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Bibliomaníaca e melómana. O resto terão de descobrir por vocês!

Wednesday, December 26, 2012

“Taís de Atenas” de Ivan a. Efremov (Slavia Edições)





Imagem de Bazar Vermelho

Tradução: Dina Paulista e Margarida Savko de Brito.

Dados biográficos:

Ivan Antonovich Efremov, de patronímico Ivan Antipovich Yefremov, nasceu a 22 de Abril de 1908, vindo a falecer a 5 de Outubro de 1972. De nacionalidade russa, foi um célebre historiador e paleontólogo soviético, além de romancista, contando com uma vasta lista de obras de ficção científica, ensaio e romance histórico. Destacou-se, também, como pensador, filósofo e cientista social. Foi pioneiro no estudo da taphonomia (combinação de foraminíferos que fornece informações sobre os constituintes físico-químicos do biótopo e, em particular, sobre a salinidade, a temperatura, substrato e confinamento dos materiais) e dos padrões de fossilização. É originário da cidade de Vyritsa, no distrito de Sampetersburgo. Os pais divorciaram-se ainda durante o período efervescente da Revolução Russa. A mãe voltaria a casar-se com um oficial do Exército Vermelho, deixando as crianças em Kherson, ao cuidado de uma tia, que viria, pouco depois, a falecer de tifo. Efremov sobrevive sozinho, durante algum tempo. Ainda na adolescência ingressa no Exército como “filho do regimento”. Em 1921, é dispensado do serviço militar, trasladando-se para Sampetersburgo a fim de prosseguir os seus estudos. Em 1924, influenciado pelo cientista P. Shuskin, começa a interessar-se por paleontologia, entrando para a universidade de Leninegrado, onde executa vários trabalhos de investigação, que o obrigam a deslocar-se aos lugares mais remotos e, por vezes inóspitos, da URSS. Acabará por dirigir o laboratório de pesquisa do Instituto de Paleontologia daquela Universidade. Obtém, em 1935, a Licenciatura em Ciências Biológicas e em, 1941, o Doutoramento em Antropologia Forense e Paleontologia. Durante a década de 1940, desenvolve o estudo de taphonomia, pelo qual recebe o Prémio Estaline, em 1952. Aplicou o resultado das suas investigações em estudos arqueológicos, realizados no deserto de Gobi e na Mongólia. Foi este trabalho que lhe trouxe o reconhecimento internacional como cientista e paleontólogo. Em 1944, estreou-se na escrita ficcional com The Land f Foam cujo título muda para Great Arc em 1946, data da sua publicação. Segue-se a obra de ficção científica Andromeda Nebula, em 1957, um verdadeiro panegírico, transposto para épocas futuras, versando sobre a “utopia comunista” para a Humanidade. Seguem-se outros contos de ficção científica, sendo ano da sua morte aquele em que deu à luz o romance histórico Taís de Atenas.
Em Portugal, a publicação está a cargo das Slávia Edições cm tradução de Dina Paulista e Margarida Savko de Brito.

No romance Taís de Atenas Ivan Efremov aborda o papel das mulheres na antiga Hélade, no século IV Antes de Cristo, em plena expansão alexandrina. No texto, é possível detectar alguns elementos do ideário político da sociedade em que cresceu o Autor, nomeadamente no primado do cuidado das educação das crianças a cargo de instituições, influenciado pela sua própria história familiar, e na crença na liberdade total de escolha, dada às mulheres, quanto à selecção dos seus parceiros sexuais.

Assim, Efremov distingue dois tipos sociais principais de mulheres que habitavam a Grécia no Período Helenístico: as esposas e as heteras. Estas duas castas de mulheres habitam espaços bem delimitados, que jamais se misturam ou convivem entre si. As primeiras, encontram a segurança e protecção dentro do casamento, mas não participam de forma alguma na vida pública nem podem votar. As mais afortunadas parecem ser aquelas que provém da aristocracia ou mesmo plebeias mas de famílias de cidadãos livres. 
Os grupos são endogâmicos. O grau de protecção dado à mulher no casamento vai, entretanto, diminuindo à medida que se desce na pirâmide social, já que as mulheres das classes menos favorecidas, como por exemplo as escravas, sofrem, não raro, podem sofrer abusos por parte do senhor. A protecção nas camadas mais básicas da pirâmide é, assim, relativa. As mulheres casadas na época de Alexandre têm, em troca do estatuto social que lhes é concedido pelo casamento, de restringir a sua actividade ao espaço doméstico e, mesmo assim, com total liberdade, só nos aposentos destinados às mulheres: o gineceu. A infidelidade é punida com rafanidose.

As heteras ou cortesãs, por seu turno, gozam, segundo o Autor, de uma liberdade relativa. Não podem votar ou realizar qualquer acto político, tal como asa esposas, mas participam mais activamente na vida da polis (durante os banquetes em que estão presentes, por exemplo, aristocratas, estrategos e intelectuais). São instruídas e cultas, especializando-se em várias artes, tal como as gheishas no Japão feudal.

Algumas personagens históricas, como Aristóteles, não saem muito favorecidas no retrato feito por Efremov, sendo impiedosamente taxado pela espartana e bélica Hagesícora como um homem mesquinho e inacreditavelmente misógino.

Ivan Efremov interessa-se particularmente pela vida e pelo lugar que as mulheres ocupam na antiga sociedade helénica. Estas seriam, ao que tudo indica, valorizadas em primeiro lugar pela beleza, mas nas verdade, só conseguem obter uma posição de destaque através da cultura e da inteligência, propriedades que as dotam de carisma.

A figura central do romance é Taís, a Ateniense, que teria sido uma das amantes de Alexandre o Grande, tendo acompanhado a sua expedição ao longo da Grande viagem, desde o Egipto até ao Indo, passando pela Babiblónia e Ecbatana. Para Taís, a sobrevivência num mundo em que o mínimo passo em falso implica o declínio ou mesmo a morte – como o caso de Hagesícora – obriga-a a depender da sagacidade e da astúcia. A vida das heteras depende do equilíbrio frágil das alianças que efectuam com o poder. Ao longo do romance, são várias as personagens são várias as personagens femininas que sucumbem, como é caso de Hagesícora, companheira de Taís. A jovem de Sparta, apesar de adorada por todos como uma deusa é brutalmente assassinada por despeito, por um dos clientes mais possessivos.

O papel da Arte na Hélade é, também, uma forte presença no romance: o prestígio de artistas, sábios e filósofos é exaltado em vários momentos da narrativa, assim como a adoração pelo Belo, por parte das gentes da Hélade, faz das heteras seres invejados e alvos preferenciais do Desejo e da Cobiça: são artistas, músicas, intérpretes, bailarinas, pintoras, musas de escritores e poetas. A personagem central do romance, Taís representa aquilo que era valorizado na classe dominante: a perfeição das feições e a proporcionalidade das formas corporais que dão vazão ao seu talento como dançarina.

No entanto, poucas são realmente conhecidas como artistas, criadoras, apesar de excelentes intérpretes. No romance, é vagamente mencionada a ilha de Lesbos e de uma poetisa, Sapho, que dirige uma escola, em claro desafio à sociedade patriarcal.

 A obra de Efremov é, assim, construída como uma epopeia onde a protagonista feminina acompanha a comitiva de Alexandre mas com objectivos diferentes: enquanto o filho de Filipe da Macedónia pretende descobrir o mundo e alargar os seus domínios, Taís persegue um ideal de liberdade e autonomia. Uma sociedade utópica como a que defende o Autor do romance, onde a igualdade absoluta lhe permita viver uma vida em paz, sem medo e sem depender dos homens. Por esse mesmo motivo, Taís não deseja uma vida de cortesã para a filha. Mas também não a quer como esposa submissa sob ameaça de rafanidose. Taís persegue o mesmo sonho que Hagesícora, Hesíone e Éris que a acompanharam em diversos momentos do seu percurso.

O sonho de um mundo unificado sob a égide da cultura helénica, desfaz-se com a morte de Alexandre. Da mesma forma que a utopia de Taís, que parece encontrar temporariamente a paz numa ilha resguardada dedicada à deusa, Afrodite Anadiomene. Mas as ameaças surgem de todos os lados...

Iva A. Efremov escreve Taís de Atenas como um romance que, por vezes, adquire laivos de ensaio histórico, filosófico ou mesmo sociológico, onde a mulher é vista como a súmula de todos os atributos, mas sem ocupar o topo da pirâmide social, limitando-se, quando muito, a exercer um poder à margem do Poder. Apesar disto, o romance é um verdadeiro hino a uma civilização que atribuía a primazia e o lugar cimeiro às artes e ao saber, mostrando-a contudo, à beira do abismo. O seu declínio começará com a morte de Alexandre. O final deixa entrever um mudança estrutural, fruto do alargamento do Império, a lidar com o problema do choque de culturas das diferentes províncias e onde a disputa pelas mesmas ameaça a eclosão de uma guerra civil, podendo mesmo culminar no desaparecimento dos valores mais nobres da civilização cujo expoente máximo é a Cultura. Por outro lado, a Ocidente, uma outra civilização começa a despontar...

A nota do Autor não dúvidas no tocante ao respeito e admiração pela cultura milenar que foi berço da civilização europeia:

Os leitores contemporâneos poderão achar excessiva a abundância de tempos ou esculturas, bem como sobrevalorizado o papel de artistas e poetas. Contudo, não podemos esquecer que a vida espiritual daquela época girava em torno das artes e da poesia e, em menor proporção, à volta da filosofia.

(…)

Algo parecido poderemos verificar no Japão dos nossos dias: o contemplar dos jardins, ornados de flores, o fundir-se com a matéria nu abandono de si próprio em casas de chá à beira de um lago com nenúfares flutuando (…).

Ao longo dos vários séculos do florescimento da civilização helena, foram acumulando enormes riquezas em obras de arte, principalmente esculturas. Só uma minúscula parte desta riquíssima herança chegou aos nossos dias, em cópias romanas de mármore. Invasores ignorantes em tempos bastante recentes (invasões napoleónicas) fundiam algumas dessas esculturas de metal para a produção de balas de canhão. A título de exemplo, nenhuma escultura original de um artista tão produtivo como Lísipo é conhecida por nós, porque ele trabalhou principalmente o bronze.

Efremov não se coíbe ainda a comentar ainda o contraste notório, já evidente nos anos 1960 e 1970, face ao início do século XX relativamente às alterações climáticas, as quais assumem proporções alarmantes quando se efectuam comparações com as descrições de exploradores que andaram pela região mediterrânico-asiática há uns escassos duzentos anos.

O autor estava, também, profundamente convicto que as relações comerciais entre Ocidente e Oriente eram, na Antiguidade, bastante mais significativas do que aquilo que se crê. Tal como o nível de conhecimentos, guardado normalmente a sete chaves por sacerdotes em templos – egípcios e babilónicos – por recearem que a sua disseminação se tornasse um mal para a humanidade e cujo pensamento esclarecido implicaria a dissolução do seu próprio poder face à democratização do Conhecimento.
Para Efremov é sobretudo de especial importância o estudo e o desenvolvimento científico da Geografia Histórica do Oriente e a Antropologia Forense ou Paleontológica para reconstruir o percurso da vida do Homem. No seu entender, caberá depois aos romancistas a missão de “preencher” as lacunas, deixadas pelos vestígios, com a fantasia. Assim sendo, “este romance aparece como uma narrativa de ficção, baseada embora em documentos históricos”.

Uma obra de grande magnitude, vinda de um escritor obscuro e, praticamente, desconhecido na Europa Ocidental. Uma voz russa apaixonada pelo saber e pela Beleza. Um herdeiro do espírito ateniense.

31.07.2011-21.11.2012
Cláudia de Sousa Dias

Monday, December 17, 2012

“A Rainha do Cine-Roma” Alejandro Reyes (Oficina do Livro)




Dados Biográficos:

O Autor nasceu na Cidade do México. É jornalista e escritor. Viveu durante alguns anos nos EUA e em França. Posteriormente. mudou-se para o Brasil onde trabalha como assistente social, sendo a sua população-alvo composta essencialmente por crianças e adolescentes que vivem na rua. A sua ligação à Literatura prende-se com o mestrado em Estudos Latino-Americanos na Universidade da Califórnia. Encontrava-se, à data da publicação deste romance, a efectuar o Doutoramento, também em Literatura Latino-americana, incidindo na temática da Literatura Marginal. Escreve ainda em várias publicações, ligadas a diversos movimentos sociais no México e nos Estados Unidos, além de ter também participado no Movimento Literário Baiano. No tocante a publicações literárias, do seu curriculum constam já, para além de A Rainha do Cine-Roma, romance finalista do Prémio Leya em 2008, os títulos Vidas de Rua e Contos Mexicanos.

A Rainha do Cine-Roma trata da vida de duas crianças que, por razões diversas – desestruturação da vida familiar ou simplesmente um meio social hostil –, acabam por viver na rua. Ali, recorrem a estratégias de sobrevivência reveladoras de uma notável força psíquica, audácia e sentido táctico. No entanto, a falta de modelos de referência e de estruturas de protecção colocam-nas em situação frágil, que se traduz num elevado grau de exposição ao risco. A prática de pequenos delitos – roubo, consumo e tráfico de drogas, que pode ou não estar associado a práticas de prostituição – fazem delas permanentes fugitivas aos grupos de extermínio (esquadrões da morte) que dirigem os seus alvos aos chamados “trombadinhas” ,além de se colocarem inadvertidamente sob o domínio dos traficantes doo sexo. Assim, as vidas de Betinho e Maria Aparecida desenrolam-se a partir de um apuradíssimo instinto de sobrevivência, que as faz caminhar constantemente no fio da navalha...No meio de tudo isto, os jovens protagonistas alimentam o sonho e a esperança como espectadores e hóspedes clandestinos do velho cine-teatro do bairro degradado onde vivem: o Cine-Roma.

O mérito de Alejandro Reyes consiste na forma esquemática com a qual consegue contextualizar as circunstâncias familiares e sócio económicas que empurram duas crianças que deveriam estar na escola para a marginalidade e exclusão social: a miséria extrema, a violência doméstica, o abuso sexual dentro do próprio agregado familiar, o desinteresse ou descuido dos familiares mas próximos. A isto junta-se a alienação das instituições, o corolário de um conjunto de factores que ajudam a perceber um pouco melhor quem não contacta directamente com esta realidade o porquê da escolha deste jovens – que, na verdade, não têm escolha, pois quase não encontram diferença entre o risco de viver na rua e a situação de perigo eminente que vivem diariamente em casa. Um retrato lúcido de uma realidade difícil de encarar pelas pessoas que sempre viveram dentro daquilo a que se chama a “normalidade”.

A trama evolui tendo com móbil principal a procura da liberdade e a não sujeição à prepotência vivida em família, em acelerado processo de entropia.

Num cenário de plena selva social, as formas de solidariedade emergentes em determinados grupos, são a faceta mais comovente do romance, onde facilmente conseguimos identificar ecos de Os Miseráveis do escritor francês Victor Hugo. Assim, no enredar da teia de prostituição em que se vê envolvida Maria Aparecida – e, também de Betinho – não conseguimos deixar de encontrar semelhanças com o percurso de Fantine. Se excluirmos a cena, talvez demasiado lírica, de redenção no final do romance, à qual Pepetela, algo eufemisticamente, classificou de “um fiozinho de açúcar, emoldurando uma réstia de esperança”, trata-se de um romance duro, pouco dado a “maquilhagem social” e totalmente distante do argumento cor-de-rosa das telenovelas.

Na beleza extrema de Maria Aparecida encontramos algo de selvagem, um não sei quê de libertino, com tiques de provocadora. Qualidades que, combinadas, resultam num cocktail explosivo que a transforma num objecto de desejo a perseguir encarniçadamente pelos seus predadores: a insubmissão. A situação de pobreza e ausência se suporte familiar direccionam-na fatalmente para a mira dos traficantes de carne humana, apesar de se tratar apenas de uma criança. Mas ao mesmo tempo, Maria Aparecida desperta, igualmente, a admiração e o sentido protector de alguns jovens prostitutos que gravitam à volta do velho teatro degradado. Enquanto partilha o abrigo com os pequenos travestis do Cine-Roma, a menina ainda consegue, durante um curto espaço de tempo, escapar do assédio de potenciais clientes e proxenetas. Por vezes, o sentimento de amizade e união entre estas crianças que encontram afinidades nas suas histórias passadas é tão grande que o sublime se instala em gestos de altruísmo sem precedentes, como é o caso de Betinho que se inicia na prostituição para proteger e alimentar Maria Aparecida, garantindo a sobrevivência de ambos. Chega, inclusive, a procurar refúgio numa organização religiosa, liderada por um pastor de nacionalidade francesa. A propósito deste episódio, o Autor dá a entender, nas entrelinhas do romance que, muitas vezes, as boas intenções de uma instituição colidem com um mais do que deficiente conhecimento da realidade. É o caso da religiosa que convence a menina do dever cristão de ajudar um pai doente, apelando ao cristianíssimo perdão, sem antes conhecer a fundo a história familiar de Maria Aparecida, ignorando o facto de a pré-adolescente se encontrar na rua precisamente por estar em perigo na presença do pai. Este encontra-se gravemente doente, mas não mudou nada, nem com o sofrimento nem com a doença. É o mesmo homem que, após perder o trabalho como pescador, por questões que lhe são alheias, descarregava na mulher toda a responsabilidade do trabalho doméstico, incluindo tratar da casa, do campo, das crianças, da venda dos produtos hortícolas para o sustento da casa...para além de continuar a ter comportamentos inadequados para com a filha.

O romance termina com um final “aberto” deixando diante do leitor todo um leque de possibilidades quanto ao desenrolar do futuro de ambos os protagonistas. Mas, seja qual for o caminho traçado, será sempre mais povoado de espinhos do que de rosas...

O estilo de Reyes é marcado por uma escrita que se pauta por um discurso descontraído, no qual Betinho é o narrador. Trata-se portanto de um romance autodiegético, onde o narrador é também uma personagem da história. Betinho descreve o percurso de Maria Aparecida – a Rainha do Cine-Roma como lhe chamavam –, na prisão, com toda a crueza da linguagem de quem passou pela experiência devastadora da destruição da infância, mas que, ainda assim, é capaz dos mais inesperados gestos de ternura. A escrita de Reyes é escorreita e o ritmo, dinâmico, o conteúdo, verosímil na sua maior parte, acusando uma terminologia composta pelo calão e gíria das ruas do Rio de Janeiro, como se vê no excerto que se segue:

O Lingüiça e a turma dele estavam sempre enchendo a paciência dos outros. Era um bando de meninos que morava lá na Barraquinha, espalhado pelos cantos e que vivia do roubo, da droga e da malandragem. Os tiras1 deixavam eles tranquilos porque o Lingüiça era esperto, repassava uma parte da grana para eles, não mexia com quem não tinha de mexer e cagüetava2 direitinho qualquer abestalhado que não entrasse na linha.

As vicissitudes pelas quais passam as personagens de Alejandro Reyes têm muito em comum com os meninos do romance Capitães de Areia de Jorge Amado, que agora se movimentam num mundo muito mais feroz, fruto da indiferença das classes privilegiadas e da corrupção das autoridades. Um livro onde a luz e a sombra caminham lado a lado, um retrato do Brasil que não aparece nas tramas kitsch das telenovelas, antes ao período de recuperação económica que tem, nos últimos anos, vindo a experimentar e a dar esperança ao povo brasileiro. Aguardamos o desenvolvimento dos próximos episódios. Ou das próximas décadas.

11.12.2011-14.12.2012
Cláudia de Sousa Dias

1Polícias
2Cagüetar: delatar, denunciar

Sunday, December 09, 2012

“o nosso reino” de valter hugo mãe (Quidnovi/Alfaguara)




«O Inferno aterrorizou algumas gerações de crentes e é um dos mais antigos pesadelos da humanidade, ligado ao medo do mundo desconhecido que se abre depois do fim da vida.»

in História dos Infernos de George Minois, (Tradução de Serafim Ferreira para Teorema, 1997).


Este primeiro romance de valter hugo mãe é o retrato psicológico da sociedade portuguesa, numa pequena aldeia de pescadores no Litoral Norte,do final do período do Estado Novo. O que retiramos da leitura deste o nosso reino é um pequeno povo atrofiado por quase meio século de ditadura, dominado pelo medo do Inferno e obcecado com a ideia de adquirir a Santidade e conquistar o direito ao Paraíso, numa vida livre da miséria. Uma outra vida. No livro, percebe-se ainda que Revolução dos Cravos acabou de eclodir, mas as suas consequências ainda não se fizeram sentir no quotidiano da população. Salvo nas escolas, onde o discurso mudou radicalmente.

O dia-a-dia dos adultos, sobretudo das mulheres, é marcado pelo medo das perdas, pela preocupação constante em afastar o pressentimento de desgraça eminente, da Fatalidade, a qual tentam esconjurar com rezas, mezinhas ou rituais onde o cristianismo se funde com tradições de origem pagã, numa devoção profunda e contínua, denunciada pela profusão de imagens de santos e amuletos com que se rodeiam, sobretudo a avó do narrador e protagonista. O romance é autodiegético, estando a narrativa a cargo de uma criança, impressionada pela profunda tristeza do olhar no homem que transporta os mortos para cemitério da aldeia. A mesma criança, ao acumular a função de narrador, coloca-nos dentro do seu mundo – família,escola e grupo de pares – a partir de uma família que sofre as dificuldades causadas elo empobrecimento, resultante da divisão da propriedade, sobretudo após o falecimento dos avós. Há um pouco de tudo e quase todas as personagens despertam no leitor sentimentos de ternura e compaixão, havendo membros do clã a debaterem-se com problemas de desemprego e encontrando no álcool o lenitivo que lhes permite escapar à realidade e entrever o tão distante o paraíso anunciado na missa pelo “senhor padre”, tão íngreme que só a etilização da mente permite a ilusão de o vislumbrar.

O peso da religião e da superstição no vida dos habitantes daquela aldeia actua, também, como tranquilizador, mantendo acesa a esperança de uma vida melhor. Mas acaba, também, por ter o efeito de uma erva daninha ao ocupar totalmente o espírito das pessoas sem deixar espaço ao pensamento crítico e à criatividade. No seu lugar, está o medo omnipresente da ideia preconcebida e do que julgam ser o “pecado”, obrigando-se segundo a orientação do senhor cura a uma vida de constante sacrifício. O peso do dever é tal que a omnipresença desta ideia só aumenta a tentação de fuga a uma virtude que se exprime quase sempre na observância de rituais, ao mesmo tempo que é espicaçada a vontade do proibido, a actuar como o aguilhão que empurra ao “vício”, mas encoberta com a maledicência e a projecção dos próprios defeitos em casa alheia.

O narrador é uma criança que frequenta o ensino básico, o qual na altura se estendia até ao quarto ano de escolaridade. O menino deseja atingir a perfeição espiritual, a santidade. Mas os sacrifícios para alcançar o Paraíso são de tal ordem que o seu dia-a-dia ameaça tornar-se um inferno de tristeza. É, no fundo uma criança infeliz, solitária, a crescer no seio de uma família disfuncional e pouco dada a demonstrações de afecto. A escola e a instrução são importantes, há uma tentativa um esforço por parte da professora para mudar o pensamento nos mais jovens, mas o peso da sociedade tradicional é muito forte. Por outro lado, a escola não consegue substituir a função fundamental da família na questão da afectividade e na forma mais primária de pensar e olhar para o mundo. E o espaço familiar, sobretudo aquele que é dominado pelo género feminino, encontra-se invadido, sobrecarregado pelo peso dos símbolos religiosos (a galeria de crucifixos da avó). O desejo de atingir a santidade na criança é-lhe assim inculcado desde cedo e é o resultado do peso cultural desta religiosidade na famílias, visualmente omnipresente e apresentado como modelo de conduta ideal. Por outro lado, quando observarmos a conduta do narrador percebemos também que o medo do inferno, levado ao extremo, pode facilmente conduzir à desumanização na forma de conduzir a vida, marcando-a com um permanente sentimento de culpa, fruto da ablacção de qualquer tipo de prazer – condição fundamental para atingir a santidade.

O livro começa por falar na estranha e intrigante personagem que é, “o homem mais triste do mundo”. Alguém cujos lhos, de tão tristes, hipnotizam as pessoas que mergulham neles sendo por eles sugadas tal como a poderosa força da gravidade de um buraco negro exerce na matéria:

era o homem mais triste do mundo, como numa lenda, diziam dele as pessoas na terra, impressionadas cm a sua expressão e cm o modo como partia as pedras na cabeça ou abria bichos com os dentes tão caninos de fome.
era o homem mais triste, diziam, incapaz de fazer mal a alguém, apenas metendo dó, com os olhos de precipício como se vazios para onde as pessoas e as coisas caíam em desamparo.”
(…)
era com os olhos como lanternas, que competia com os bichos da morte, perplexos com tal ser.
(…)
era um homem todo diferente. quantas vezes se contava de como saltava pelas árvores. quem não jurara tê-lo visto no tempo da caça a apreciar, empoleirado nas copas, e como se faria viajar agilmente pelos ramos, muitas vezes intrometido a afugentar os animais.
(…)
e eu juro que o vi voar por sobre o casario numa noite de inverno.
(…)
eu descobri muito cedo, o homem mais triste do mundo recolhia os mortos, juntava-os um a um nos braços e dava-lhes a terra e o silêncio para comerem até que parecessem a terra e o silêncio e os pedíssemos para voltar a ter entre nós, para entre nós preservarmos uma ligação entre as almas, eram como um perfume débil percebido apenas pelas gentes mais sensíveis.

Há várias leituras para interpretar a figura deste coveiro de tristeza contagiante, pois trata-se na verdade de uma figura alegórica, associada à morte. Pode ser o ícone que simboliza o atraso estrutural na mentalidade do país, de um imobilismo que leva à entropia. Ou simplesmente a encarnação do desespero, cuja profunda melancolia leva ao desvanecer da vontade de viver e da alegria. Este “homem mais triste do mundo” anda de mão dada com a morte, cuja presença é assinalada pelo uivo dos cães. Vive no fim do mundo – o cemitério, para onde leva os homens que abandonaram o mundo dos vivos. O fim do mundo, segundo a mãe do menino que narra esta história, fica para além da estrada da “vila”, onde começam as árvores. Assim, tal como acontece nos contos de fadas – pois aqui também há magia, fadas e bruxas, o absurdo, o maravilhoso e o horrível –, a floresta é o lugar onde se perdem e desaparecem as crianças. A mãe o menino e o resto das mulheres da aldeia vivem assombradas pelo terror de que os filhos sejam levados pelo homem mais triste do mundo, ou que os seus homens sejam sepultados nas águas ao buscar o peixe com que sustentam a família.

o nosso reino é o primeiro de quatro romances de valter hugo mãe subordinados ao tema do ciclo da vida, sendo este dedicado à infância. Trata-se de uma obra que está ainda muito “colada” à poesia, género com que este escritor das Caxinas se estreou na Literatura. O toque poético na prosa de o nosso reino está patente na figura alegórica do coveiro da povoação, a entidade que rouba as almas e as leva para a sua derradeira morada. As personagens da trama são tipos sociais, encarnam a forma de viver de uma determinada época e num lugar específico., mas movimentam-se algures entre o mundo real e o surreal. O conteúdo onírico do texto adiciona marcas do discurso oral das gentes da Póvoa de Varzim e de Vila do Conde, ligadas à actividade piscatória e agrícola, assim como das lendas e tradições que compõem a tapeçaria do património cultural imaterial da região. Aqui, incluem-se as rezas e receitas de mezinhas tradicionais, rituais de exorcismo e encantamento executadas pelas mulheres da aldeia com o objectivo de expulsar o demónio ou afugentar malefícios e, em última análise, o assédio da da fome, da guerra e da morte.

Nos jovens, naqueles que têm alguma dificuldade em perceber os contornos da linha estreita que separa o bem do mal, o temor do desconhecido toma a dianteira, sobrepondo-se à busca pela perfeição espiritual:

foi nessa altura que os meus avós trouxeram lá para casa um empregado novo. tinha um jeito torto de responder, diziam que a má educação haveria de o pôr no Inferno. via-o morbidamente, passava por todos os lados da casa, a biscatar o dia inteiro as coisas do avô (...) e sempre o resmungo garantido, como um serviço mal prestado por dentro, algo a que se junta um veneno ou um mau-olhado. ficávamos a comentar. lembro-me de pergunta, o meu pai entendia que as pessoas tristes durante muito tempo ficavam de mal com a vida e podiam nunca se casar, dizia-mo com uma gravidade assinalável, eu acabava sempre por ter pesadelos, profundamente impressionado., com o que descobri nas expiações da minha consciência motivos para ser feliz e me salvar do estragamento da vida. achava-o ainda muito novo, o senhor luís estava entre o meu pais e o meu avô, os cabelos não eram brancos e andava muito rápido quando queria, o que o fazia usualmente suar.
(…)
o manuel quis matá-lo, uma vez quando se assustou a sério, como eu a cada momento, e jurou que vira um fantasma. chegámos a correr para a cozinha, a buscar a faca maior de todas haveríamos de o apanhar pelas costas para que não tivesse possibilidade de fuga e quando o matássemos esvanecer-se—ia em fumo e subiria para o lugar das almas proscritas. sabes, há-de se um lugar com paredes de chumbo, todo a arder no interior e sem janelas, sem portas, só uma combustão contínua. como suplício, inimaginável. como uma caixa. ou então, desceria para o centro da terra, onde a lava de todos os vulcões se contém, eu julgava saber que se continha, à espera de saber se no fim vence o bem ou mal. ou o homem mas triste do mundo viria à nossa porta reclamar o corpo.”
(...)
a minha avó rezava ao seu cristo para que me torasse as minhocas da cabeça.

O medo parece ser a raiz de todos os problemas nas personagens de o nosso reino e o principal móbil do desvio de conduta dos jovens que não sabem muito bem como reagir àquilo que não compreendem. O narrador em particular, porque dotado de uma extraordinária capacidade de observação mas ainda sem conseguir descodificar mensagens, muitas vezes cifradas, trocadas entre adultos. A inexperiência não lhe permite compreender tudo, mas a fé absoluta dos adultos na inocência e no aspecto apagado do jovem, torna-os descuidados e aquele apercebe-se das inúmeras contradições entre as atitudes dos adultos e as palavras que proferem.

O olhar e as atitudes da criança-narradora é na verdade o olhar do adulto que relata os acontecimentos da infância com os olhos da criança que foi. O discurso do adulto, que recupera o menino que ficou no passado, denuncia uma educação repressiva, baseada no temor omnipresente de um castigo terrível e no terror de se saber permanentemente vigiado como se tivesse microfones dentro do crânio, expondo-o à censura do pensamento e à punição que se quer imensa, completa, exemplar. A isto junta-se também o medo do Outro: todo por dentro era um animal em pânico. Aqui não se trata pura e simplesmente do medo do Outro enquanto homem ou sociedade. Trata-se do medo da existência de um ser sobrenatural que entre por todas as frinchas das portas da case e também pelo nariz, boca e ouvidos e que tudo vê, tudo ouve e tudo sabe. Este ser sobrenatural – que para o narrador tanto faz que se chame de deus ou diabo – gera um medo indescritível e avassalador. Medo esse que é incutido na população a partir de idades muito precoces e que, no romance, está representado por uma figura carismática e que goza de grande prestígio no seio da comunidade: o pároco. A incipiente rebeldia e desejo de independência que desde cedo é demonstrada pelo jovem é exemplarmente reprimida por aquele:

ao padre tínhamos de contar tudo, mas eu pedia a deus que me desonerasse de tal obrigação. expliquei-lhe que não era pecado esconder algo, se pedíssemos primeiro a deus que nos permitisse o segredo (…) deus sabe que se ele quisesse muito que o senhor soubesse haveria de ter maneira de lho dizer. quando o padre me bateu a primeira vez, fiquei perplexo. fiquei uma pedra presa ao chão, os joelhos a tremerem como madeira tola a querer partir o mármore, e calei-me. saí da igreja lento, sem chorar, a acreditar que o homem mais triste do mundo poderia trabalhar com ele e que a morte poderia ser uma coisa encomendada por uma pessoa (…) eu morreria naquele dia (…) que um padre bater numa criança só poderia ser trabalho de morte.
o manuel achava que agora teríamos de matar o padre e eu sabia que fazia sentido, que o padre dominava a igreja e, por algum misterioso processo, teria direito a decidir quem vivia e quem morria.”

O desejo infantil de superar o medo da morte, a intervir no destino, pretendendo decidir quem vive ou morre, é dirigido sobretudo a quem tem o poder de matar espiritualmente. Esta atitude evidencia-se de forma angustiante no comportamento destas duas crianças, cuja fragilidade se opõe ao peso da cultura ancestral e à herança de incomensurável aridez, no tocante ao pensamento crítico, legada pela ditadura. Assim, há no romance duas forças opostas que se digladiam ao longo da trama, mais psíquicas do que físicas, e que representam dois tipos de sociedade: a da obediência incondicional e a sociedade que problematiza, que coloca questões incómodas, esta última ainda incipiente mas que começa a despertar.

Nas actividades diárias das mulheres e das crianças em particular quase não há espaço para se dedicarem a outras assuntos que não a religiosidade, associada ao combate permanente contra as forças do mal e ao trabalho contínuo, extenuante sem tempo para diversão ou reflexão.
Isto reflecte-se nos aspectos mais elementares dos habitantes da aldeia, a começar pela avó do narrador, que vive para a lida da casa e para a família e é enterrada abraçada ao seu cristo favorito. As dificuldades sentidas pela família são denunciadas pelo esgotamento da mãe, da sua solidão absoluta e dedicação aos filhos. Por outro lado, a obsessão das pessoas em geral pela observação dos comportamentos e conduta alheios, leva à mais absoluta falta de solidariedade e compaixão entre elas, ao férreo controlo social e à crítica constante dos mais diversos aspectos das vidas dos outros.

No meio de tudo isto, há a criança que atrofia por falta de manifestações de afecto, carência que tenta colmatar com a busca contínua de um ideal de perfeição, mas que a vai matando lentamente por dentro, até se assemelhar, ela própria ao “homem mais triste do mundo”, quando se aproxima do seu objectivo, fazendo lembrar uma personagem do romance Thaïs de Anatole France.

A relação do narrador com as demais personagens atinge sempre uma dimensão secundária, a tal ponto que corre quase sempre o risco de exclusão, fruto da obsessão que toma conta da sua mente. A troca de afectos passa, assim, para segundo plano mesmo na relação com o grupo de pares (nunca exerce uma posição dominante mas torna-se seguidor dos líderes adoptando os comportamentos do grupo para aí ser aceite). Neste aspecto, a personagem de valter hugo mãe tem algo do adolescente Agostinho de Alberto Moravia. Com os adultos, também o afecto não está em primeiro plano ou, pelo menos à superfície. A sua relação com os adulto mais próximo é estabelecida para assegurar as condições de segurança, conforto e socialização.

Outro aspecto, que é muito relevante no romance é o evidente sincretismo religioso, que funde elementos do cristianismo com os vestígios de antigas culturas pagãs remanescentes que estão enraizados na mentalidade colectiva, como sucede no ritual em que as mulheres da aldeia tentam ressuscitar um jovem que fugiu da guerra, recorrendo a práticas de ocultismo. O realismo mágico está presente em vários momentos da obra, acrescentando-lhe beleza estilística, como o uivar dos lobos antes de acontecer uma tragédia, a fúria destruidora do ciclone que, tal como a revolução de Abril anuncia uma mudança se precedentes na sociedade durante as décadas seguintes.

Uma obra de excelência a marcar a estreia na ficção de um dos melhores escritores emergentes da actualidade que viria a obter o Prémio Saramago, em 2007 com o remorso de baltazar serapião e em 2012 o Grande Prémio PT Literatura com a máquina de fazer espanhóis.




Cláudia de Sousa Dias
12.11.2012