"A paixão de Camille Claudel" ou "Camille Claudel, une femme" (versão original) de Anne Delbée (Inquérito)
Tradução: Maria Gabriela de Bragança
A obra de que aqui tratamos pode ser encontrada, hoje em dia, em alfarrabistas, por se encontrar esgotada e não ter sido alvo de reedição nos últimos anos. Trata-se, no entanto, de uma aliciante biografia romanceada, que parte de um conjunto de documentos dispersos tendo sido concluída em 1982, após longos anos de investigação e compilação de todos os apontamentos resultantes de entrevistas a familiares amigos e conhecidos que conviveram de perto com a brilhante escultora do início do século XX.
O blogue rendez-vous faz referência ao filme de Bruno Nuytten baseado na biografia de Reine-Marie sobrinha neta da escultora, com a qual contactou a Autora deste livro, aqui:
http://rendez-vous-arabie.blogspot.com/2010/09/cineliterario-paixao-de-camille-claudel.html
O filme foi responsável pela reabilitação do interesse público pelas obras de Claudel e pelo levantar do véu em relação ao pudor da família que, durante as primeiras décadas do século XX até aos anos 1970, se abstinha de falar na tia que era vista como uma espécie de "ovelha negra da família".
Camille Claudel sendo Uma Mulher foi pioneira, ao destacar-se no mundo das artes plásticas, nomeadamente num universo tão masculinizado como era, então, a Escultura. Com base nas entrevistas feitas a descendentes e amigos da escultora, a Autora deste livro juntou ainda um vasto conjunto de bilhetes, apontamentos pessoais, fragmentos do diário de Camille Claudel, bem como um considerável volume de cartas trocadas entre ela e o irmão, o escritor Paul Claudel, e, claro, Auguste Rodin, seu mestre, amante e, posteriormente, rival.
A investigação documental operada pela Autora deste livro foi, ainda, completada com visitas ao Museu Rodin e ao Atellier Claudel, assim como ao hospital psiquiátrico onde Camille veio a falecer, após cerca de trinta anos de clausura.
A narrativa desenvolve-se em dois planos que se vão alternando – de um lado, a correspondência de Camille durante o internamento, dirigida na quase totalidade ao irmão, Paul, a partir de cuja leitura, na primeira pessoa, facilmente nos apercebemos de um progressivo estado de degradação quer física quer mental, numa mulher outrora brilhante e pujante de vitalidade. Esta Camille de Anne Delbée recorda, amiúde, a vida anterior à clausura no hospital psiquiátrico, refugiando-se no passado como forma de evasão à realidade depressiva do presente.
O segundo plano da narrativa é-nos dado por uma voz exterior, que oferece ao leitor a possibilidade de mergulhar na infância dos irmãos Claudel, período marcado por uma felicidade plena e cúmplice ao lado do irmão, onde se destaca um amor que quase ultrapassa os limites socialmente convencionados para uma relação entre sibblings.
É, também, durante a infância que Camille descobre a vocação de escultora, através do pronunciado gosto pela moldagem de formas e figuras em barro, durante os passeios que faz à colina em companhia do irmão.
Ao reconhecimento do talento e a admiração afectuosa do pai pela filha rebelde a investigadora Anne Delbée contrapôs a indiferença de madame Claudel pelas inclinações artísticas da filha, redobrando sim, os cuidados e as preocupações com o asseio e a toilette de Camille, que se apresentava frequentemente suja de barro. Paraalém de que uma escultora mulher não ter na opinião da progenitora, lugar na sociedade, sendo vita pela opinião pública geral como uma aberração.
Ao mesmo tempo, tudo leva a crer ter existido uma relação de competição entre mãe e filha pelas atenções do pai de Camille. Madame Claudel surge, simultaneamente como uma pseudo-mãe, ciumentísssima do afecto que o marido dirige à filha e, por outro lado, desejosa de transformá-la numa típica dona de casa, como a filha mais nova, casando-a com aquilo que considerava “ um bom partido” para, assim, assegurar a estabilidade financeira da família.
Já Monsieur Claudel incentivava, pelo contrário, de acordo com os testemunhos da época, a própria filha a lutar pelos sonhos e a perseguir o desejo de se tornar uma grande escultora, chegando, a dada altura a por em causa as intenções de Rodin, ao colocá-la ao seu serviço.
O primeiro profissional da arte a reconhecer-lhe o talento é Alfred Boucher, reputado artista plástico do romantismo barroco do século XIX, o qual lhe aconselha a frequentar as aulas de Rodin no seu atelier e, lá, a desenvolver o seu potencial como escultora, junto do Mestre a quem apontavam, na altura, como o sucessor de Michelangelo.
.A relação desta Camille de Anne Delbée que tem por título original Une femme, parece obedecer à tipologia arquetípica de Bruno Bettelheim no seu livro A psicanálise dos contos de fadas, obra inspirada no modelo arquetípico de construção da personalidade de Carl Jung. Assim, a mãe de Camille seria, tal como aparece retratada na obra da aAutora deste livro, uma emanação da figura da madrasta, típica dos contos de fadas tradicionais, devido à oposição feroz que demonstra em relação às atitudes e escolhas da filha Camille. Madame Claudel despeja o seu ressentimento em Camille ao culpá-la pela morte do primeiro filho, que morre pouco depois do nascimento – na época a taxa de mortalidade neo-natal atingia índices muito elevados –, de que o nascimento posterior de Camille perece ter despoletado um certo azedume na mãe, a qual aliava o ressentimento pelo facto de esta criança mais nova ocupar o lugar que ppertencia à primeira, olhando-a como uma espécie de “usurpadora”.
Relativamente às escolhas e à independência de espírito desde cedo demonstradas por Camille, Madame Claudel parecia não se conformar com o facto de a filha mais velha se comportar como uma selvagem maria-rapaz, sempre despenteada ou suja de terra, sem conseguir enquadrá-la nos cânones daquilo a que na altura era considerado como bom comportamento numa jovem solteira.
Durante a adolescência de Camille, o conflito agudiza-se sobretudo a partir do momento em que a adolescente decide fazer da escultura uma opção de vida ao invés de enveredar por um matrimónio bem-sucedido. Segundo o ponto de vista da Autora, Camille pôde contar com o apoio do pai, que se orgulhava do talento da filha, mas a mãe encarava esta opção como uma afronta ou uma provocação.
Madame Claudel, segundo os documentos reunidos pela autora, conseguiu os seus objectivos com a filha mais nova, Louise, mas os planos saem-lhe frustrados devido à uma inesperada viuvez da jovem o que vem colocar a família numa situação precária.
No início do século XX não era comum as mulheres da burguesia trabalharem, mesmo as mulheres da pequena burguesia rural de onde era oriunda a família de Camille: estas ou se dedicavam exclusivamente ao papel de esposa e mãe ou eram cortesãs, as chamadas “mulheres mantidas”. O tornar-se uma artista, a viver à custa do próprio trabalho, era algo de completamente revolucionário e subversivo, pelo que Anne Delbée se empenha em mostrar o lado pioneiro e inspirador desta artista de capacidade invulgar em retratar as emoções através dos movimentos corporais. Para mais, tratava-se de uma mulher extremamente bela o que na altura era considerado perigoso, por resultar numa estranha combinação de poder e ascendente social – Camille distinguia-se, de forma quase ofensiva, em relação às mulheres do seu tempo.
Os entraves ao desenvolvimento de um potencial invulgar
Anne Delbée explora várias dimensões que puseram em causa a projecção do trabalho de Camille e que a precipitaram para uma vidad e clausura e um progressivo desequilíbrio psíquico.
O principal entrave, que a Autora coloca em evidência, ao desenvolvimento da actividade artística de Camille Claudel é de ordem financeira: a escultura foi, desde sempre, uma actividade dispendiosa: não só pelo elevado custo dos materiais , mas pela necessidade de alugar um espaço para instalar o atelier, contratar operários e modelos e, ainda, proceder à divulgação da actividade. Algo que obrigava, por sua vez, a frequentar eventos sociais relevantes e a investir na imagem.
Por outro lado, beleza de Camille revelou-se, simultaneamente, uma vantagem – chamava a atenção, o que era um excelente cartão-de-visita – mas, também, um obstáculo pois acabava por lhe retirar parte da credibilidade, dando azo à maledicência e a algumas críticas pouco construtivas e preconceituosas.
A questão de género, a questão económica e a questão da independência, face à obra de Rodin são as principais linhas de desenvolvimento desta biografia romanceada por Anne Delbée formando os três principais entraves à carreira da escultora a qual foi alvo constante de boicote por parte de alguns críticos influentes, que publicavam em revistas em jornais e especializados na época e que afirmavam ser Rodin quem lhe fazia as esculturas – quando tudo levava a suspeitar que fosse o contrário, isto é, que era, na realidade a aprendiz que fazia o trabalho básico sendo muitas vezes o mestre quem dava os retoques finais e os acabamentos.
Anne Delbée empenha-se em deixar clara a forma como o trabalho de Claudel se demarca da obra de Rodin, pela expressividade exibida nas suas figuras, tornando-as por vezes hiper-dramáticas ao exprimir, por exemplo, a humilhação do abandono ou, ainda, a tragédia da destruição do corpo pela aproximação da morte.
A autora consegue sensibilizar os leitores para o trabalho da escultora, ao mostrar que a estética de Camille Claudel é uma forma de arte de grande força anímica, emanada do período final da época barroca e do romantismo, na sua fase tardia. Claudel é contemporânea de Débussy e outros artistas e intelectuais de vanguarda da viragem do século XIX para o século XX.
Ao primeiro impacto do leitor com a escrita de Anne Delbée, este é confrontado com uma sensação de desequilíbrio, uma espécie de vertigem causada pela oscilação entre um estilo delirante, polvilhado de alucinações, algo onírico, a representar o caótico e tortuoso emaranhado de pensamentos de Camille Claudel, já durante a clausura no hospital psiquiátrico, e a calma paradisíaca, proporcionada pela regressão no tempo que possibilita ao leitor mergulhar na juventude gloriosa dos irmãos Claudel, assim como ter consciência da dolorosa realidade durante os breves fragmentos de lucidez de Camille durante o internamento.
A escrita de Anne Delbée é profusamente trabalhada, à semelhança da expressão artística do final do romantismo barroco, cheia animismos, provenientes de um meio natural envolvente onde a natureza parece manifestar sentimentos próprios dos humanos, onde até as pedras transpiram, sussurram e choram.
A Relação com Rodin
Sobre este aspecto da obra, a Autora começa por mostrar as dificuldades iniciais com que Camille se defronta antes de se tornar aluna de Rodin. Após a apresentação feita por Alfred Boucher, Rodin começa por desdenhar o trabalho da jovem. No entanto, mostra-se interessado em conservar as esculturas de Camille no seu próprio atellier, despertando uma certa desconfiança no pai da jovem. Delbée acaba por enveredar por esta linha no desenvolvimento final da trama, ao mostrar que a degradação da relação de Claudel e Rodin, tanto no plano profissional como pessoal, é agravada, em grande parte, por esta desconfiança.
Délbée mostra-nos uma perspectiva da evolução dos movimentos estéticos nas Artes plásticas, ao explicar, de forma breve e muito sucinta, a mais valia do trabalho de Camille e Rodin, face aos grandes artistas plásticos que os precederam, mas sem deixar de mostrar o lado lunar da artista: um temperamento algo selvagem e absolutamente indiferente a todo o género de convenções. Apesar do evidente talento e da importância do seu contributo para a história das Artes Plásticas , Camille Claudel nunca chega a gozar do reconhecimento geral pelos seus contemporâneos.
Camille: uma mulher autónoma, indomável e…vulnerável
A par da fragilidade familiar, económica e dos preconceitos da sociedade relação ao género feminino no mundo das artes, a forma como se desenvolve o teor obsessivo do relacionamento amoroso entre Camille e Rodin, não ajuda em nada à estabilidade emocional da escultora. Uma relação que marca o ponto de ruptura com a família Claudel, a qual não aceita a forma ilícita do relacionamento ambos, culminando num episódio doméstico de faca e alguidar, a fazer lembrar um melodrama de uma ópera verdiana.
A partir dos vinte e seis anos, Camille começa a sentir que o tempo escasseia e parece passar em vão ao ver o seu reconhecimento permanentemente adiado.
Camille Claudel foi uma artista revolucionária, anacrónica e anárquica não só porque a sua conduta inspirou a revolução do papel da mulher na sociedade, mas porque conseguiu operar uma revolução temática na própria Arte, ao assumir o erotismo que emana do mais profundo inconsciente feminino transposto para a Escultura, recusando a representação apenas e só da mulher politicamente correcta ou dos aspectos politicamente correctos da própria vida. Camille Claudel, uma mulher. Inesquecível e imortalizada pelo génio.
Cláudia de Sousa Dias