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Bibliomaníaca e melómana. O resto terão de descobrir por vocês!

Tuesday, August 23, 2011

“Animal Volátil” de Rosa Alice Branco e Casimiro de Brito (Edições Afrontamento)



Animal Volátil nasceu de um desafio que se traduziu numa troca de emails entre ambos os Autores, de onde emergiu um diálogo poético sobre o amor, a solidão e a morte, enquadrados numa paisagem outonal e de luz crepuscular, que em tudo faz lembrar a paz dos campos elísios.

Emoções como a saudade e a nostalgia afloram à pele, evocando a Memória, tecendo quadros de rara beleza.

O teor do diálogo ressalta e entroniza a Amizade a partir da qual o amor pelas letras e pelas palavras apela à exploração das mais diversas facetas da vida, desmontando tabus e, sobretudo, esse tema tão complexo e rico: o amor. Este, é aqui discutido, debatido, recordado, pintado
nos seus múltiplos desdobramentos: o amor-amizade, o amor-romântico, o amor filial, o
companheirismo no amor e, claro, o Eros.

Os diálogos são sempre pautados por uma grande beleza imagética, projectando quadros tranquilos, de uma serena luminosidade, dourada e tépida, deixando entrever um estado de espírito no qual domina a disposição em disfrutar da tranquilidade de um Jardim da Hespérides, após o tempo instável e tumultuoso de um verão emocional, marcado por abruptas oscilações.

Os poemas são compostos essencialmente pela beleza arcádica, pautada pelo forte sentido de harmonia estética de ambos os autores, esperando serem desvendados por todos aqueles que amam e partilham da poesia no quotidiano…


“O poema, tal como a amizade, é uma coisa animal: há um momento em que nasce não se sabe o quê, uma gota, uma sílaba furtiva que depois se desenvolve, se vertebra, vértebras quase invisíveis que se cruzam em vias labirínticas e não se sabe muito bem que caminhos ou descaminhos seguem, mas levam a algum lugar, a alguma coisa."

Casimiro de Brito sobre Animal Volátil

Para Rosa Alice Branco, a Poesia é, ela própria, a essência do animal volátil de que trata este belíssimo diálogo poético.

Deixo-vos com três poesias extraídas deste "Animal" que se materializa e volatiliza a duas vozes e quatro mãos.


Animal Volátil


Animal andrógino que dança


até à morte, a mais volátil, a do jardim


das delícias.


(pág. 9)



Longe das Abelhas



As palavras são mais do que palavras


e menos peso


por isso sobem a montanha com se descessem


a linha dos juncos e dos choupos


e veio de ar a linha de água.



Está tudo intacto a própria certeza se mantém


no horizonte onde a terra toca o corpo


e quando a chuva cai a beleza penetra-a


e faz caminhos


nos caminhos


onde a gravidade não tem peso e a língua


se esquiva à vigilância do pensamento.



As palavras não ocupam o espaço interior


qua as consome ou o tempo


mais cedo que as deseja.


Mas há formas entre elas no vazio onde respiro


o teu poema


com os ossos leves


e o pulso delicado de um animal.


(pág. 12)



A Alegria dos Pés na Terra Molhada



Quando as palavras se deixam possuir


como se fossem raízes e ossos leves que trepam


à montanha


ouço a infância, o som do berlinde, a flauta


do anjo anunciador da chuva


e a formiga da mãe a enxotar-me


para a escola onde aprendi


a ler no quadro da janela


as metamorfoses do céu. A poesia escreve-se


copiando os mestres, imitando mal


as fontes naturais: as patas


da água


descendo pela serra, a melopeia silenciosa


do azeite; a boca do vento


nas telhas da velha casa


do monte, a chama interior


dos cavalos


e dos cães da família: de manhã


pela mão do avô


eu partia de visita às árvores


e aos pássaros - esta é uma cerejeira, aquela,


a dona nogueira, olha


um picanço! a que parece muito cansada


é a figueira, Vamos comer um? O avô


pegava nele como se fosse um animalzinho


acabado de nascer, um pássaro com pétalas e já morto


na boca sedenta e logo


saciada. Um figo é uma


dádiva do sol e da terra e da nossa


humilde fome, e tudo são figos, ah não comas,


não comas nunca nada


sem fome. Ouço -


aprendo nesses dias a ouvir


o melhor da infância: água


na língua


quando a morte é gémea


e se aproxima.



(págs. 13-14)



Cláudia de Sousa Dias

17.06.2011

Thursday, August 18, 2011

“Nome de Toureiro” de Luís Sepúlveda (ASA)



Tradução de Pedro Tamen

Neste romance, o Autor mundialmente aclamado por títulos como “O Velho que lia Romances de Amor” e “História de uma Gaivota e do Gato que a ensinou a voar” mostra a sua versatilidade ao abraçar um género de narrativa que se distancia, de certa forma, do lirismo do primeiro e do humor e alegoria do segundo, abraçando o género do romance policial negro. Em “Nome de Toureiro” não falta, por isso, o sangue, a intriga, o mistério e as mudanças sociais decorrentes de um ponto de viragem na História da Europa no último quartel do século XX: a queda do Muro de Berlim, em Novembro de 1989 e posterior desmoronamento da “Cortina de Ferro” juntamente com o final da Guerra Fria entre as duas principais super-potências económicas e militares a nível Mundial: os Estados Unidos e a União Soviética sujeitando o Mundo a uma guerra de nervos que durou quase meio século.

A posição do narrador de “Nome de Toureiro” é a de um frio e algo distante cepticismo face à tentativa de as principais potências mundiais tentarem atribuir, a partir de então, um fim à História, após a vitória e domínio absoluto do capitalismo financeiro.

Luís Sepúlveda foi buscar a inspiração para o romance aos anos passados no exílio em Hamburgo, nos início dos anos 1990, altura em que o Chile ainda atravessava os últimos anos do regime da ditadura militar. O Autor traça-nos um relato, divertido e irónico, bastante realista, do quotidiano de um imigrante no território correspondente à ex- Alemanha Federal, ao pôr a nu as contradições da grande utopia do Ocidente que é a Igualdade de Oportunidades descrevendo as dificuldades de um cidadão que não fazendo parte da UE, busca asilo político naquele território, sendo forçado a adaptar-se aos novos tempos e, a bem dizer, às novas formas de discriminação existentes. Um dos principais problemas que enfrenta a Alemanha reunificada poderá ser representado numa das cenas mais divertidas do romance onde o narrador fala da “otomanização dos estrangeiros na Alemanha”, passando a explicar as contrariedades com a vizinha, a qual confunde um tango de Gardel com uma orientalíssima dança do ventre, fazendo queixa á polícia por causa do barulho de uma “festa turca”. Da mesma forma, a descrição da rixa numa casa de alterne onde o protagonista desempregado que arranja um emprego temporário exercendo as funções de porteiro do mesmo estabelecimento, se assemelha à luta de gatos de rua que observamos nas aventuras de Zorbas em “História de uma Gaivota e do Gato que a ensinou a voar”, exprime uma situação bastante concreta de conflitos sociais entre autóctones e imigrantes naquele país.

Em “Nome de Toureiro”, Luís Sepúlveda descreve ainda durante a parte da acção passada na Alemanha, uma sociedade onde as competências importam muito menos do que o sucesso, obtido seja de que forma for, descurando ética e os meios utilizados, e onde tudo vale para a obtenção do reconhecimento social, a cujo acesso só se pode concretizar através de uma via de sentido único: a aquisição de poder económico. Para tal, o Autor alude, às dificuldades de reconversão de funções, numa sociedade em profunda transformação, sobretudo dos funcionários do estado da ex República Democrática Alemã (RDA)e da necessária adaptação ao novo sistema político-económico, pressupondo um saneamento geral, sobretudo de todos os serviços ligados à espionagem, que passam a ser dispensáveis por carecerem de sentido.

O problema consiste sobretudo em o que fazer com aquelas pessoas, muitas delas ultra qualificadas, e onde recolocá-las.

Entretanto, nos Andes, o local da acção principal, somos esmagados por uma incomensurável beleza agreste de uma paisagem inóspita e algo selvagem como é a da Terra do Fogo. Nestas paragens, o fim da ditadura no Chile trouxe, também, alguma mudança. E, com ela, algum desencanto em relação àquela espécie de fervor ideológico, que antes era visto como uma espécie de dogma. O final do período de exílio do protagonista, outrora espião e agora convertido em detective privado, encarregue de uma missão reveladora de algumas das facetas mais negras do passado histórico Europeu do último século, onde se esbate, cada vez mais a fronteira entre “bons” e “maus”, marca a mudança de cenário, dando início à acção principal do romance.

Ao mergulharmos na leitura de “Nome de Toureiro” percebemos que os regimes totalitários foram substituídos, nas últimas décadas, por uma omnipotente ditadura financeira, a partir da qual o mercado de capitais controla a vida dos cidadãos e, ao mesmo tempo, tomamos também consciência do quanto as sociedades se encontram distantes da gigantesca utopia a que chamam “liberdade”.

O romance policial e de espionagem de Luís Sepúlveda converte-se, a partir do final da segunda parte, numa autêntica caça ao tesouro, que é o mesmo que dizer numa impiedosa luta pela posse do capital e na qual a perseguição aos antigos perseguidores, sejam eles “nazis” ou “comunistas”, todos eles com um extenso curriculum de crimes políticos e genocídios, não deixa margem para certezas quanto a saber se algum dos lados conseguiu realmente sair vencedor de tal contenda.

O livro é dedicado ao escritor argentino Haroldo Conti, utópico dos ideais de democracia, igualdade e liberdade, desaparecido em Buenos Aires em 1976.

Impressões sensoriais a partir da escrita de Sepúlveda em Nome de Toureiro

A sensação de desolação e ruralidade começam por estar presentes logo no prólogo, na deliciosa cena que contém o diálogo entre o condutor de um velhíssimo autocarro e um almocreve. Daqui sobressai divertido diálogo, cheio de humor e ironia, a contrastar com a impessoalidade da selva urbana de Hamburgo.

A paisagem dos Andes é hostil, mas há um inequívoco calor humano nos diálogos, ainda que casuais, dos seus habitantes, proporcionando um contraste irresistível com “o mar que murmura de ódio ao passar pelo Estreito de Magalhães”. Este mesmo contraste faz imediatamente intuir um indício de tragédia ou drama iminente, que se consumará no capítulo final. Pelo meio, sobressai, nas entrelinhas, o humor negro do Autor, com particular ênfase no discurso do motorista do Autocarro, de uma provocadora acutilância.

A trama

O núcleo central da história envolve dois polícias do III Reich e a respectiva actuação face ao desvio de um cobiçado tesouro, durante a Segunda Guerra Mundial, um dos quais foge com a fortuna para a Terra do Fogo. A narrativa é circular já que o local de acção no início, o Sul do Chile, coincide com o final após várias peripécias na Europa e nas Caraíbas. Assiste-se ao desfecho da história, decorrente do reencontro das personagens antagonistas; o protagonista viaja em missão com o nome de Juan Belmonte, nome de uma conhecida vedeta de tauromaquia, isto é, viaja sob Nome de Toureiro, incumbido pelos serviços secretos da nova Alemanha reunificada da tarefa de recuperar o tesouro para os cofres do estado.

Sob(re) Nome de Toureiro

O protagonista da missão, Juan Belmonte é um homem inteligente, culto e bem-humorado poliglota que vive no limbo social durante o exílio em Hamburgo. Em Berlim, conhece Franck Galinski, um assassino, a soldo da antiga Stasi (polícia política da antiga RDA), o cerne da intriga, cujas raízes se estendem até à América Latina. A despedida de Juan Belmonte da Alemanha dá-se em Berlim, lugar onde se desloca para ser informado da proposta para trabalhar para os Serviços Secretos e marca o final de uma temporada de desemprego e marasmo.

De volta à América do sul, o agente secreto Belmonte encontra Pedro de Valdívia, participante activo da revolta sandinista na Bolívia, estabelecendo-se de imediato uma empatia instantânea entre ambos, sobretudo após comentarem as atrocidades cometidas por Anastacio Somoza – ditador boliviano que mandou cortar a mão a vinte crianças que atiravam pedras, durante a insurreição de Marsuya, das quais só doze sobreviveram.

Do território chileno vêm, também, alguns fantasmas do passado à mente de Belmonte. O mais presente é o de Verónica, uma paixão da juventude, psiquicamente destruída após um prolongado período de tortura às mãos de algozes a mando de Pinochet.

O fio de Ariadne do desenvolvimento da narrativa é reatado, após algum período de dispersão, em Santiago do Chile a partir de um estranho objecto que traz ao presente memórias distantes, reunindo algumas peças que faltavam para compor o puzzle: um quebra-nozes. O faro de caçador de tesouros de Juan Belmonte é activado em todas as suas potencialidades de encontrar elementos de ligação, face a esta nova pista…

No epílogo, assistimos ao último adeus de Belmonte à Terra do Fogo, findo o trabalho de investigação e ao desvendar de uma complexa trama policial muito ao estilo de John Le Carré.

Um destaque especial vai para a magnífica descrição da extrema beleza da noite austral, triste e desoladora, a qual provavelmente terá inspirado o poeta Pablo Neruda na sua poesia tão cheia de lirismo telúrico e que Luís Sepúlveda tão bem soube representar nas imagens que transmite numa prosa tão rica quanto inflamada de poesia. Também a extrema simplicidade e bonomia das gentes locais desta região tão remota são aqui realçadas, assim como o pragmatismo de um povo ligado à terra e à natureza. Um povo cujas qualidades o colocam numa situação frágil, porque exposto aos abutres, sobretudo humanos, que sobrevoam o céu austral…

Cláudia de Sousa Dias

25.04.2011

Friday, August 12, 2011

“O Amor nos tempos de cólera” de Gabriel García Márquez (Dom Quixote)



No posfácio de João de Melo, desta edição, são salientados dois aspectos fundamentais da obra: o quotidiano das personagens e da povoação onde vivem; e os efeitos operados pela dança do tempo.

Gabriel García Márquez começa a publicar as suas obras mais conhecidas precisamente em finais dos anos 1960 e décadas seguintes, altura em que se assiste a uma súbita e generalizada valorização da literatura sul-americana a nível mundial. O Autor publica O Amor nos Tempos de Cólera , em 1985, três anos depois de receber o Prémio Nobel. O escritor colombiano passou a ser uma figura fundamental para a descentralização do Universo literário europeu e norte-americano logo após a primeira metade do século XX. A partir de 1982, ano em que ganha o Prémio Nobel da Literatura, torna-se uma figura da vanguarda literária que defendia, então, a fusão entre o real e o imaginário, entre a ficção e a notícia histórica. García Márquez torna-se exímio em pintar o quadro da vida quotidiana das gentes de um continente em que a realidade sociopolítica como a da Colômbia é tão dura que os seus habitantes parecem necessitar, muitas vezes, de se evadir para o terreno do maravilhoso, do inexplicável, dos milagres. A violência e a dureza de algumas obras de Gabo como Notícia de um Sequestro, já comentada neste blogue, assim como de alguns contos de Olhos de Cão Azul e mesmo a descrição de alguns episódios de O amor nos tempos de cólera são equiparáveis às estórias de A Fronteira de Vidro de Carlos Fuentes, ao passo que a imaginação fulgurante fá-lo aproximar-se mais de autores como Jorge Luís Borges. No entanto, a persistência do tom optimista e do humor negro característico de Gabriel García Márquez diferenciam-no dos seus pares, fazendo com que os seus livros se esgotem nas prateleiras das livrarias vendendo-se ao ritmo de “salsichas quentes” como ele próprio afirma. O estilo literário que caracteriza a sua prosa é normalmente chamado de “realismo fantástico” ou “mágico”. A obra de Gabo trata sobretudo os grandes temas sociais, envoltos numa bruma onírica, a que se mistura o colorido da cultura local e as marcas etnográficas da região andina ou caribenha, onde a realidade e a ficção se encontram num ponto de equilíbrio, sublimado no imaginário, muitas vezes codificado através de figuras ou personagens-tipo.

O sagrado e o profano também se encontram com abundância na obra de GGM. Estes dois elementos apresentam-se quase sempre em conflito, digladiando-se. De acordo com o ponto de vista do Autor do posfácio estes dois termos deixam de estar separados, no plano da escrita, “pela fronteira da racionalidade”, surgindo desta forma, os chamados “prodígios”, a colorir a trama e a sugerir uma explicação para o incompreensível.

Os símbolos mais utilizados na escrita ficcional de Gabriel García Márquez, conforme vemos nas entrevistas dadas a Plínio Apuleyo Mendoza em O Aroma da Goiaba, são:

1) A cor dourada, símbolo de ostentação, vaidade, superficialidade, ou mesmo de maldade ou corrupção. O ouro, dentro do discurso literário de Gabriel García Márquez está directamente ligado à corrupção ou a algo que foi desvirtuado. Nos olhos do noivo de Angela Vicario em Crónica de uma Morte anunciada essa cor está presente, fazendo associar o olhar da personagem à frieza e crueldade do olhar das serpentes.

2) Outro símbolo largamente explorado na produção literária do Autor é a Solidão: onde o homem solitário em quase todos os livros de GGM desperta, quase sempre, a compaixão e o instinto protector nas mulheres, numa mistura de instinto maternal com a necessidade de superação de um desafio. Os solitários de Gabriel García Márquez são normalmente grandes amantes.

3) Outra característica da prosa de García Márquez é o imaginário rico, proveniente do imenso património de tradição oral e imaterial da região dos Andes, das lendas contadas pelas mulheres da família, de onde a avó do Autor, Doña Tranquilina, tem um papel preponderante.

4) A exuberância adjectiva, conjugada com uma retórica provocadora a que se junta, no caso particular de O amor nos tempos de cólera, o domínio perfeito da forma escrita, da estruturação da trama e desenvolvimento da narrativa, atingem o seu ponto máximo neste romance. Em O amor nos tempos de cólera o Autor é exímio na utilização dos avanços e recuos no tempo, de forma a estabelecer paralelos entre épocas conseguindo, assim, prender a atenção do leitor, num a evolução da narrativa que se assemelha ao ritmo do tango.

5) A poesia n’O amor nos tempos de cólera conjuga-se com a música e a escrita de cuja fusão, acumulada à função poética de multiplicar as interpretações , interage com as referências musicais presentes na obra, pautando o desenvolvimento da acção pelo uso do contraponto na arquitectura da narrativa.

Para a maior parte dos estudiosos de Gabriel García Márquez, O Outono do Patriarca é considerado o seu romance “mais literário”, Cem anos de solidão a sua obra de maior intensidade narrativa, Crónica de uma morte anunciada o romance da fatalidade e inexorabilidade do destino, à semelhança das tragédias clássicas, mas o Amor nos tempos de cólera será sempre considerado pela maioria dos seus leitores, a obra de GGM de” maior fulgor imagético”, em cujo final assistimos ao triunfo do amor após o desenrolar da saga de aventuras e desventuras versando sobre a felicidade humana, a sublimação da mulher como peça fundamental numa sociedade matriarcal e por último, uma nova forma de olhar a velhice, desdramatizada e despojada da perspectiva decadentista tradcional.

João de Melo chama ainda a atenção para a “euforia verbal que se manifesta numa prosa velocíssima, caudalosa, pejada de imagens e magias, dotada de um ritmo frásico próximo da vertigem” de O amor nos tempos de cólera.

O cenário final, onde o par romântico se reúne, dando início a uma vida integralmente pautada pelo amor, é criando pela reinvenção de um mundo primitivo, edénico, pois que remete para o paraíso perdido pelo homem, devido à pressão da necessidade de sobrevivência. Trata-se do lugar imaginário onde a felicidade aparece em todo o esplendor da sua perfeição; o regresso às origens, aos primórdios da humanidade, após emergirem os amantes de um mundo apocalíptico: a baía da cidade, contaminada pela cólera.

Solidão versus Solidariedade

A trama de O amor nos tempos de cólera é composta por personagens solitárias que, ou se afundam no próprio egoísmo ou canalizam a própria solidão para algo mais construtivo. Esta espécie de solitários altruístas faz parte da temática recorrente na obra de García Márquez e não apenas no livro de que aqui tratamos: está também presente em Cem anos de Solidão, Olhos de Cão Azul, Crónica de uma Morte anunciada, sem falar, claro está em O Outono do Patriarca ou ainda em Memória das minhas Putas Tristes.

N’O amor nos tempos de cólera, o quotidiano das personagens acaba por ser a medida de todas as coisas: a pobreza e o luxo, a solidão e a festa, a glória e a miséria dos dias. A humanização é operada pelo tempo, sobretudo no caso particular da protagonista feminina, esta vai senso moldada por acção do amor que surge como catalisador, esperando a sua acção ao logo do tempo. O amor serve como pretexto para exaltar a Mulher – através da voz do protagonista, o Poeta Florentino Ariza – perante a inevitabilidade da morte.

O tempo real do desenvolvimento da narrativa abrange um período de sessenta anos que vai desde a época dourada da belle époque até à primeira metade do século XX. Ao longo de toda a evolução da trama, o Autor empenha-se em reconstruir o mito do eterno feminino onde Fermina, a protagonista, surge logo no início da história como uma “deusa coroada”. A própria entrega desesperada do Poeta a “mulheres que não têm futuro no seu coração” reforça o sentido de gravitação espiritual em torno dessa “única, luminosa mulher dos seus sonhos” numa pacientíssima espera que “cinquenta e um anos, nove meses e um dia” confirma esta ideia.

Posto isto, O Amor nos Tempos de Cólera reúne todos os ingredientes para ser um romance no qual o fantástico, o maravilhoso e o surreal de forma bastante diluída mas persistente, vão deslumbrando o leitor, ao longo de mais de quatrocentas páginas.

A Estrutura

O Amor nos Tempos de Cólera é um romance de estrutura circular que apresenta, de forma recorrente, “um apelo desesperado da vida contra a morte do amor contra a solidão.”

A história abre com duas mortes: um suicídio – o de Jeremiah Saint-Amour, o fotógrafo que sucumbe à solidão e à tristeza de ver perdida a própria juventude - , seguido de um funeral –o do Doutor Juvenal Urbino, médico muito estimado da região pela luta empreendida contra a epidemia de cólera. O próprio nome do fotógrafo não deixa de transparecer um pouco de ironia, pelo facto de se tratar de um homem que morre de pena de si mesmo e de nostalgia pelo jovem que foi no passado, dedicando-se até ao fim da vida a fotografar a juventude e a beleza da infância. O personagem tem o amor no nome (que se pode ler de duas maneiras, significando Jeremias do Amor santo ou Jeremias Sem Amor) mas não o tem à sua volta, uma vez que não é capaz de se voltar para o Outro, sendo de certa forma um pouco anti-social. A sua única companhia é a do amor que se torna uma espécie de patologia, porque virado para si mesmo, centrando a vida nele próprio e na fotografia. O “fotógrafo da juventude” recusa-se a aceitar a decadência do corpo e da velhice suicidando-se com cianeto de ouro – o ouro como símbolo da destruição e da fatalidade.

A primeira frase do romance estabelece imediatamente o elo de ligação entre o cenário do quarto do suicida ao desfecho amoroso de Juvenal Urbino por Fermina Daza.

Era inevitável: o cheiro das amêndoas amargas recordava-lhe sempre o destino dos amores contrariados.

Quase em simultâneo com o suicídio do fotógrafo, ocorre a morte do Doutor juvenal Urbino, tão inesperada quanto comovente: é a porta que vai desencadear os acontecimentos da última parte do romance, após uma longuíssima analepse, abrindo assim uma janela para o passado da Juventude de Fermina Daza: o primeiro amor da jovem beldade pelo telegrafista e poeta romântico Florentino Ariza, a quem preteriu ao casar com o belo e cavalheiresco Doutor Urbino, o pretendente ideal, quase demasiado perfeito em todas as suas qualidades e um dos jovens mais cobiçados da povoação. O insólito surge em vários momentos da obra na cena um que um pássaro acerta precisamente em cima do bordado de Fermina, com a respectiva carga excrementícia, no exacto momento em que esta tenta esconder a carta proibida com o bastidor – indício das contrariedades futuras que surgirão no futuro comum das personagens.

A partir daqui é narrada a história de um desamor com um epílogo feliz, ao longo da qual assistimos à lenta evolução dos factores que fazem um casamento aparentemente perfeito desmoronar a longo prazo: aquilo a que o Autor chama de “o veneno da rotina” ou “as pequenas contrariedades do quotidiano”. A habitual perspicácia de Gabo, quanto ao desenvolvimento das relações humanas evidencia que, contrariamente àquilo que seria de esperar, não são as grandes crises que afectam um casamento já que, após serem ultrapassadas, estas tendem a cair no esquecimento mas antes, as pequenas ninharias do dia-a-dia, como podemos observar no divertido “episódio do sabonete”.

A vida no bordel e a violência exercida sobre as mulheres

A juventude de Florentino Ariza, tal como parte da própria juventude de García Márquez decorre numa casa de passe, onde o aluguer de um quarto era consideravelmente mais barato e onde dispunha da oportunidade de observar e registar algumas das mais impensáveis formas de violência exercidas sobre as mulheres.

Indícios e símbolos a marcar oponentes e aliados em O Amor nos tempos de Cólera

Já vimos antes de que forma Gabriel García Marquez usa o ouro como marca distintiva de defeitos pessoais ou acontecimentos negativos nas suas obras. O mesmo elemento serve também para marcar desfavoravelmente esta ou aquela personagem ou alguma coisa que irá correr menos bem no desenrolar dos acontecimentos. O ouro surge na obra de que aqui tratamos como símbolo de corrupção figurando, por exemplo, no anel com opala de Lorenzo Daza, pai de Fermina, homem materialista e de fortuna de origem duvidosa. Está também presente nos olhos de Urbino, que se apresenta não exactamente como um homem corrupto mas antes um pouco superficial. Trata-se do rival de Florentino Ariza, seu antagonista e mostra-se de um homem sobretudo vaidoso, com um acentuado gosto pelo luxo e apreço por honrarias. Daí o Autor o ter brindado com uns olhos dourados. O casamento de Fermina com Urbino, aprovado pela família, une o útil ao agradável. A família do jovem médico vê o seu património decrescer de geração para geração pelo que, ao fascínio pela beleza da jovem, junta-se a atraente situação financeira dos negócios da família.

O ouro está relacionado também com a mãe de Florentino, Tránsito Ariza, a qual possui uma loja de penhores, sendo uma figura não muito simpática pois que sobrevive à custa da ruína alheia.

As irmãs de Urbino surgem na história como as bruxas das histórias de fadas. Destilam veneno de forma dissimulada, até na forma como oferecem presentes à noiva. Já as primas de Fermina, desempenham, pelo contrário, o papel de adjuvantes ou aliadas, chegando até a sentir alguma compaixão por Florentino. Sobretudo a independente e solteirona Hildebrand, bondosa e indomável, tomada por um amor impossível. Durante o tempo em que vive com os pais, é ela quem mantém aceso, o fogo de Vesta. É a guardiã do lar.

A esbelta e dourada – mais uma vez a cor aziaga – Rosalba com quem Florentino Ariza perde a virgindade a bordo de um vapor é uma mulher superficial, que apenas concede migalhas de amor, mesmo aos filhos. A partir do momento em que efectua a viagem no vapor com Rosalba, Florentino Ariza lançar-se-á num vórtice de aventuras sexuais durante várias décadas para esquecer Fermina.

Em relação a Fermina, Florentino é cativado pela sua postura altiva e pela postura ágil de sílfide.

A consumação ou o destino dos amantes

A partir do dia do funeral de Jeremiah, o qual que coincide com o dia da morte de Urbino, Florentino Ariza inicia o processo de reconciliação com Fermina. Durante as décadas que se antecederam, Florentino conta com a amizade incondicional de Leona cuja solidariedade nada tem a ver com uma relação de amante até ao momento em que Florentino e Fermina se reencontram para viver uma existência idílica.

O amor é tratado, a partir de então, como a redenção face à ideia de velhice e morte que surge no início do livro com o suicídio do fotógrafo, permitindo assim ao par romântico o resgate de um passado por viver.

O Amor nos Tempos de Cólera é um livro que se lê com prazer até à última página, de uma impressionante força lírica, onde a beleza das palavras e a transfiguração quase que perfeita das emoções que as representam estão presentes em cada linha do texto.

Cláudia de sousa dias

23.04.2011