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Bibliomaníaca e melómana. O resto terão de descobrir por vocês!

Thursday, June 30, 2016

"O Vendedor de Passados" de José Eduardo Agualusa (Dom Quixote)



De acordo com a nota da editora na contracapa desta obra de ficção de Agualusa, o protagonista desempenha um “estranho ofício” no qual "...vende passados falsos" a "clientes, prósperos empresários, políticos, generais (…) [e] fabrica-lhes uma genealogia de luxo, memórias felizes, consegue-lhes os retratos dos ancestrais ilustres".

Este é o terceiro livro de José Eduardo Agualusa a ser comentado neste blogue que chega até nós escrito num registo bastante mais leve que o romance em jeito de crónica Estação das Chuvas – obra marcadamente trangenérica, situada algures entre a ficção, a reportagem, o documentário histórico e o registo poético, é considerado talvez o melhor livro jamais escrito pelo autor – e do romance em prosa poética, com narrador autodiegético Um Estanho em Goa – obra que se caracteriza pelo teor marcadamente literário que lhe advém não apenas do discurso poético imbuído de melancolia do narrador mas sobretudo pelo diálogo inter-textual com obras de outros autores (uma característica recorrente na obra de Agualusa): tal como o poema “Endechas a Bárbara Escrava” de Luís Vaz de Camões ou o romance Nocturno Indiano de Antonio Tabucchi ou ainda pela alusão à heteronímia de Fernando Pessoa, através do desdobramento da identidade do protagonista. 

Contrariamente a estas duas obras, o O Vendedor de Passados embora se enquadre igualmente no género literário, apresenta-se num registo diametralmente oposto. A trama consiste numa farsa, de cariz vincadamente satírico, onde o narrador, tal como acontece em A Metamorfose de Kafka, em Flush de Woolf ou recuando até à Antiguidade Clássica, com as fábulas de Esopo, apresenta-se com uma morfologia animal mas assume um ethos que se manifesta através de um pensamento tipicamente antropocêntrico, ao projectar reflexões sobre o comportamento, cultura sentimentos e vaidades humanas. Este narrador nomeado Eulálio pelo protagonista, Félix Ventura, assume a aparência física de uma osga a viver na sombra e nas frestas das paredes da casa do seu hospedeiro, passando assim relativamente despercebido, afastando-se do lugar central da trama, enquanto focaliza o olhar em Ventura que passa a vida a estudar, investigar vidas alheias para vender passados ilustres por encomenda, desenhados à medida das expectativas dos seus clientes.

Ao avançar na trama, o leitor fica ciente que esta se estrutura na diluição das fronteiras do Tempo, dado que, o narrador, por ser uma reencarnação no corpo de um réptil  de uma alma humana que viveu na Angola outrora colonizada por portugueses, assume o papel de mediador entre as duas épocas. Eulálio é o ponto de contacto entre a Angola colonial, administrada localmente e governada a partir da metrópole por portugueses e a Angola contemporânea do pós-guerra civil ainda marcada pelas lutas intestinas que se seguiram depois da Independência. A Osga é a pedra de toque que marca a modalização temporal de forma a mostrar dois mundos paralelos: dois contextos sócio-históricos radicalmente diferentes que moldaram o país e que inscreveram o respectivo estilo governativo nas populações locais. A grande questão levantada por este livro tem a ver com o grau de influência, no estilo de vida das populações locais, por cada um destes estilos de governação, a par das consequências do mesmo choque cultural sofrido no passado e ainda avaliar a forma como estas duas maneiras de ver e estar no mundo (europeia e africana) conseguem hoje coexistir no mesmo território.

O Vendedor de Passados é uma obra literária, que apesar da aparente simplicidade, tem implícita, quer na sua estrutura quer na própria evolução das personagens, a relação dialógica de amor-ódio entre o impulso de preservação e transmissão da cultura ancestral (centrada da tradição oral e património imaterial) e a tendência para a sobreposição e domínio da cultura assente na palavra escrita, de raiz europeia e disseminada, sobretudo, durante a presença colonial portuguesa naquele país. Esta ideia é amplamente explorada pela investigadora Ana Bezerra da Universidade Federal do Rio Grande do Norte (Bezerra, 2011:133-134)1:

«Tecer considerações sobre tradição na África abre de imediato uma fenda entre o universo tradicional antes da presença do colonizador e o complexo de silêncio e reescritas que marca a presença da força colonial nesse ambiente, até mesmo no instante em que se fala de uma 'pós- colonização'. As imagens desse abismo são sentidas nessa prosa de Agualusa diante de uma burguesia que deseja rever seus passados, realizando praticamente uma apologia ao arquétipo lusitano.
(…)
Félix [Ventura] então articula via projeto escrito o apagamento da tradição africana e a invenção dos moldes europeus para essa parcela da população [a burguesia emergente do pós- colonialismo] que resolveu inscrever-se segundo o aval português.»

Bezerra (2011) defende ainda que a metáfora associada à figura arquetípica deste vendedor muito pouco ortodoxo é o recurso utilizado pelo autor para explorar o percurso histórico da colonização portuguesa em África estreitamente ligada à tentativa de apagamento do passado cultural ancestral africano. Um processo que em Antropologia Cultural chamamos de aculturação e que despoleta, não raro, todo um conjunto de consequências que são demonstradas com as atitudes das personagens que povoam o universo do romance O Vendedor de Passados:

«A escrita de Agualusa revela (…) a abertura de novos espaços no signo da pós-colonização, uma vez que pelo fluxo memorial se interroga o momento actual do ser angolano» (Bezerra, 2011:134).

E a forma de se proceder a este “interrogar-se” processa-se através:

«...[d]o diálogo entre o tradicionalismo e um mundo cada vez mais conectado em que as fronteiras outrora estabelecidas, parecem permeáveis, à escuta das culturas dos demais povos até mesmo para que a sua própria cultura torne-se audível, depois de um longo período de declarada marginalização frente ao universo cultural europeu.
(...)
Nesse sentido, a tradição é recuperada via memória., para depois se falar de um mecanismo de reconstrução e de multiplicidade, mesmo que seja pelo mecanismo do colonizador – a escrita – o que permitiria, de uma certa maneira, uma condição internacional de falar do seu território e para além dele (…)» (Bezerra, 2011:134-135).

Toda a construção do romance comporta em si a ideia de construção de identidade, remetendo imediatamente para a noção de persona, máscara, como se as personagens se submetessem a uma operação para mudança de rosto na mais radical das metamorfoses. Ou como acontece no teatro desde a antiguidade clássica e como acontece no dia-a-dia com a comunicação em que cada actor social representa um determinado papel. 

A edificação estrutural da trama assenta numa relação dicotómica a vários níveis, desde a fisionomia e genética de Felix Ventura, o qual é negro e, contudo, albino; a sua cultura emana directamente da raiz africana, mas está fortemente impregnada da influência da cultura europeia, sobretudo no tocante ao conhecimento da Literatura. Isto permite-lhe dispor da extensa bagagem cultural dotando-o de capacidades extraordinárias  de forma a poder desempenhar a profissão de vendedor/criador de passados falsos, construtor de identidades feitas à medida das expectativas dos seus clientes, como o mais especializado dos alfaiates. Um ficcionista pragmático, portanto. Os clientes de Félix Ventura são sobretudo homens que enriqueceram a uma velocidade meteórica e, não raro, de forma assaz suspeita, a procurar desesperadamente um passado limpo e ilustre, ambicionando um adequado (na sua óptica) reconhecimento social.

A forma como todos estes factores, influem hoje na transformação da mentalidade colectiva é amplamente explorada pela personagem Félix Ventura em seu próprio benefício, uma vez que este possui, simultaneamente, a capacidade de ouvir e a agudeza de espírito de um psicanalista e o oportunismo de um gestor de marketing que tenta vender um produto a uma dada clientela. É neste sentido que O Vendedor de Passados apela à “concepção híbrida africana com o corolário do processo colonial” (Mata, 2003:46, op.cit in Bezerra, 2011:134), sendo que na obra de Agualusa a tradição é recuperada pela via da memória, cujo veículo é a voz do narrador

O realismo mágico é outra característica a ocupar uma posição de destaque no romance, através da figura da osga Eulálio. Este é, nada mais nada menos, do que o invólucro físico que encerra um ser espiritual que atravessa o tempo e cuja memória, aditiva e intemporal, funde, por um lado, a magia de que se revestem os contos de tradição oral africana com o pendor surrealista e experimentalista do modernismo do início do século XX na literatura europeia (quem não se lembra da personagem Orlando de Virginia Woolf que atravessa os séculos assumindo corpos diferentes ou a narrativa a cargo da cadela Flush?).

Outro aspecto a destacar nesta divertida obra será a função arquetípica das personagens, como Buchmann, o ministro corrupto de conduta mais do que duvidosa, que busca um passado irrepreensível,  a fim de que lhe seja atribuído o respeito e prestígio social de que se quer objecto mas cujas atitudes o traem a todo o momento pois não resiste ao recurso a ameaças, veladas ou não para conseguir os seus intentos. Ou a fotógrafa Angela, personagem de cariz heróico, idealista, que procura a verdade para além das aparências, o oposto de Ventura, que a mascara por profissão. A única personagem que é caracterizada de forma positiva no romance. Agualusa tal como Umberto Eco concede essa homenagem às mulheres na sua obra ficcional.

Pode-se destacar ainda a forma coloquial como a osga Eulálio vai narrando a trama incorporando o léxico da língua local sem o destacar a itálico para reforçar ainda mais a ideia de sincretismo cultural através da fusão linguística no aspecto lexicográfico.

Por último, convém salientar o papel do narrador como testemunha e dinamizador da relação dialógica entre os dois tempos da trama, a mediação entre o ethos individual e colectivo das personagens secundárias ao invés de enveredar os esforços para o apagamento do primeiro que é o que tenta fazer o protagonista, Félix Ventura. Sendo a osga um narrador omnisciente esta acaba por ser, ela também, uma personagem, uma vez que além de narrar a trama na primeira pessoa também interage com o protagonista de forma marginal. Esta característica híbrida de narrador-testemunha coloca-a na categoria de narrador homodiegético.

Sendo assim, apesar de O Vendedor de Passados ser uma história “leve”, com um registo que facilmente se enquadra no género comédia satírica, uma leitura mais aprofundada mostra-nos que o tema nela tratado é de extrema seriedade: a questão ontológica da identidade colectiva.


Londres, 30 de Junho de 2016

Cláudia de Sousa Dias





1Bezerra, Ana Cristina Pinto, 2011, “Entre Memória e Tradições na Escrita de O Vendedor de Passados, de Agualusa” in Estação Literária, Londrina, Vagão-volume 8 Parte A, pp.132-141, dez.2011, Rio Grande do Norte.

Wednesday, June 01, 2016

"The Book Thief" by Markus Zuzak (Black Swan)




The Book Thief é um livro, cujo título teríamos preferido ver traduzido para a Língua Portuguesa por algo como “A ladra de livros” ou “A jovem ladra de livros”. O tradutor da versão portuguesa optou antes por um título que contém uma frase complexa, seguindo uma receita que se tornou popular no meio editorial português desde o aparecimento do best-seller O Velho que lia Romances de Amor de Luís Sepúlveda. Assim, o título da versão portuguesa, A Rapariga que roubava livros, difere da versão original no aspecto, isto é, no carácter processual da acção contida no acto de roubar livros a qual é imputada ao sujeito da frase. Este título da versão portuguesa levanta um bocadinho o véu acerca do carácter da personagem, dando a entender ao leitor que a protagonista do romance pratica o acto de roubar livros com frequência, ao passo que na versão inglesa a mesma característica surge no título não como um processo que se desenrola no tempo mas como um rótulo ou uma etiqueta, sem qualquer alusão à frequência com que é desempenhado o acto. A ideia de tempo ou de que a actividade se desenrola no tempo está portanto ausente no título original, passando por seu turno a ideia não de uma compulsão mas de um traço de personalidade que define o carácter da adolescente Liesl Mesminger, a adolescente órfã que habita a periferia de Munique, no início dos anos 1940, isto é, em plena Segunda Guerra Mundial.

A localização espácio-temporal da narrativa está situada numa época e território geográfico onde a prisão de alguém por razões políticas e ideológicas estava na ordem do dia. Por essa razão, também os livros “sofriam” o mesmo risco de apreensão e “apagamento” (o que significava na verdade “destruição”) pelo fogo, um pouco à maneira do que acontecia com os corpos dos prisioneiros nos campos de extermínio a que se expunham os entes de carne e osso que os publicavam ou divulgavam, sobretudo quando se opunham ao ideário do regime nazi.

Neste contexto, a actividade a que se dedica Liesl nestes anos de obscurantismo, guerra, devastação e medo, consiste num aperfeiçoamento contínuo da arte de furtar livros, salvando-os da destruição, não surge, à luz do pensamento actual, como algo de reprovável. Muito pelo contrário. A atmosfera de medo que paira na cidade, sendo eficientemente disseminada pelos media num estado policial militarizado e fortemente dissuasor do mais ínfimo resquício de desobediência, interfere directamente na vida dos cidadãos fazendo o seu papel na propagação e formatação do pensamento único. O discurso autoritário da máquina de propaganda do Estado entra todos os dias nos lares privados através da rádio e da televisão, e as medidas que visam a sua implementação são operacionalizadas através da pesada máquina militar e policial que se ocupa em fiscalizar o que lêem e como pensam os cidadãos. Posto isto, a actividade de Liesl Mesminger assume-se como o contraponto de toda esta situação. À pequena ladra de livros cabe, pois, assumir o papel de guardiã da memória, da diversidade e do pluralismo ideológico, deixando margem de manobra ao pensamento livre. Assim, a casa onde Liesl passa a viver com os pais adoptivos logo no início da história, o casal Hubbermann, transformar-se-á numa espécie de “ilha” onde o pensamento anti-nazi se torna possível, germinando como uma semente, em violento contraste com a visão do que se passa lá fora, apresentando uma concepção mais humanizada do mundo.

A construção deste ethos de guardiã do pensamento livre, humanista e anti-nazi em Liesl não surge do nada. Ela assenta directamente nas raízes do seu passado familiar e dos acontecimentos trágicos que levaram a que se desfizesse a sua família de origem, a sua família biológica: o pai, é preso pelas SS (e provavelmente morto), suspeito de ser simpatizante da ideologia comunista; e a mãe, desaparece logo no início da história e da qual nunca mais se ouve falar (provavelmente também presa e deportada para um campo de concentração ou de extermínio), tenta proteger os filhos da perseguição que o regime está a efectuar à família, entregando-os para adopção a uma famíliaq de cidadãos alemães acima de qualquer suspeita.

Liesl é adoptada pelos Hubbermann, um casal de meia-idade que vive um quotidiano de dificuldades económicas, cujos filhos biológicos já adquiriram a própria independência, tendo saído de casa (um deles ingressa no Exército e a filha, tendo casado, visita os pais de longe a longe) e, por essa razão, aceitam receber as crianças Mesminger em troca de um pequeno subsídio, pago pelo Estado.

O irmão mais novo não resiste, contudo, aos rigores do Inverno na Baviera e morre de pneumonia durante a viagem de comboio. Isto implica que os Hubbermann não vão receber um montante tão elevado quanto haviam imaginado inicialmente.

A Narrativa

A forma como é narrada a trama deste romance de Zuzak é dotada de de algumas especificidades: para começar, o autor opta por colocar a figura alegórica e personificada da Morte a dar a voz ao narrador. A escolha de uma entidade situada fora do Espaço e do Tempo dota este narrador, que seria já à partida ominisciente, de múltiplas possibilidades que lhe advém de um poder que se pode classificar de ilimitado. Afinal trata-se de um ser cujas características o aproximam de uma divindade (aliás, praticamente em todas as culturas, fora da cultura judaico-cristã havia uma divindade que representava a Morte) que incluem: a imortalidade, a ubiquidade e a omnisciência. Todos estes atributos de que goza este narrador o aproximam deste narrador da ideia que normalmente os humanos possuem de Deus ou de um deus. Aliás esta figura da Morte poder-se-ia equiparar facilmente a uma divindade das culturas pré-cristãs (o deus Hades dos Gregos ou o Anúbis dos Egípcios). Consequentemente, o discurso do narrador não poderia deixar de ser marcado por este carácter “divino” ou semi-divino: a distância face aos humanos, as suas lutas e vaidades mesquinhas, os vãos anseios de domínio ou superioridade que manifestam em relação ao seu semelhante (que tantas vezes insistem em ver como diferente). A narrativa deste romance de Zuzak é, pois, a narrativa da Morte. Ou melhor, trata-se de uma história de guerra ou da guerra que já é parte da cultura europeia adquirida nos últimos cinco decénios, mas neste romance surge mostrada a partir do ponto de vista desapaixonado de uma entidade não humana porque sobre-humana, a qual, numa guerra, nunca escolhe lados: nem o dos vencedores nem o dos vencidos.

Por fim, pode-se dizer que esta figura alegórica e antropomorfizada da Morte na voz do narrador é a pedra de toque que confere ao romance uma tonalidade gótico-surrealista.

A intenção do Autor, ao escolher um narrador como este é inequívoca: a tentativa de criar a distância crítica que possibilite ao leitor ver também a perspectiva do quotidiano dos anos de guerra por aqueles que foram derrotados. A história incide no quotidiano do cidadão comum alemão e não nas figuras históricas que protagonizaram os acontecimentos directamente ligados à guerra sem, contudo, sucumbir a tentações de revisionismo histórico. O humor negro, embora sem estar imbuído de cinismo, perpassa no discurso e da Morte para ajudar a construir o ethos de uma entidade perfeitamente desapaixonada, atenta e extremamente activa, mas não necessariamente cruel ou sádica.

A Morte trata todos os humanos por igual, isto é não poupa ninguém, vítimas ou carrascos, embora chegue de forma diferente a quase todos. Isto porque no romance de Zuzak, as circunstâncias que possibilitam o seu aparecimento e o arrebatamento por si dos humanos que vêm ao seu encontro não são da sua responsabilidade mas sim de um conjunto de circunstâncias que lhe são alheias, quer estas sejam desencadeadas pelos humanos quer não.



Perspectivas

Os dois pontos de vista dominantes na narrativa são o da Morte e, obviamente, o de Liesl, por aglutinação. A voz e o ponto de vista de Liesl surgem sempre (excepto quando em diálogo com as outras personagens onde a sua voz surge em discurso directo) incorporados na locução do narrador, quer sob a forma de discurso indirecto livre quer em quasi-pec (pris-en-charge, vide, Maingueneau,D.), forma de discurso híbrida onde o pensamento do narrador e da personagem se sobrepõem, podendo até coincidir de tal forma que se torna quase impossível imputar o discurso a qualquer um dos enunciadores mencionados.

A proximidade da Morte com a jovem ladra de livros é uma questão intrigante no romance, embora não surpreendente uma vez que está ligada ao aspecto da polissemia, que no romance tem a ver com a época histórica em que a desobediência a uma proibição do Estado implicava a perda da vida. Por outro lado, a preocupação de Liesl em salvar livros e resgatar as vozes dos seus autores do esquecimento, garantindo-lhes uma espécie de imortalidade, pode ser encarada como um desafio do ponto de vista da Morte como narrador (a qual não chega a ser personagem mas antes uma testemunha, nómada, chamada aos locais sempre que há risco de destruição ou perda de vidas mas que não intervém directamente na história). Mais do que isso, Liesl desafia permanentemente, embora sem consciência de que o faz, a própria Morte que a segue como uma sombra, quer ao salvar livros proibidos que figuram no index de Hitler quer ao ajudar jovem judeu Max, filho de um amigo de Hans, morto na Primeira Guerra Mundial. Sobretudo porque Max comete o “crime supremo” de destruir, progressivamente, um exemplar do Mein Kampf para poder escrever o seu próprio livro, dedicado a Liesl.

A narrativa de The Book Thief é, pois, uma contínua dança da protagonista com a Morte, metáfora que é aproveitada pelo autor da capa do livro, em que o menor passo em falso pode precipitá-la, a ela e aos que lhe são próximos para o abismo. A mesma protagonista desenvolve a compulsão por furtar livros, após um breve encontro com a Morte, no momento em que se encontra a viajar de comboio com a mãe e o irmão mais novo para se encontrarem com os Hubbermann, os quais se preparam para adoptar ambas as crianças como já foi referido. A Morte arrebata-lhe então o irmão, ainda bébé, que não resiste ao rigor do Inverno bávaro. E o primeiro livro que Liesl decide furtar está intrinsecamente relacionado com a morte como destino final de todos os humanos: The Gravedigger's Handbook (O Manual do Coveiro). Trata-se de um livro que ninguém, à partida, teria interesse em ler (a não ser fosse profissional), mas que adquire a máxima importância em tempo de guerra, supondo-se que será uma época em que haverá muitos mortos para enterrar. A partir desse momento o espectro da Morte nunca mais deixará de rondar Liesl , atraindo-se as duas figuras como um íman.

Um aspecto particularmente tocante no livro é a relação que Liesl desenvolve com os pais adoptivos. Hans Hubbermann é acordionista por vocação e pintor profissional de casas por profissão. É ele quem ensina Liesl a le,r em casa, actividade que utiliza como terapia afim de ajudar Liesl a ultrapassar o trauma da perda da família e a síndrome de abandono. Rosa Hubbermann é uma mulher rude e ríspida, que exagera nos insultos àqueles que lhes são próximos, cuspindo palavrões e aparente desprezo, mas dona de uma força titânica que proporciona a Liesl a segurança de que tanto necessita. Mas o afecto estará sempre a cargo de Hans. O melhor amigo de Liesl, Rudy, é oriundo da vizinhança dos Hubbermann. Rudy será o parceiro de brincadeiras e aventuras arriscadas que envolvem o roubo de livros e comida na vizinhança. Não deixa de ser curioso que Liesl coloque, em tempo de fome e grave carestia alimentar, a necessidade de aquisição de alimentos ao mesmo nível da necessidade de aquisição do conhecimento contido nos livros, sejam eles proibidos ou não.

O outro grande amigo de Liesl é Max Steiner , o refugiado judeu que os Hubbermann escondem na cave da própria casa. Max é um jovem pugilista que, na solidão da cave dos Hubbermann, desenvolve também a actividade de ilustrador e escritor de histórias infanto-juvenis para encontrar em Liesl a sua primeira grande leitora. Max é uma personagem fundamental na trama, cuja importância cresce ao longo da narrativa, ocupando um espaço cada vez maior no quotidiano de Liesl e dos Hubbermann.

A autora do blogue Giraffe Days chama a atenção para a escrita de The Book Thief no aspecto linguístico, no que concerne à riqueza semântica do discurso das personagens e do narrador, destacando a mestria com que Zuzak se socorre dos recursos estilísticos, classificando-a como “lyrical, hauting, poetic and profound”. O discurso é quase sempre marcado pelo tom poético-alegórico onde o papel e actividade da figura da Morte confere à obra uma tonalidade que a coloca entre o estilo gótico e o realismo mágico.

A questão do Mal está presente em toda a narrativa e no quotidiano da personagens tal como é enunciado por Hannah Arendt quando disserta sobre a banalidade do mal, a propósito do julgamento de Eichmann em Nuremberga, o qual que afirmava ter-se limitado a cumprir ordens. Na narrativa de Zuzak, o Mal emana directamente quer do medo irracional, quer do ódio, quer simplesmente da insistência em se fazer tudo “by the book”.

O mesmo Mal paira como um espectro sobre a cidade, envenenando até o ar que se respira ao espalhar-se da mesma forma que a “Peste” como no romance de Camus (o autor aqui usa o vírus da Peste Negra que assolou a Europa na Idade Média, como metáfora para a proliferação do nazismo), invade as ruas e instala-se na vida e na mente dos cidadãos fazendo mergulhar o país numa onda de infelicidade como acontece no conto gótico de Bram Stoker “O Espectro da Morte”.

The Book Thief é uma obra literária que foi escrita para cativar um público bastante abrangente em termos etários, podendo incluir não só os mais jovens já a partir do terceiro ciclo, mas também o público adulto que tenha curiosidade em perceber o ponto de vista dos alemães relativamente à forma como foram vividos os tempos da Guerra e de como o regime fortemente repressivo de Hitler afectava aqueles que não se incluíam nos grupos directamente visados pela sua fúria persecutória. O facto de as suas descrições não possuírem a violência gráfica de alguns episódios de A Lista de Shindler de Thomas Kenneally ou de 2666 de Roberto Bolaño não significa que o autor tenha querido “branquear” a história. O terror está lá, contido nas entrelinhas e as humilhações, físicas e psicológicas de que são alvo Rudy e Hans em vários episódios, assim o atestam. Trata-se de uma bela obra literária de um escritor ainda em construção e cujo potencial parece ainda não se encontrar totalmente desenvolvido mas cujo futuro na escrita se afigura bastante promissor.


Londres, 24.08.2016
Cláudia de Sousa Dias






Webgrafia consultada:


https://www.theguardian.com/books/2007/jan/06/featuresreviews.guardianreview26

https://www.goodreads.com/review/show/10993149



Bibliografia auxiliar:


Maingueneau, Dominic, (2000), Analiser les Textes de Communication, Nathan Université, Paris.

Maingueneau, Dominic, (1996), Les Termes clés de l'analyse du discours, Seuil.

Maingueneau, Dominic (1999) "L' éthos dans l'analyse du Discours" in Images de Soi dans le Discours - La construction de l'éthos (org. Ruth Amossy), Délachaux et Niestlé, Paris.

Rabatel, Alain, (sem data), Homo Narrans - Por une analyse énonciative et interactionnele du récit, Tome I: Les points de vue et la logique de la narration, Lambert-Lucas, Limoges.


Camus, Albert, A Peste, Colecção Prémios Nobel, Pub. Diário de Notícias.

Stoker, Bram, "O Espectro da Morte" in Contos de terror e Arrepios, Biblioteca Visão.