber finita.


À paixão carnal entre o professor e Sa-Li-Pi junta-se o fascínio pela música jazz e uma incontestável adoração por gatos pretos com olhos de âmbar. Gatos que assistem e comungam do acto erótico dos humanos como se assistissem a um ritual religioso, sagrado, do qual fazem parte integrante. O casal venera estes animais quase tanto como os antigos Egípcios, que identificavam o amor erótico e a sensualidade como apanágio deste animal.


oda a vida gostei de gatos. Tenho sete. A primeira vez que ouvi Miles Davis, vivi uma emoção extraordinária (…)


- São gatos, belos miados de gatos, cheios de desesperados destinos de gatos”.


Na saudade que emana das palavras do narrador, encontramos a certeza de um destino imerso no vazio que se segue à perda e o desespero da voracidade com que é saboreado cada segundo de prazer. Um desespero que reside no fundamento da crença de que o amor vivido pelos humanos é só um interregno, a visão do paraíso antes da entrada no vazio…no nada.


Os dois amantes gostam, também, de vestir de negro, como os seus gatos. Afinal, trata-se da cor da diferença e do drama. E partilham a roupa, tal como partilham os corpos.


Os próprios gatos parecem actuar como uma extensão ou prolongamento da languidez sensual dos humanos. Ou vice-versa. Por vezes parece que é o erotismo dos gatos que é transferido para o casal por uma espécie de osmose.


Admiro essa estranha calma com que lambem, dia após dia, as partes mais sagradas do seu corpo de gatos. Pensei sempre que refrescavam as feridas de um amor antigo. Que têm a recordação de outra língua gravada na pele, que lamber-se é a sua nostalgia de gatos.


A crença no destino final das almas dos gatos quando morrem ou dos seres humanos com alma de gato” para o narrador de Blues de um Gato Velho, é chegarem, numa viagem final percorrida pelas vias etéreas do espírito, ao Egipto, onde antes eram adorados.


Por outro lado, o par romântico deste conto parece usufruir de um especial talento para encontrar o potencial erótico nos objectos mais inverosímeis, como se neles estivesse contida uma sensualidade secreta.


O protagonista, a quem Sha-Li-Pi chama provocadoramente de “Charles” é uma personagem envolvente, cujo lirismo enreda a amada como a aranha envolve o insecto que pretende devorar, nas suas malhas de seda. Sha-Li-Pi apelida-o de “vampiro” por lhe parecer que é o tipo de homem que chupa o sangue , a vontade, a autonomia, a independência de toda a gente.


É nesta metáfora que está, sem dúvida, contido o germén da destruição do relacionamento de ambos e que indicia a fase descendente da acção do romance.


A voz do narrador divaga, ainda, como uma ave nocturna ou um mamífero voador pela noite de Pequim, dando origem a algumas das mais belas passagens do romance, em deslumbrantes fragmentos de prosa poética que parecem ter ido beber à fonte dos poetas do romantismo, embora coloridos pelos lamentos melancólicos do Jazz:


As ruas perdiam-se, vorazes, predadoras, no infinito azul-escuro de Pequim, desfaleciam sem heroísmo na noite, que mantinha aberta a boca, incandescente, da Lua. Só sobrevivia um sentimento azul-escuro(blue).


Ou então. o discurso de Sha-Li-Pi, retirado de um diálogo com o amante:


- Os vampiros não suportam feridas.


(…) quando suspeitam que foram feridos, atiram-se desde o céu, de noite, e esmagam a cabeça contra o pavimento.


- É essa a arte dos vampiros, chupam-nos a nossa felicidade e, em troca, entregam-nos a sua dor. Esta é a tua dor.


(…)


- Vivo cheia da tua dor.


(…)


- É esse o segredo dos vampiros, transformam-nos em anjos malditos da desolação. Enchem-nos da sua dor infinita, que nos inunda as veias de solidão


(…) e nunca poderemos devolver-lhes essa dor que nos entregam porque sem ela deixamos de existir…


- Os desejos alimentam a vida?


- Sha-Li-Pi, a vida não é mais do que a forma como os desejos respiram (resposta de Charles).


Em Blues de um Gato Velho a prosa poética de OMG parece superar-se, a cada passo, na procura do sublime. Não existe uma única frase que não seja bela. A mesma prosa está, muitas vezes, impregnada de tragicidade, devido ao pânico, causado por um sentimento de perda eminente e pela consciência de que o futuro nunca poderá ser mais belo do que o presente.


Apesar de haver uma única cena a causar um certo incómodo ou impacto desagradável em qualquer leitor adorador de gatos, a beleza funde-se, quase continuamente, no impudor que com extraordinária mestria, o Autor o autor consegue sublimar em toda a obra, através da exaltação do prazer dos sentidos.


Histórias de Gatos


Sha-Li-Pi é como uma encarnação humana da deusa Bastet do antigo Egipto, a deusa da luxúria e do amor erótico, da alegria e da beleza, também ligada à música e à poesia. Bastet era, sobretudo, a deusa protectora das mulheres e os Egípcios viam a sua deusa em cada gato. No período Ptolemaico, foi associada a toda a espécie de excessos, sobretudo sexuais (Fonte: Wikipedia).


A corroborar esta associação entre a jovem e a deusa parece estar a seguinte passagem do texto, retirada da obra, que descreve Sha-Li-Pi em atitude de repouso, deitada, com os gatos enrolados à volta da sua cabeça e ombros, como um toucado:


O seu rosto (de Sha-Li-Pi) estava emoldurado por uma coroa de olhos dourados. Um longo manto de caudas pretas cobria os seus ombros nus. Ao lado de cada um dos seus seios, repousava uma cabeça preta.


Esta poderia ser a descrição de um antigo mural egípcio, retirada de um monumento antigo ou um dos túmulos do Vale dos Reis.


O nome de Sha-Li-Pi está associado, na cultura Oriental, à Peónia, que simboliza a lembrança de um passado marcado, também pelo signo da beleza e da graça. Trata-se de um nome a que está, também, associada a ideia de perda: a estória deste conto é a de um velho gato que se suicidou porque perdeu a sua peónia e que se convence que tinha chegado o momento de encontrar o destino dos vampiros. Não suportam as perdas. Esmagam o cérebro contra o pavimento, apesar de Sha-Li-Pi não acreditar na natureza suicida do seu “Bukowski”:


- Charles, não tens destino, és um homem a olhar para o mar…


(…)


- Os homens que olham para o mar, são incapazes de sentir a dor, Charles, só o desespero e por isso nunca chegam ao Egipto (o paraíso dos gatos).


A belíssima estória de Sha-Li-Pi é contada e cantada pelos blues de um “gato velho” de pseudónimo Charles, exorcizar um passado e a lamber, incansavelmente, as próprias feridas…


Cláudia de Sousa Dias

Tuesday, February 15, 2011

“Bartleby & Companhia”de Enrique Vila-Matas (Assírio & Alvim)



Bartleby é, para quem ainda não conhece, uma personagem de Hermann Melville, escritor e poeta que influencia consideravelmente a escrita deste autor contemporâneo de língua castelhana. A personagem Bartleby serve de inspiração à obra de Enrique Vila-Matas por lhe chamar a atenção a passividade e propensão de todos os Bartleby da vida quotidiana para nada fazer e para viver, dia após dia, sem concretizar nenhum objectivo. Trata-se, dno entender do Autor, de uma casta de seres humanos que se destaca pelo seu carácter anódino. Nesta obra, Vila-Matas dedica-se a escrever sobre “escritores bartleby”, isto é, aqueles que não escrevem ou estão longos períodos inactivos, paralisados devido a prolongadíssimas crises de inspiração, adiando a hora de escrever ad infinitum

Ao longo da presente obra, o Autor dedica-se a explorar um conjunto de situações concretas que envolvem os detalhes e o porquê de tão pouca produtividade literária. Enrique Vila-Matas tornar-se-á, com esta publicação, no perito do silêncio na escrita, convertida para o português pela tradução de José Agostinho Batista e Jean de la Bruyère.

A glória ou o mérito de alguns homens consiste em escrever bem; o de outros consiste em não escrever.

O narrador de Bartleby & Companhia não é propriamente um homem que prime pela beleza física, sendo dotado de uma pronunciada corcunda – a figura do “corcunda” aparece também num dos contos de Vila Matas na obra Filhos sem Filhos, a qual será também objecto de análise neste blogue. Este narrador começa por declarar nunca ter tido sorte com as mulheres, para além viver uma existência durante a qual nada se passa de extraordinário, uma vida perfeitamente Bartlebyniana, ou seja, banal. O homem deseja, no entanto, escrever. É então que decide colmatar a falta de argumento para criar uma estória com o talento para a análise e assim, descobrir as razões pelas quais tanta gente com um excelente potencial para a escrita ou possuidores de um elevado grau de inteligência e cultura, simplesmente não escrevem ou deixam repentinamente de o fazer.

O narrador propõe-se identificar um amplo espectro de autores que sofrem da Síndrome de Bartleby no que toca à produção literária. Vila-Matas classifica este estado de alma como O mal endémico das letras contemporâneas. A pulsão negativa ou a atracção pelo nada que faz com que certos criadores, embora tendo a consciência literária muito exigente (ou talvez precisamente por isso) nunca cheguem a escrever ou escrevem um ou dois livros e depois renunciam à escrita ou, depois de avançarem com uma obra fiquem, um dia, paralisados para sempre.

A estes, Vila-Matas chama-lhes escritores da literatura do Não, descrevendo-os de forma algo anedótica e às motivações secretas de alguns dos mais apelativos casos de criadores que renunciaram à escrita, salientando que estes acreditam já ter explorado todas as temáticas possíveis e imagináveis pelo que a produção literária nos dias de hoje já só encontra inspiração oriunda da pulsão negativa: “Só do Não pode surgir a escrita do porvir”.


Alguns aspectos específicos mais emblemáticos da obra

Enrique Vila-Matas é da opinião de que “há tantos escritores quantas as formas de abordar a literatura”.

Há, segundo as suas palavras mesmo aqueles que se apagam para deixar que outros assinem as suas obras, como é o caso da autora de “O Divã”, um conto assinado por Göethe e escrito pela sua amante.

Bartleby & Companhia é um delicioso caderno de notas de rodapé sobre aqueles escritores que nunca o foram ou que, por qualquer motivo, deixam de o ser.

Abrange os dramas pessoais de almas sensíveis como a de Robert Walser o qual sabia que escrever que não se pode escrever, também é escrever, lembrando vagamente Mario Vargas Llosa em A Tia Júlia e o Escrevedo”, ou o pessimismo de Samuel Beckett, o qual afirma que um dia, até as palavras nos abandonam.

Enrique Vila-Matas, através da máscara do seu narrador, ocupa-se em analisar a relação de cada um deles com a escrita e, por sua vez, com o mundo que os rodeia, incluindo a família, as mulheres, o sexo, os editores, os críticos, os colegas e, claro está, a própria literatura.

A este respeito, são observadas a forma como cada qual se propõe desobedecer aos cânones da escrita e a desafiar a intemporalidade dos temas tratados, desde a tendência para a melancolia ou para a depressão, até à inevitável crise temática pela ausência de ideias.

O leque de autores sobre os quais este narrador de Vila-Matas dedica a sua atenção é muito mais vasto do que se julga à primeira vista e inclui (pasme-se) escritores clássicos, mundialmente famosos como Franz Kafka, Marcel Proust e Fernando Pessoa, para além dos já esperados escritores que se movem na semi-obscuridade, fruto do estigma de “autor local” ou que tiveram somente o seu apogeu em determinado período específico ao da História da Literatura e se tornaram obsoletos com o passar dos anos.

Dentro dos clássicos situam-se ainda nomes insuspeitados e outros nem tanto: Rimbaud, como sabemos esgota a sua criatividade no final da adolescência, no auge da juventude pois com uma precocidade genial, já tinha escrito toda a sua obra e caiu no silêncio literário que duraria até ao fim dos seus dias.”

Mas a Sócrates ninguém se teria, até à presente obra, lembrado de atribuir-lhe a Síndrome de Bartleby:

«Até 1836 ninguém se atrevia a recordar qual era a verdadeira personalidade de Sócrates; atreveu-se Louis Férdinand Lélut em Du démon de Socrate . Chega a afirmar que “as sua excursões mentais de carácter alucinado podiam ter muito a ver com a sua recusa da escrita. Porque não é grato para ninguém dedicar-se a inventariar por escrito as suas próprias alucinações.»

O desfile dos desmotivados, permanentes ou temporários, prossegue com Hölderlin, Juan Rulfo, Marcel Duchamp. Em contrapartida, para os escritores do Sim o importante é preservar a memória, dedicando-se furiosamente à escrita.

A literatura, por muito que nos apaixone negá-lo, permite resgatar do esquecimento tudo isso sobre o qual o olhar contemporâneo, cada dia mais imoral, pretende deslizar com a mais profunda indiferença.

Mas também o humor negro não deixa de estar presente neste caderno de notas de rodapé nesta antologia dos Bartleby de Enrique Vila-Matas. É na verdade impossível ler a maior parte destes textos sem deixar escapar uma sonora gargalhada:

Assim, pois, Joseph Joubert passou a vida à procura de um livro que nunca escreveu, embora, se olharmos bem, o escrevesse sem o saber, pensando em escrevê-lo.

Ou então quando imagina uma suposta troca de correspondência entre um Autor Não (ou autor Bartleby) e um Autor Sim:

Inventei que Derrain me escrevia. Como o Autor de Eclipses Litteraires não se digna responder à minha carta, decidi escrever a mi8m próprio, assinando Derrain”.

Isto a propósito de um prefácio não escrito por Baudelaire para “As Flores do Mal”, onde o poeta do spleen apelaria aos escritores para não revelarem os segredos do ofício, as fontes de inspiração ou de transfiguração da realidade ou mesmo de dar a entender quão estrita é, muitas vezes, a linha que demarca a fronteira entre charlatanismo e imaginação.

Uma agradável surpresa é a abordagem da lírica portuguesa sob este prisma por Enrique Vila-Matas que nos chega, em primeiro lugar, pela divulgação sublime relação de amizade entre Miguel Torga e o poeta mais ou menos obscuro Edmundo Bettencourt, a propósito da Síndrome de Bartleby, através da qual se explora, ainda, o ambiente propício à depressão e a recusa categórica dos falsos estimulantes para a criatividade. Daqui passa a aludir-se ao recurso ao ópio por parte de alguns escritores como Quincey, cuja respectiva nota de rodapé revela uma das mais hilariantes passagens da obra, ao frisar que a sua obra consiste no “texto fundador da História das Letras Drogadas”, com que o Bartleby de Vila-Matas remata, fumando um cigarro:

O fumo cega os meus olhos. Sei que devo terminar, que cheguei ao fim desta nota de rodapé. Mas não vejo quase nada, não posso continuar a escrever, o fumo transformou-se perigosamente na minha síndroma de Bartleby

O autor é, sobretudo, mordaz. Utiliza o mais virulento sarcasmo nalgumas das suas personagens, eu diria mesmo em quase todas, mas particularmente direccionado ao artista que decide chamar a atenção sobre a sua pessoa mas não encontra nada mais criativo para dizer a não ser que: A arte é uma estupidez. A frase é de um autor mexicano sobre o qual se dizia que no seu trágico desespero, arrancava brutalmente os cabelos da sua peruca

Pessoa é aqui mencionado pelo brusco desaparecimento do seu heterónimo de inspiração escassa, o Barão de Teives, mas as tiradas mais violentas são dirigidas ao poeta italiano Giacomo Leopardi, a propósito de algumas das suas frases supostamente hiper-dramáticas:

Sou tímido com as mulheres, logo deus não existe”.

Em suma, para a personagem de Vila-Matas, ao homem não criativo – claro que o virote é, sarcasticamente, dirigido aos críticos que não são capazes de acrescentar nada à literatura, a não ser de falar do que escrevem os outros, a autora deste blogue inclusive – resta-lhe dissertar sobre a falta de criatividade.

O homem não criativo pode atribuir-se uma força superior à do criativo, pois a este só é possível o poder de criar enquanto aquele dispõe desse mesmo poder mas, para além disso, tem o poder de renunciar a criar.

É claro que o não criativo é, por Excelência, o leitor se encontra numa posição superior à daquele que escreve, uma vez que terá avaliar o que este escreveu. O leitor e o crítico recusam-se, o entanto, submeter-se à posição de avaliado.

Envolvendo o acto de escrever, o autor debruça-se sobre as pulsões contraditórias que convidam o escritor a produzir obra, tendo muitas vezes, para isso de renunciar à vida ou vice-versa – o que explica a atitude de escritores como Rimbaud.

Vila-Matas explora, também as contingências dos homens com elevado potencial, mas que que fruto das pressões sociais a que são sujeitos se transformam em homens comuns, em Bartlebys sem ideias originais ou criatividade, diluindo-se a sua capacidade criativa em objectivos materiais exigidos pelas convenções da sociedade em que vivem. O exemplo escolhido é o de como um estudante brilhante e refinado se transforma num indivíduo, gordo e apagado, embora próspero, num típico pai de família da classe média alta. Outro alvo da sua ironia são aqueles que, ao recusarem-se constantemente a escrever, acusam os génios de lhes roubarem as ideias: Queria escrever algo como O Memorial do Convento mas Saramago antecipou-se-me.

É, também, abordada a questão da ambição daqueles que desejam eclipsar todos os outros grandes escritores até à data, fazendo da literatura um conjunto de cânones rígidos que actuam como as tábuas de Moisés, mas dada a impossibilidade de tal empreitada, nunca chegam a escrever.

Na opinião de Vila-Matas os artistas do Não sofrem, ao contrário dos gregos da Antiguidade Clássica, que eram estimulados pela hybris, de um ascetismo doentio que os transforma em monstros, terminando por citar, mais uma vez, Franz Kafka, o seu autor paradigmático: Um escritor que não escreve é um monstro que convida à loucura, de que a escrita quando jorrasse seria a terapia ideal.

E mais não digo. Vou começar a escrever.

Já.

Cláudia de Sousa Dias

Tuesday, February 08, 2011

“Os Vendilhões do Templo” e “O Silêncio” de João Negreiros (Edições TUM- Teatro Universitário do Minho)


Os Vendilhões do Templo”

O actor, poeta e dramaturgo João Negreiros decidiu, nesta obra conjunta, apontar alguns pequenos cancros sociais que afectam a sociedade dos dias de hoje e parecem apontar para uma total inversão de valores, culminando com a sufocação total da ética em nome do lucro a qualquer preço e na qual os fins parecem – sempre – justificar os meios.

Em Os Vendilhões do Templo o alvo da das punhaladas verbais do Autor é o marketing e as mais agressivas estratégias de persuasão a que são sujeitos, diariamente, os cidadãos, sobretudo nos países mais industrializados: as vendas directas porta-a-porta e as vendas por telefone, vulgarmente conhecidas por telemarketing.

Construindo uma peça teatral que consiste numa alegoria que representa uma sátira João Negreiros pretende abalar as consciências ao expor – usando e abusando da ironia e do sarcasmo, recorre com frequência à caricatura, ao exagero e à hipérbole – a forma como são manipulados os desejos dos cidadãos comuns pelos estrategos do marketing e da publicidade, através da criação e estímulo cpermanente de falsas necessidades. O Autor faz uso de uma linguagem apelativa, normalmente utilizada pelos novos “vendilhões”, seguindo o esquema de desenvolvimento argumentativo dos chamados “vendedores da banha da cobra”: os sacerdotes do cada vez mais universal deus do Dinheiro.

Os vendilhões do Templo é uma obra que denuncia o eclipse da ética nos dias de hoje, onde o primado do individualismo é levado ao extremo. O discurso utilizado pelos vendilhões dos nossos dias é construído de forma a que os seus destinatários não pensem, ou sequer consigam elaborar um raciocínio de forma a abalar a estrutura de um edifício discursivo que é a ferramenta básica para o vendedor conseguir o seu objectivo: a compra pelo consumidor ingénuo.

A humanidade foi criada para usar este utensílio. Este utensílio foi usado para criar a humanidade. A humana idade de fazer agora, finalmente, aquilo para que fomos feitos. Feitos para engolir e chupar o mau e cuspir o bom.

Este é o utensílio utilitário fundamental para quem não quer fazer nada e gosta de fazer tudo pelos outros…só para que eles o comprem.

(…)

Aproximem-se, toquem, toquem no aspirador que vos vai levar a altos voos, mesmo aqueles que parecem toupeiras voarão alto como condores…não, com dores, não…voarão como águias ou falcões, ou o ratinho que eles levam no bico. E verão melhor porque vos supera a cegueira. E ouvirão melhor porque o seu barulho aniquilar-vos-á o silêncio.

A crítica implícita no sarcasmo que transpira das frases do Autor pretende mostrar o cinismo daqueles que manipulam os desejos dos consumidores por parte de quem cria um novo produto que não tem qualquer tipo de utilidade ou mais valia para o comprador. Trata-se de um objecto ou serviço de que aquele não necessita em absoluto mas que a avidez e a ganância sustentada cinismo dos génios do marketing, os novos vendilhões do “templo do dinheiro” , se empenha em criar, estimular e alimentar de forma a enriquecer à custa de uma dependência de efeito placebo.

Os génios do marketing são como deuses criadores do Desejo ou, na menor das hipóteses, cientistas que manipulam esses mesmo desejos nos ratinhos de laboratório que são os consumidores-alvo. A nova necessidade criada transforma-se em desejo e, por último, em compulsão, que se repercute até ao infinito e que João Negreiros tão bem soube retratar nos diálogos desta peça de teatro ao introduzir uma galeria de personagens-tipo, de onde sobressai o vampirismo do vendedor, o qual utiliza um discurso anestesiante, tornando a vítima passiva, como que submetida a um transe, numa espécie de hipnotismo auditivo. O autor utiliza o exagero caricatural para ilustrar o comportamento das personagens, uma vez que se trata de uma alegoria.

A – Mas você era infeliz?

B – Era.

A – Porquê?

B – Porque não tinha aspirador…ou melhor, tinha um mas não aquele.

A – Então…nunca foi feliz?

B – Não.

A – Nem por momentos?

B – Quer dizer, por momentos, já…

B é a vítima passiva da hipnose auditiva da serpente vendedora, um ser com características mefistofélicas, que ilude as vítimas ao tentar convencê-las que os momentos de felicidade passaram e que a mesma sensação de plenitude não voltará a não ser no momento em que compra um dado produto, isto é, nos instantes fugazes em que adquire um determinado bem de consumo, em pequenas doses infinitesimais de satisfação que têm de ser repetidas num espaço de tempo cada vez mais curto. A compulsão consumista acaba por ter efeitos viciantes que se assemelham, de certa forma, ao consumo de cocaína, obrigando o sujeito a esquecer tudo o que se situa fora do âmbito do universo de compra e venda.

O auge desta psicose está patente na cena onde se processa a venda do colchão que impede o sono e esgota o tempo de descanso para que o sujeito possa trabalhar mais e consumir mais recursos e assim adquirir mais bens de consumo. A necessidade de consumir usurpa o lugar das necessidades de prevenção de saúde, de relacionamento, de educação: os consumidores têm de trabalhar mais para pagarem o que compram, colocando em risco o bem-estar pessoal, as relações sentimentais e a satisfação obtida por meio do convívio social. A noção de “lazer” ou “tempo de lazer” passa a adquirir a conotação de luxo supérfluo, fruto de uma total inversão de valores.

A cena V, a reunião dos vendilhões, é o momento em que deixam cair a máscara.

G – mas…que surpresa tão agradável, meus irmãos de armas, mestres da arte de dominar o mundo pelo capitalismo selvagem.

(…)

A – Junto, formamos o neo-liberalismo galopante que consegue agradar a toda a gente, mesmo montado a trote num cavalo coxo!

A entrada em cena da personagem Fada do Bom Gosto, dá margem a dúvidas, uma vez que se trata de uma personagem ambígua. Inicialment,e parece alguém destinado a ser um travão ao capitalismo desenfreado mas depois parece mais um mecanismo de censura, fortemente repressor da liberdade de expressão. Começa por escarnecer dos vendilhões e levá-los quase ao suicídio, colocando, a seguir, todo um espartilho de normas sufocantes ao limitar todas as liberdades individuais sem permitir que se afastem um milímetro dos limites pré-definidos, transformando-se rapidamente numa fada exterminadora. A lucidez do Autor está patente na introdução desta personagem pois, é através dela que o Autor demonstra a necessidade de encontrar um ponto de equilíbrio entre a manutenção das liberdades individuais e a necessidade de um controle limitado por parte de uma entidade superior – o Estado, que é representado pela Fada do Bom-Gosto –, a qual tem o dever de zelar para que, em nome das liberdades individuais, não se atropele a liberdade individual do vizinho.

“O Silêncio”

A segunda parte deste livro que agrega duas peças de teatro da autoria de João Negreiros está, de certa forma, relacionada com a peça anterior já que mergulha no universo das relações de trabalho no âmbito das PME no Norte de Portugal, compostas, na sua maioria, por empresas familiares. João Negreiros toca numa chaga social da qual pouco se fala na Comunicação Social nos dias de hoje: a violação do dever de urbanidade por parte das entidades patronais face aos trabalhadores que lhes estão juridicamente subordinados. Trata-se normalmente de empresários que tiveram uma ascensão meteórica, vulgarmente chamados de “novos-ricos” ou de “pseudo-ricos”, normalmente incultos, de temperamento rude, que gostam de viver de aparências, de exibir roupas caras e carros topo-de-gama . São, também, assíduos frequentadores da Igreja as, normalmente, esquecem-se de dois deveres básicos da entidade patronal, consagrados na lei do trabalho: o dever de retribuição do trabalhador pelo trabalho prestado, inclusive ao fim de semana e horas extras, e o dever de tratar o trabalhador com urbanidade.

A cena abre com o discurso típico do patrão julga estar convencido de que vive na república das bananas, vigora ainda o sistema económico não do capitalismo selvagem de que falámos no texto anterior, mas do feudalismo:

Alípio – Olha para esta merda, Artur! Não sabes que estes iogurtes já estão fora de validade? Foda-se, Artur! És mesmo um merdas, Artur. Ainda vou ser processado por tua causa. Isto parece uma pocilga. Não te disse que tinhas de varrer isto todos os dias? Não disse? Olha que esta merda não pode ficar assim; tens de te pôr fino, Achas que não te meto no olho da rua?

Noutro cenário, o mesmo sujeito que maltrata o empregado, que é também seu filho ilegítimo, maltrata com o mesmo grau de violência – com o detalhe de acrescentar a violência física à verbal – a amante.

Artur desempenha o papel de cavaleiro andante, à cabeça da classe dos dóceis, dos tímidos, que estão convencidos que ganham mais em ficarem calados. Em silêncio. Ao passar para o papel estes diálogos, que chocam o leitor pela extrema agressividade contida nas palavras, João Negreiros pretende fazer ver que a passividade e o silêncio favorecem o crime ou o infractor, convencendo-o de que este, afinal, compensa. O Autor é bastante eficaz pelo caudal de palavras agressivas com que ilustra uma realidade, em oposição à atitude silenciosa causada pelo medo. Medo de ficar sem trabalho. Ou medo de ficar sem o companheiro, sem o qual muitas mulheres se vêem à deriva, por não lhes ser incutida uma cultura de autonomia a que se junta a falta de igualdade de oportunidades real que se verifica sempre que analisamos a situação no terreno. João Negreiros mostra como quem cala, consente o mal que lhe fazem e que a recompensa pelo silêncio é uma quimera.

Artur, a namorada, Aline, e a amante do patrão, Aurora, pertencem à casta de pessoas que se deixa aniquilar pelo silêncio.

Já Alípio, pelo contrário pertence à casta dos predadores, daqueles que zurzem os mais frágeis com toda a espécie de sevícias e julgam estar protegidos pelo poder económico. Ao mesmo tempo, exibe um aviltante servilismo perante os que têm mais poder do que eles e de quem esperam obter favores.

Alípio é daqueles que só trata com alguém com docilidade quando está em apuros e necessita de obter ajuda dessa pessoa. No entanto, a partir do instante em que a crise é ultrapassada regressa ao comportamento habitual. Alípio representa o lado mais vil da Natureza humana, o verdadeiro lobo do Homem. Mais: uma hiena.

A jovem Aline encontra-se no extremo oposto, já que possui a fragilidade de uma gazela. A jovem delicada incarna aquele género de pessoas demasiado dóceis ou pacíficas para viverem num mundo saturado pelo ruído ensurdecedor dos rugidos das bestas humanas.

Daí preferirem a utopia do silêncio.

Até quando?

Cláudia de Sousa Dias