No posfácio de João de Melo, desta edição, são salientados dois aspectos fundamentais da obra: o quotidiano das personagens e da povoação onde vivem; e os efeitos operados pela dança do tempo.
Gabriel García Márquez começa a publicar as suas obras mais conhecidas precisamente em finais dos anos 1960 e décadas seguintes, altura em que se assiste a uma súbita e generalizada valorização da literatura sul-americana a nível mundial. O Autor publica O Amor nos Tempos de Cólera , em 1985, três anos depois de receber o Prémio Nobel. O escritor colombiano passou a ser uma figura fundamental para a descentralização do Universo literário europeu e norte-americano logo após a primeira metade do século XX. A partir de 1982, ano em que ganha o Prémio Nobel da Literatura, torna-se uma figura da vanguarda literária que defendia, então, a fusão entre o real e o imaginário, entre a ficção e a notícia histórica. García Márquez torna-se exímio em pintar o quadro da vida quotidiana das gentes de um continente em que a realidade sociopolítica como a da Colômbia é tão dura que os seus habitantes parecem necessitar, muitas vezes, de se evadir para o terreno do maravilhoso, do inexplicável, dos milagres. A violência e a dureza de algumas obras de Gabo como Notícia de um Sequestro, já comentada neste blogue, assim como de alguns contos de Olhos de Cão Azul e mesmo a descrição de alguns episódios de O amor nos tempos de cólera são equiparáveis às estórias de A Fronteira de Vidro de Carlos Fuentes, ao passo que a imaginação fulgurante fá-lo aproximar-se mais de autores como Jorge Luís Borges. No entanto, a persistência do tom optimista e do humor negro característico de Gabriel García Márquez diferenciam-no dos seus pares, fazendo com que os seus livros se esgotem nas prateleiras das livrarias vendendo-se ao ritmo de “salsichas quentes” como ele próprio afirma. O estilo literário que caracteriza a sua prosa é normalmente chamado de “realismo fantástico” ou “mágico”. A obra de Gabo trata sobretudo os grandes temas sociais, envoltos numa bruma onírica, a que se mistura o colorido da cultura local e as marcas etnográficas da região andina ou caribenha, onde a realidade e a ficção se encontram num ponto de equilíbrio, sublimado no imaginário, muitas vezes codificado através de figuras ou personagens-tipo.
O sagrado e o profano também se encontram com abundância na obra de GGM. Estes dois elementos apresentam-se quase sempre em conflito, digladiando-se. De acordo com o ponto de vista do Autor do posfácio estes dois termos deixam de estar separados, no plano da escrita, “pela fronteira da racionalidade”, surgindo desta forma, os chamados “prodígios”, a colorir a trama e a sugerir uma explicação para o incompreensível.
Os símbolos mais utilizados na escrita ficcional de Gabriel García Márquez, conforme vemos nas entrevistas dadas a Plínio Apuleyo Mendoza em O Aroma da Goiaba, são:
1) A cor dourada, símbolo de ostentação, vaidade, superficialidade, ou mesmo de maldade ou corrupção. O ouro, dentro do discurso literário de Gabriel García Márquez está directamente ligado à corrupção ou a algo que foi desvirtuado. Nos olhos do noivo de Angela Vicario em Crónica de uma Morte anunciada essa cor está presente, fazendo associar o olhar da personagem à frieza e crueldade do olhar das serpentes.
2) Outro símbolo largamente explorado na produção literária do Autor é a Solidão: onde o homem solitário em quase todos os livros de GGM desperta, quase sempre, a compaixão e o instinto protector nas mulheres, numa mistura de instinto maternal com a necessidade de superação de um desafio. Os solitários de Gabriel García Márquez são normalmente grandes amantes.
3) Outra característica da prosa de García Márquez é o imaginário rico, proveniente do imenso património de tradição oral e imaterial da região dos Andes, das lendas contadas pelas mulheres da família, de onde a avó do Autor, Doña Tranquilina, tem um papel preponderante.
4) A exuberância adjectiva, conjugada com uma retórica provocadora a que se junta, no caso particular de O amor nos tempos de cólera, o domínio perfeito da forma escrita, da estruturação da trama e desenvolvimento da narrativa, atingem o seu ponto máximo neste romance. Em O amor nos tempos de cólera o Autor é exímio na utilização dos avanços e recuos no tempo, de forma a estabelecer paralelos entre épocas conseguindo, assim, prender a atenção do leitor, num a evolução da narrativa que se assemelha ao ritmo do tango.
5) A poesia n’O amor nos tempos de cólera conjuga-se com a música e a escrita de cuja fusão, acumulada à função poética de multiplicar as interpretações , interage com as referências musicais presentes na obra, pautando o desenvolvimento da acção pelo uso do contraponto na arquitectura da narrativa.
Para a maior parte dos estudiosos de Gabriel García Márquez, O Outono do Patriarca é considerado o seu romance “mais literário”, Cem anos de solidão a sua obra de maior intensidade narrativa, Crónica de uma morte anunciada o romance da fatalidade e inexorabilidade do destino, à semelhança das tragédias clássicas, mas o Amor nos tempos de cólera será sempre considerado pela maioria dos seus leitores, a obra de GGM de” maior fulgor imagético”, em cujo final assistimos ao triunfo do amor após o desenrolar da saga de aventuras e desventuras versando sobre a felicidade humana, a sublimação da mulher como peça fundamental numa sociedade matriarcal e por último, uma nova forma de olhar a velhice, desdramatizada e despojada da perspectiva decadentista tradcional.
João de Melo chama ainda a atenção para a “euforia verbal que se manifesta numa prosa velocíssima, caudalosa, pejada de imagens e magias, dotada de um ritmo frásico próximo da vertigem” de O amor nos tempos de cólera.
O cenário final, onde o par romântico se reúne, dando início a uma vida integralmente pautada pelo amor, é criando pela reinvenção de um mundo primitivo, edénico, pois que remete para o paraíso perdido pelo homem, devido à pressão da necessidade de sobrevivência. Trata-se do lugar imaginário onde a felicidade aparece em todo o esplendor da sua perfeição; o regresso às origens, aos primórdios da humanidade, após emergirem os amantes de um mundo apocalíptico: a baía da cidade, contaminada pela cólera.
Solidão versus Solidariedade
A trama de O amor nos tempos de cólera é composta por personagens solitárias que, ou se afundam no próprio egoísmo ou canalizam a própria solidão para algo mais construtivo. Esta espécie de solitários altruístas faz parte da temática recorrente na obra de García Márquez e não apenas no livro de que aqui tratamos: está também presente em Cem anos de Solidão, Olhos de Cão Azul, Crónica de uma Morte anunciada, sem falar, claro está em O Outono do Patriarca ou ainda em Memória das minhas Putas Tristes.
N’O amor nos tempos de cólera, o quotidiano das personagens acaba por ser a medida de todas as coisas: a pobreza e o luxo, a solidão e a festa, a glória e a miséria dos dias. A humanização é operada pelo tempo, sobretudo no caso particular da protagonista feminina, esta vai senso moldada por acção do amor que surge como catalisador, esperando a sua acção ao logo do tempo. O amor serve como pretexto para exaltar a Mulher – através da voz do protagonista, o Poeta Florentino Ariza – perante a inevitabilidade da morte.
O tempo real do desenvolvimento da narrativa abrange um período de sessenta anos que vai desde a época dourada da belle époque até à primeira metade do século XX. Ao longo de toda a evolução da trama, o Autor empenha-se em reconstruir o mito do eterno feminino onde Fermina, a protagonista, surge logo no início da história como uma “deusa coroada”. A própria entrega desesperada do Poeta a “mulheres que não têm futuro no seu coração” reforça o sentido de gravitação espiritual em torno dessa “única, luminosa mulher dos seus sonhos” numa pacientíssima espera que “cinquenta e um anos, nove meses e um dia” confirma esta ideia.
Posto isto, O Amor nos Tempos de Cólera reúne todos os ingredientes para ser um romance no qual o fantástico, o maravilhoso e o surreal de forma bastante diluída mas persistente, vão deslumbrando o leitor, ao longo de mais de quatrocentas páginas.
A Estrutura
O Amor nos Tempos de Cólera é um romance de estrutura circular que apresenta, de forma recorrente, “um apelo desesperado da vida contra a morte do amor contra a solidão.”
A história abre com duas mortes: um suicídio – o de Jeremiah Saint-Amour, o fotógrafo que sucumbe à solidão e à tristeza de ver perdida a própria juventude - , seguido de um funeral –o do Doutor Juvenal Urbino, médico muito estimado da região pela luta empreendida contra a epidemia de cólera. O próprio nome do fotógrafo não deixa de transparecer um pouco de ironia, pelo facto de se tratar de um homem que morre de pena de si mesmo e de nostalgia pelo jovem que foi no passado, dedicando-se até ao fim da vida a fotografar a juventude e a beleza da infância. O personagem tem o amor no nome (que se pode ler de duas maneiras, significando Jeremias do Amor santo ou Jeremias Sem Amor) mas não o tem à sua volta, uma vez que não é capaz de se voltar para o Outro, sendo de certa forma um pouco anti-social. A sua única companhia é a do amor que se torna uma espécie de patologia, porque virado para si mesmo, centrando a vida nele próprio e na fotografia. O “fotógrafo da juventude” recusa-se a aceitar a decadência do corpo e da velhice suicidando-se com cianeto de ouro – o ouro como símbolo da destruição e da fatalidade.
A primeira frase do romance estabelece imediatamente o elo de ligação entre o cenário do quarto do suicida ao desfecho amoroso de Juvenal Urbino por Fermina Daza.
Era inevitável: o cheiro das amêndoas amargas recordava-lhe sempre o destino dos amores contrariados.
Quase em simultâneo com o suicídio do fotógrafo, ocorre a morte do Doutor juvenal Urbino, tão inesperada quanto comovente: é a porta que vai desencadear os acontecimentos da última parte do romance, após uma longuíssima analepse, abrindo assim uma janela para o passado da Juventude de Fermina Daza: o primeiro amor da jovem beldade pelo telegrafista e poeta romântico Florentino Ariza, a quem preteriu ao casar com o belo e cavalheiresco Doutor Urbino, o pretendente ideal, quase demasiado perfeito em todas as suas qualidades e um dos jovens mais cobiçados da povoação. O insólito surge em vários momentos da obra na cena um que um pássaro acerta precisamente em cima do bordado de Fermina, com a respectiva carga excrementícia, no exacto momento em que esta tenta esconder a carta proibida com o bastidor – indício das contrariedades futuras que surgirão no futuro comum das personagens.
A partir daqui é narrada a história de um desamor com um epílogo feliz, ao longo da qual assistimos à lenta evolução dos factores que fazem um casamento aparentemente perfeito desmoronar a longo prazo: aquilo a que o Autor chama de “o veneno da rotina” ou “as pequenas contrariedades do quotidiano”. A habitual perspicácia de Gabo, quanto ao desenvolvimento das relações humanas evidencia que, contrariamente àquilo que seria de esperar, não são as grandes crises que afectam um casamento já que, após serem ultrapassadas, estas tendem a cair no esquecimento mas antes, as pequenas ninharias do dia-a-dia, como podemos observar no divertido “episódio do sabonete”.
A vida no bordel e a violência exercida sobre as mulheres
A juventude de Florentino Ariza, tal como parte da própria juventude de García Márquez decorre numa casa de passe, onde o aluguer de um quarto era consideravelmente mais barato e onde dispunha da oportunidade de observar e registar algumas das mais impensáveis formas de violência exercidas sobre as mulheres.
Indícios e símbolos a marcar oponentes e aliados em O Amor nos tempos de Cólera
Já vimos antes de que forma Gabriel García Marquez usa o ouro como marca distintiva de defeitos pessoais ou acontecimentos negativos nas suas obras. O mesmo elemento serve também para marcar desfavoravelmente esta ou aquela personagem ou alguma coisa que irá correr menos bem no desenrolar dos acontecimentos. O ouro surge na obra de que aqui tratamos como símbolo de corrupção figurando, por exemplo, no anel com opala de Lorenzo Daza, pai de Fermina, homem materialista e de fortuna de origem duvidosa. Está também presente nos olhos de Urbino, que se apresenta não exactamente como um homem corrupto mas antes um pouco superficial. Trata-se do rival de Florentino Ariza, seu antagonista e mostra-se de um homem sobretudo vaidoso, com um acentuado gosto pelo luxo e apreço por honrarias. Daí o Autor o ter brindado com uns olhos dourados. O casamento de Fermina com Urbino, aprovado pela família, une o útil ao agradável. A família do jovem médico vê o seu património decrescer de geração para geração pelo que, ao fascínio pela beleza da jovem, junta-se a atraente situação financeira dos negócios da família.
O ouro está relacionado também com a mãe de Florentino, Tránsito Ariza, a qual possui uma loja de penhores, sendo uma figura não muito simpática pois que sobrevive à custa da ruína alheia.
As irmãs de Urbino surgem na história como as bruxas das histórias de fadas. Destilam veneno de forma dissimulada, até na forma como oferecem presentes à noiva. Já as primas de Fermina, desempenham, pelo contrário, o papel de adjuvantes ou aliadas, chegando até a sentir alguma compaixão por Florentino. Sobretudo a independente e solteirona Hildebrand, bondosa e indomável, tomada por um amor impossível. Durante o tempo em que vive com os pais, é ela quem mantém aceso, o fogo de Vesta. É a guardiã do lar.
A esbelta e dourada – mais uma vez a cor aziaga – Rosalba com quem Florentino Ariza perde a virgindade a bordo de um vapor é uma mulher superficial, que apenas concede migalhas de amor, mesmo aos filhos. A partir do momento em que efectua a viagem no vapor com Rosalba, Florentino Ariza lançar-se-á num vórtice de aventuras sexuais durante várias décadas para esquecer Fermina.
Em relação a Fermina, Florentino é cativado pela sua postura altiva e pela postura ágil de sílfide.
A consumação ou o destino dos amantes
A partir do dia do funeral de Jeremiah, o qual que coincide com o dia da morte de Urbino, Florentino Ariza inicia o processo de reconciliação com Fermina. Durante as décadas que se antecederam, Florentino conta com a amizade incondicional de Leona cuja solidariedade nada tem a ver com uma relação de amante até ao momento em que Florentino e Fermina se reencontram para viver uma existência idílica.
O amor é tratado, a partir de então, como a redenção face à ideia de velhice e morte que surge no início do livro com o suicídio do fotógrafo, permitindo assim ao par romântico o resgate de um passado por viver.
O Amor nos Tempos de Cólera é um livro que se lê com prazer até à última página, de uma impressionante força lírica, onde a beleza das palavras e a transfiguração quase que perfeita das emoções que as representam estão presentes em cada linha do texto.
Cláudia de sousa dias
23.04.2011