“Deusas Ex-Machina” de Alberto Pimenta (Teorema)
A obra de Alberto Pimenta
estende-se pela poesia, prosa e ensaio, formando um vasto conjunto
que, ainda assim, é muitíssimo pouco divulgado em Portugal.
Leccionou Português em Heidelberg, contratado pelo Governo, em 1960.
No entanto, mediante a oposição por ele manifestada face ao regime
fascista foi demitido em 1963 passando a ser, a partir dessa data,
contratado directamente por aquela Universidade alemã onde ficou a
trabalhar até 1977, altura em que decide então regressar a
Portugal. A sua obra poética foi reunida num único volume em 1990,
mas a partir dessa data produziu já mais de uma vintena de volumes
inéditos de poesia. Na prosa, é um pouco menos prolífico, mas
mesmo assim destacou-se em 1977 com o volume Discurso sobre o
Filho-da-puta, editado pela Teorema e traduzido para a Língua
italiana e para o Castelhano.
Na categoria de ensaio, da obra deste
Autor destacam-se O Silêncio dos Poetas lançado
originalmente no ano de 1978, em Itália, e publicado em Portugal em
2003, numa edição revista e ampliada. A obra A Magia que
tira os Pecados do Mundo foi
classificada como anti-platónica, dividindo-se em vinte e duas
partes, cada qual correspondendo a uma figura do tarot
para falar de mitos e arquétipos na Literatura.
Alberto
Pimenta ocupa, dentre os
autores europeus contemporâneos, uma posição considerada de
vanguarda, devido ao carácter crítico e insubordinado da sua
escrita. Mas a partir da década de 1990,a temática presente na sua
obra passa a referir-se maioritariamente a fenómenos relacionados
com a globalização, parodiando ora discursos publicitários ou
relacionados com a internet,
como é o caso de Ainda há muito para fazer,
ou sobre as consequências da guerra do Kosovo e as fragilidades da
União Europeia. Em 2005 lança Marthya de Abel Hamid
segundo Alberto Pimenta, um
volume de poesia, onde alude à invasão do Iraque pelos EUA.
Devido
sobretudo ao carácter experimental da sua obra e também às suas
temáticas preferenciais, onde o inconformismo chega a raiar a
insubordinação, Alberto
Pimenta tornou-se um
Autor polémico, gerando controvérsia dentro do meio académico
português. Actualmente, é professor aposentado na Universidade Nova
de Lisboa.
Deusas Ex-Machina
de que hoje aqui falamos
é um livro heterogéneo que assume a forma de crónica, diário ou
relato. É composto por três obras do Autor, reunidas num único
volume e que tinham si anteriormente publicadas como: As
Quatro Estações (1984); Primeira Parte da Divina Multi(Co)Média
(1991); e Reflexão do caos (1997).
Nesta obra conjunta destacam-se o sarcasmo, a lucidez e, claro, o
omnipresente discurso inconformista que caracteriza a prosa de
Alberto Pimenta.
Nesta
edição, as três narrativas apresentam, no entanto títulos
diferentes. A primeira, “Deusas ex-Machina”, que dá também
título ao livro, é introduzida com um texto absolutamente
provocatório, descrevendo o quotidiano – e o pensamento! - de um
feto dentro do útero materno. O discurso neste trecho em surge-nos
como uma voz distinta das restantes que compõem a narrativa,
apresentando-se em itálico, de forma a criar o contraste com a outra
voz narrativa para assim tornar mais perceptível a alternância
entre os narradores.
O
narrador principal desta primeira parte deste Deusas
Ex-Machina encontra-se a
viajar a bordo de um avião onde conversa com outro passageiro
(aliás, ao longo de todo o livro, nas três narrativas há sempre a
ideia de movimento, de mudança de espaço geográfico bem como troca
de confidências com um ouvinte de ocasião, apesar de o
interlocutor, na segunda parte, não ser um completo estranho para o
narrador, como iremos adiante verificar). O tema de conversa é um
acontecimento insólito, presenciado pelo Locutor-narrador, que narra
ao companheiro de bordo uma história bizarra, acerca da qual não se
sabe muito bem se se trata de um acontecimento real, da percepção
distorcida de um facto ou um sonho. O conteúdo onírico da narrativa
capta o ouvinte-alocutário, companheiro de viagem, o qual regista
tudo, como se de um psiquiatra de tratasse e estivesse com um utente
numa sessão de psicoterapia. O discurso é todo ele conduzido, pelo
ouvinte que adquire, por vezes, a posição de locutor para fazer
pequenas intervenções no sentido de orientar a conversa e o rumo da
narrativa como numa sessão de psicanálise informal. O discurso
produzido pelo locutor principal pode ser perfeitamente o resultado
um delírio, motivado por um estado de consciência que foi alterado
por acção química ou pelo sono. Daí o teor surrealista do
discurso principal, contraditório, por vezes absurdo onde habita o
nonsense, cheio de elementos de
cariz sexual, com evidente ligação a Freud e a Jung, no tocante aos
arquétipos que são introduzidos no texto sob a forma de alegoria.
Por exemplo, a figura arquetípica da Mãe, a representar a Deusa
Gea, é mostrada comoforçadamente passiva na sua espera em ser
fecundada. Toda a cena relatada pelo passageiro é uma alegoria à
repressão da sexualidade feminina, típica da cultura judaico-cristã
– note-se que a mulher está com os pulsos amarrados à mesa
enquanto é possuída ( em sonho?) pelo protagonista, apresentando-se
rodeada de toda a casta de instrumentos e utensílios que oprimem a
figura feminina. O teor algo sado-maso da do cenário contudo
aproxima-se do ambiente criado por Angela
Carter no romance As
Infernais Máquinas de Desejo do Dr. Hoffmann e
também dos escritores do Surrealismo, onde esta protagonista
feminina de Pimenta
nos aparece como detentora de façanhas sexuais pouco credíveis ou
exequíveis. A narrativa, de conteúdo inequivocamente dialógico,
com interferências ocasionais de uma terceira voz, normalmente a
hospedeira, a qual surge como uma voz disruptiva, proporcionando à
narrativa um ritmo mais sincopado, quebrando a monotonia de uma fala
demasiado longa e permitindo, simultaneamente, uma série de
faits-divers. O teor
da narrativa chega a tornar-se incómodo, sobretudo para o leitor
feminino, nesta primeira parte, uma vez que põe em cena vários
elementos culturais heterogéneos ao fundir elementos da mitologia
greco-latina com a tradição judaico-cristã, mas sempre com cheiro
a sangue e tortura ginofóbica. Alberto
Pimenta coloca em
evidência neste “Deusas Ex-Machina” algumas questões incómodas
como o papel da Igreja no exercício da dominância masculina,
relacionado com o desejo atávico de controlo do erotismo feminino,
de forma a que este, no estranho sonho do protagonista, acaba por se
transfigurar numa espécie de síndrome de Estocolmo, ao exprimir a
forma masoquista do desejo verbalizado de auto-mutilação. O
narrador principal desta primeira parte de Deusas
Ex-Machina assume o papel de uma
espécie de Ovídio mas cujas descrições são revestidas de um
humor ultra-negro, cruas, cirúrgicas, tal como as minuciosas
operações de tortura especificamente dirigidas a mulheres a mando
de um qualquer Torquemada.
A segunda parte adquire nesta edição
o nome de “Só Plágios” e é talvez a mais complexa dos três
relatos que compõem este volume, devido à constante mudança da
localização espácio-temporal ao longo de toda a narrativa. Nela,
damo-nos conta da mudança abrupta do discurso logo no primeiro
parágrafo, criando um forte contraste com a primeira parte. Aqui a
escrita assemelha-se à estrutura de um diário, apesar da subversão
completa da ordem temporal. Isto é, os registos não estão
organizados de forma linear, em termos cronológicos, sendo que é
frequente que as datas de entrada demonstrarem vários avanços e
recuos no tempo. Este tempo da narrativa oscila entre 1937 e 1996,
coincidindo, na sua maior parte com o período em que o Autor
lecciona em Heidelberg até ao regresso a Portugal. A intenção do
Autor será a de estabelecer um paralelismo entre diferentes momentos
históricos ao longo doa últimos cinquenta anos que antecedem a data
de 1996 e em diversos pontos da Europa tais como Portugal, Itália e
Alemanha sempre numa óptica comparativa, abarcando o período que
Alberto Pimenta leccionou na Alemanha, o regresso a Portugal com
algumas incursões por Itália entretanto.
A pergunta contida na epígrafe desta
narrativa prepara o leitor para o tema principal contido neste texto:
o protagonista que é também o narrador regressa ao seu país de
origem - Portugal, neste caso – deixando evidente uma profunda
desilusão pelo facto de lhe parecer que os anos passam em vão para
o País, onde tudo parecer permanecer igual, independentemente da
evolução tecnológica ou da mudança de regime político.
Que estou eu a fazer aqui de novo?
“Aqui”
e de “de novo” são dois modalizadores: o primeiro, de espaço e,
simultaneamente de tempo, indicador de proximidade, é o local onde
se encontra o narrador-locutor no momento em que conta a história;
“de novo”, implica um regresso, uma repetição algo que acontece
de forma recorrente mas à qual está subjacente a ideia de ausência
de mudança, como se esse lugar de regresso fosse um charco de água
estagnada. As referências temporais após o ano de 1977 – ano que
marca o regresso de AP a Portugal – dão-nos uma descrição do
país que atesta isso mesmo e que o Autor evidencia, quase sempre, de
forma caricatural. O objectivo é o de exprimir o choque e a
indignação pela constatação do atraso do País face àqueles que
são considerados “desenvolvidos” na Europa Ocidental. O Autor,
pela voz do narrador visa, sobretudo, atingir o primitivismo da
mentalidade, a rudeza e a falta de civismo mas, acima de tudo a
desconfiança acerca daquilo que se desconhece. Ou seja traça o
retrato ou, se calhar, a caricatura de um povo habituado a viver no
medo. Subjugado.
«Entrei pela fronteira de Bragança.
Tudo vazio. Esperava-nos um guarda-fiscal no meio da estrada, de
pernas muito abertas, virado para o nosso lado. Quando chegámos, a
cinco ou seis metros, escarrou.
Ora bem, ai está uma coisa que os
animais não sabem fazer, à excepção do lama, segundo parece.»
Na
equiparação do guarda-fiscal ao lama está implícito um violento
sarcasmo, dentro do qual se inscreve um profundo desprezo e repúdio
pelo hábito, frequentemente observado em Portugal, de cuspir para o
chão.
Mais
adiante prossegue:
«Na
praça central de Bragança, oitenta ou noventa homens, encostados a
toda a volta, quase todos de pau na mão e samarra pelas costas.
Aí está outra coisa que os animais
não usam, a não ser ao natural e no corpo todo.
(…)
Ao passar por Coimbra, uma bicha de
cerca de cinquenta metros, estendia pelo passeio a sua fronteira ao
Parque.
Outra coisa que só os animais de
circo conseguem e com dificuldade. E muito treino, claro.
Na aldeia onde parámos, em visita a
pessoas da minha família, o amigo que vinha comigo foi dar um
passeio a pé.
Quem o encontrava, perguntava-lhe
quem era e o que fazia ali: queria a resposta.
Exigia. Ameaçava com o olhar.
Os animais cheiram-se, claro.»
De
entre as várias situações aqui descritas, o Autor recorre a várias
estratégias discursivas: na primeira descreve um comportamento
individual que o choca por estar diante de uma figura de autoridade
que enverga uma farda e da qual ele não espera tal comportamento tão
pouco civilizado, mas que se assemelha antes a uma besta de carga,
habituada a viver em locais inóspitos e inacessíveis. Aqui a
dimensão antropológica do homo lusitanus
é integrada numa dimensão mais ampla, a etologia, já que o homem
é, ele também, um animal que, encontrando-se a viver num meio
marcadamente hostil (o país sofrera dez anos com a guerra colonial e
saíra, dois anos antes, de uma revolução da qual só por acaso,
não foi derramado sangue), ameaçador, próprio de uma sociedade
fechada, sente-se ainda dominado pela lembrança recente de um regime
autoritário. Daí a comparação aos animais circenses, amestrados e
sem vontade própria, no comentário acerca das filas (bichas)
intermináveis em Coimbra, e da desconfiança, própria de animais
selvagens face a um estranho ou estrangeiro que lhes invada o
território.
Mas
parte da acção de “Só Plágios” situa-se também em Itália. O
narrador fala – em várias entradas deste mais do que atípico
diário ou, se assim o quisermos chamar, compilação de relatos de
viagens –, com um sujeito que se percebe ser crítico de arte e a
quem chama Zezzos. Num destes relatos, ambos os interlocutores
encetam um diálogo, ao longo do qual trocam impressões sobre a
evolução do conceito de Arte ao longo do século XX e dos diversos
movimentos estéticos que perpassaram ao longo das décadas, de onde
se depreende que o crítico italiano crê ser a arte contemporânea
uma espécie de depuração, em alguns casos, ou amplificação em
outros, da obra de artistas de épocas anteriores, que define como
uma “duplicação original”, um termo aparentemente
contraditório, mas que esconde em si uma acutilante ironia face a um
aparente esvaziar de ideias e criatividade estilística, que entende
encontrar em muitos artistas contemporâneos. A data de 1978 descreve
uma viagem a Itália, na qual o narrador se encontra com o crítico
de arte.
“1978:
Para Zezzos, os lemas da crítica italiana eram três: se o
ignorarmos, ele não dura muito. Depois: tudo o que ele diz já foi
feito doutra maneira. E ainda: dentro do género, os mais autênticos
ainda foram os primeiros.
Zezzos
conhecia relativamente bem Portugal. Não estaria a confundir?De
resto a máxima é sua:
no
jardim à beira-mar; um ébrio
conduz outros ébrios
eles não se apercebem, claro
está”.
Neste excerto,
Alberto Pimenta usa
Zezzos não apenas para descrever a atitude dos críticos italianos
face à inovação artística e à emergência de novos nomes no
campo das artes, mas dá também a entender que o mesmo se passa em
Portugal, ao usar a pergunta retórica com valor de afirmação: “Não
estaria (Zezzos) a confundir?” A limitação a três formas de
receber um novo artista no meio por parte dos críticos italianos (e
se calhar pelos portugueses) que é apontada por Zezzos parece
contudo denunciar um certo distanciamento desta postura de grande
conservadorismo e aversão à mudança. A adopção desta atitude
descrita por Zezzos acerca da postura dos críticos italianos é por
eles justificada para evitar o esvaziamento de conteúdo nas Artes,
desde a Literatura ao Cinema e às Artes Plásticas. No entanto a
forma irónica como ambos os interlocutores se lhes referem, dá a
entender que o narrador principal se distancia deste tipo de
posicionamento.
No ano de 1996, o
narrador alguns anos já a viver em Portugal, parece notar uma
ligeira estagnação no País a contrariar os anos imediatamente
anteriores ao longo dos quais parece ter havido expansão e
crescimento:
«1996: Aos
chegar aos doze sustenidos e doze bemóis, partindo do dó em
direcções opostas, as escalas encontram-se no mesmo dó.»
Nesta metáfora,
Alberto Pimenta usa a sua
personagem para chamar a atenção para o perigo de, após
algumas (poucas) décadas de democracia, o risco do País vir a cair
na armadilha que pode levá-lo à ditadura.
“Só Plágios
e Traições” é o título da terceira parte do livro na qual
se dá uma espécie de fusão entre as situações ocorridas na
primeira e na segunda parte. A acção desenrola-se novamente em
viagem, mas desta vez de comboio. E, tal como na primeira parte,
temos dois interlocutores: o narrador principal e o narrador que é
citado pelo anterior, o qual está presente nas três narrativas. O
narrador empírico, isto é, aquele que é citado pelo narrador
principal e com o qual entabula o diálogo no comboio, é um completo
desconhecido. Ambos os viajantes nunca se viram antes, mas trocam
confidências. A voz do narrador principal é distinguida
graficamente pelo recurso ao itálico, actuando como uma voz em “off”
num estúdio ou como ponto ou mesmo didascália numa peça teatral.
Mal trocam algumas palavras o companheiro de viagem passa então a
“despejar” uma impressionante verborreia, captada pelo
interlocutor que, mais uma vez se coloca numa posição semelhante à
de um psicanalista, deixando o “paciente” divagar sobre os temas
que lhe são mais próximos ou que o preocupam, limitando-se o
narrador principal – que se apaga da cena durante a maior parte do
tempo – a incentivar o seu interlocutor a falar:
«O Comboio saiu
de Campanhã e, passado pouco tempo, o homem que jazia no banco à
minha frente disse: 'Isto já não é o que era.'»
Na frase citada
pelo narrador principal (L1) reproduzindo a fala do seu companheiro
de viagem (L2), está implícita uma critica social e política, a
qual é clarificada nos parágrafos seguintes. A estratégia desta
alternância a duas vozes é usada como forma de apagamento
enunciativo permitindo quer ao Autor quer ao locutor beneficiar de um
certo distanciamento do ponto de vista que é apresentado no livro de
forma a não pressionar o leitor a aderir à posição apresentada
pela personagem. O distanciamento de L1 que se limita a citar o seu
interlocutor, permite ao leitor apreciar os factos por si, adquirindo
o seu discurso maior credibilidade confere ao narrador principal.
Alberto Pimenta
pode ser considerado, para muitos, um autor incómodo, por
obrigar o leitor a pensar “fora da caixa” ou pelo estilo
provocatório ou ainda quando tenta implodir alguns tabus
relacionados com a sexualidade ou determinados estereótipos.
O que só vem
reforçar ainda mais a pertinência da leitura deste e de outros
livros do Autor.
01.08.2013-
09.02.2014
Cláudia de Sousa
Dias