“A Videira do Desejo” de Chitra Banerjee Divakaruni (Dom Quixote)
De novo o dia, de novo a noite
Madrugada e entardecer, Inverno e Primavera.
Com o jogo do tempo, a vida escoa-se
Só o Desejo permanece
De novo o nascer, de novo a morte
De novo a escura viagem pelo ventre
Aeste mundo em mudança nada se fixa
Excepto a retorcida Videira do Desejo
Baja Govindam, Sri Shakaracharya
(Epígrafe que introduz o romance AVideira do Desejo)
A Autora nasceu em Calcutá onde concluiu o bacharelato. E, em 1976, emigra para os Estados Unidos onde tira o mestrado em literatura na Wright State University. O doutoramento é obtido na Universidade de Berkeley, Califórnia, em 1985. Para sobreviver e pagar os estudos Chitra Banerjee Divakaruni trabalhou como baby sitter, cortadora de pão, fiel de armazém, empregada de mesa e ajudante de laboratório. Actualmente, vive no Texas e dá aulas na universidade de Houston, inserida no programa de Escrita Criativa.
Foi também co-fundadora de uma linha de atendimento para mulheres asiáticas sujeitas a maus tratos e outros tipos de abuso.
A escrita de Chitra Banerjee Divakaruni abrange uma vasta gama de géneros literários desde a poesia até ao romance, passando pelo conto e pelo romance de fantasia, direccionado ao público juvenil. O espaço onde decorre a acção situa-se, normalmente, entre a Índia e o Ocidente.
Bad and tentatively I began writing early poems (…) I destroyed those sentimental and bad poems so that archivists could not find them.
Foi premiada com o Poetry Prize por Leaving Yuba City: New and selected Poems; com o Best books Los Angeles Times por A Senhora das Especiarias, já adaptado ao grande écran; com The American Book Award por Casamentos forçados: contos, titulo que lhe valeu também o Prémio Pen assim como o Bay Area Book Reviews Award for Fiction.
A autora define-se como uma ouvinte, facilitadora, um elemento de ligação entre as pessoas”. Para ela, “a vida é a arte de dissolver obstáculos.
A maior parte da ficção divakaruniana tem um cunho autobiográfico. No caso de A Videira do Desejo, a acção passa-se na baía da Califórnia e debruça-se sobre a experiência de imigração das mulheres asiáticas nos EUA. Para Chitra Banerjee Divakaruni, a escrita serve para destruir estereótipos e aproximar gentes oriundas de gerações e mundos diferentes: Quero que as pessoas se reportem, se inspirem nas minhas personagens.
No romance Irmã da minha Alma, a autora explora a condição de duas mulheres cuja vida é radicalmente alterada pelo casamento. Uma delas, Anju, mudar-se-á para a California enquanto a segunda, Sudha, continua o seu percurso na Índia, por mais algum tempo. No entanto, as duas voltam a reencontrar-se em A Videira do Desejo. Ambas têm muitas afinidades com a sua criadora. Por exemplo: a habilidade de Anju na escrita criativa ou o facto de Sudha desempenhar vários tipos de trabalhos temporário com vista à sobrevivência a curto prazo.
Anju é uma mulher de emoções intensas e humor depressivo em consequência de um aborto espontâneo, cuja principal consequência é o esfriar do desejo que apresará o final do casamento com Sunil.
A qualidade de vida no pequeno apartamento de uma das cidades mais poluídas do mundo é marcada por algumas dificuldades económicas iniciais, o que agrava a tendência sombria do humor de Anju. A chegada de Sudha, a prima de beleza cinematográfica, da Índia acabará por precipitar os acontecimentos…
Anju dedica-se a escrever diários, um processo de catarse, uma forma de terapia de onde nasce um talento que se manifesta numa prosa rica na expressão de emoções, as quais explodem sob a forma de ousadas comparações e metáforas. A inscrição no curso de escrita criativa marca o início de uma nova etapa seguindo de perto o percurso de vida da própria Autora.
Sudha, por sua vez , sai da Índia em busca da independência após a derrocada do casamento como resultado do choque da personalidade individualista da jovem face a alguns aspectos da cultura tradicional onde, desde tempos imemoriais, se valoriza a produção de filhos varões e onde face a um sistema de planeamento familiar decretado pelo governo, baseado na existência de um filho apenas por casal, a população reage eliminando os recém-nascidos do sexo feminino ou convencendo as jovens a abortar.
Sudha decide optar por romper o casamento e abandonar a estabilidade económica proporcionada por um casamento que lhe confere um estatuto social invejável, preferindo enfrentar a censura familiar e as dificuldades de integração numa cultura diferente daquela em que foi criada.
Inicialmente, um dos objectivos de Sudha é o de ajudar Anju a ultrapassar o trauma do aborto, onde a filha Dayita actua como catalisador facilitando o processo de fechar algumas feridas de Anju e Sunil. A bébé não consegue, no entanto, salvar o casamento dos tios.
A dada altura Sudha acaba por ser contagiada pelo desejo, retorcido, tortuoso como a videira, o que precipita a sua saída do apartamento para não prejudicar o casamento da prima.
Mas o principal móbil da acção de Sudha é sempre a busca da liberdade e, simultaneamente, do prazer de se saber desejada, sem culpas. Conhece uma jovem indiana, Sara, livre como o vento e, simultaneamente, frágil, mas sem medo do futuro, que a inspira. Também a cerebral e prática Lupe, a empresária do trabalho temporário hispano-americana que a encaminha para um emprego como enfermeira a cuidar de um idoso, indiano como ela, cuja personalidade o tornou intratável após sofrer um AVC, se revela providencial marcando um ponto e viragem no seu percurso. Sudha caminha com passo lento firme e sem desvios em direcção à autonomia, ao mesmo tempo que se aproxima das próprias origens em terra estranha.
Conhece Lalit, o médico-cirurgião cuja leveza na forma como encara as situações mais dramáticas ajuda a jovem a sair de situações complicadas.
Também a libertação do paternalismo de Ashok, o amor da adolescência, contribui largamente para o seu amadurecimento ao tomar consciência de que o passado não se repete, uma vez que O Desejo é caprichoso e retorcido como a planta da vinha. A raiz desta sede de independência de Sudha reside na forma como olha para a educação das meninas indianas: um ensaio para se tornarem mulheres casadas – na Índia não há lugar para a Mulher fora do casamento.
A primeira parte do romance, intitulada Verdades subterrâneas fala dos impulsos do inconsciente logo introduzida pela epígrafe inicial:
Eros é a força que se entrega a algo de impalpável, algo que arde
In O Casamento de Cadmo e Harmony de Robert Calarso
Nela, Anju prossegue a escrita dos seus diários em cores sombrias e ácidas mas polvilhadas de referências à Índia , sobretudo no que toca à gastronomia. Impressionantemente culta, no seu discurso encontramos uma profusão de referências literárias a Tolstoi, D. H. Lawrence, F. Scott Fitzgerald, para além dos clássicos da literatura indiana.
Registe-se ainda o peso dos silêncios nas cenas de diálogo com Sunil e a referencia a acontecimentos que marcam a actualidade internacional e que ajudam a situar a acção no tempo – década de 1990 – como a guerra na Jugoslávia, os conflitos étnicos na África do Sul, entre Zulus e o ANC ou entre Utus e Tutsis; as descobertas científicas no campo da astronomia e da arqueologia, a atribuição do oscar a Steven Spielberg por A Lista de Schindler ou o caso mediático deO.J. Simpson.
A própria narradora Anju, faz a interpretação da do significado subjacente aos silêncios incómodos entre esta e o marido com excepcional nitidez, permitindo ao leitor a visualização da cena com precisão cinematográfica: três pessoas, com pequenina caixas pretas, que encerram outras caixas mais pequenas e mais pretas. Segredos empacotados em segredos…
O único aspecto menos positivo na obra será pelo menos na parte inicial, talvez, a tradução que transpõe palavras do inglês que têm tradução portuguesa como guava (goiaba) ou mango (manga) a par de uma deficiente revisão ortográfica - ex: confusão de gazes com gases ou cozer e coser.
Da Índia chegam-nos ecos da mentalidade e cultura locais através do intercâmbio epistolar entre Anju e Sudha e as respectivas mães, tias e sogras, onde nos apercebemos da importância do papel da mulher na sociedade hindú, como elemento de ligação de onde ressalta a preponderância do papel expressivo na gestão emocional das relações familiares. De onde se compreende a preocupação de todas elas relativamente ao desenraizamento cultural de ambas as primas, sobretudo pelo receio do esquecimento de todas as tradições ancestrais que as ligam.
Numa carta auto-censurada, de Anju para a mãe, vemos que a preocupação destas não é, de todo, descabida. O tom é demasiado emotivo, denunciando o estado de esgotamento nervoso e perigosamente denunciador de instabilidade emocional, pelo que é substituída por outra missiva mais optimista mas, também, mais superficial.
Sudha e as lendas tradicionais
Quando Sudha assume o papel de narradora, a partir da pag 87, a escrita de Divakaruni passa a adoptar o discurso de uma ouvinte que revela a uma extraordinária capacidade de executar uma escuta activa e, simultaneamente, atenta à descrição detalhada dos cenários, aos movimentos das pessoas, às expressões faciais.
Para Sudha é especialmente importante a expressão da memória, as recordações da infância, as histórias e lendas tradicionais como a epopeia do Ramayana para entreter a filha, obra utilizada como ferramenta pedagógica de forma a transmitir valores e padrões de conduta, como o peso da mentira, o perigo da ingenuidade, que permite cair na cilada de um mentiroso, as consequências de se atravessar os limites do proibido, do interdito. Ou da princesa no palácio das cobras – parábola à vida de casada da própria Sudha – que exprime o conflito entre o desejo e a culpa, que compara à poderosa força das massas tectónicas da libido que condicionam os impulsos mais primitivos porque incontroláveis:
Passam-se coisas por baixo da superfície – a poderosa força das correntes que nos querem levar para além de tudo o que conhecemos, o sorriso invisível de criaturas aquáticas, que se enrolam e desenrolam.
Sudha pensa, escreve e fala sobre o amor em todas as suas dimensões: erótico, filial, maternal, amor-amizade e, principalmente, sobre a inconstância do amor erótico.
Mas o amor é como um código desenhado no pó. Olha-se para o outro lado, sopra o vento, o padrão altera-se e, quando se volta a olhar, descobre-se que já diz outra coisa…
Sudha é uma mulher de beleza magnética a quem os homens raramente conseguem ficar indiferentes.
Não consegue, no entanto, fixar-se e encontrar a pessoa que a consiga “prender “de livre vontade, numa relação duradoura sem ser opressiva. No entanto, é-lhe, também, impossível, tal como À Princesa do Palácio das Cobras, encontrar a escadaria de pérolas que a leve de volta ao palácio das cobras – metáfora ao casamento.
Para Sudha, o dever é representado pela filha Dayita, a qual mantêm Sudha ligada à realidade, à Mãe-Terra.
O amor maternal parece ser a forma de amor mais venerada na ala mais conservadora da sociedade indiana, porque consagrado ao culto da deusa Kali, um amor que na perspectiva de Sudha chega a ser: aguçado como estilhaços, doce como chá a ferver. Quem me dera senti-lo mais vezes. Isto porque a alma de uma mulher como Sudha não se esgota, apenas e só, no papel de mãe.
Um dos aspectos mais importantes do romance é dado precisamente pelo olhar de Sudha foca a importância de se estar presente nos momentos essenciais daqueles a quem amamos, ao referir-se à filha: como percebermos os olhos da pessoa mais importante na nossa vida quando damos o primeiro passo para algo que é vital…e que se torna trágico quando não é notado pela pessoa certa. E, quando isso não acontece, São pequenas tragédias, as rachas da espessura de um cabelo nas nossas relações.
Sudha é amiúde assaltada por uma angústia que a leva a pensar vir a sofrer um dia uma espécie de punição por sair fora da protecção do círculo familiar, de vir a ter um destino trágico como o de Nicole Simpson. Ou da criada indiana, Mangala, por amar alguém fora do seu alcance. Por desejar o fruto proibido.
Ambos os casos, quer o de Nicole, quer o de Mangala, são reveladores acerca da dificuldade em destrinçar a verdade da mentira quando se trata de fazer justiça.
As lendas tradicionais que traçam paralelismos com a realidade quotidiana vivida em ambos os continentes vêm sublinhar a propensão destes pensamentos, para além da modelagem efectuada no meio familiar. Tomando como exemplo o conto sobre as Vich Kanyas – mulheres criadas na prisão, cujos beijos traziam a destruição para onde quer que fossem - expressam o receio de Sudha acerca do próprio futuro sentimental, expressa numa carta destinada a Ashok, o primeiro namorado.
Sudha, tal como as heroínas mitológicas, atravessa, também, a dada altura, a fronteira do proibido, uma vez que, após o deslize com Sunil, As paredes da casa estão pintadas com a s cores do êxtase. O sofá está estofado com as cores do arrependimento.
Por outro lado, Anju, a propósito, ainda, do amor e das relações interditas e dos direitos das mulheres, estabelece a comparação das duas realidades culturais da seguinte forma: “Há, aqui (na América) muitas mulheres silenciadas. A regra “sem dinheiro, sem direitos” também funciona aqui. E os subornos. Só não é tão frontal. Apenas mais hipócrita.
Por outro lado, as directivas para os trabalhos de escrita criativa de Anju, parecem constituir pistas que despoletam no leitor insights que lhe permitem adivinhar o desenrolar da história. A narradora Anju confunde-se muitas vezes com a própria Autora, durante o processo de escrita, apesar de esta se projectar, de forma inequívoca, em ambas as figuras femininas do romance.
Existem ao todo quatro narradores participantes n’ A Videira do Desejo: Anju, Sudha, Sunil e Lalit.
Após a ingressão de Anju na Universidade, esta defronta-se com os rígidos parâmetros de avaliação dos mestres face aos quais sente a crescente necessidade de se afirmar pelo próprio estilo – o clássico drama dos escritores em início de carreira.
Nos que respeita às dificuldades de integração social de Anju, o principal obstáculo parece ser a impossibilidade de partilha das mesmas angústias com as colegas americanas, as quais não conhecem a realidade da condição feminina na Índia.
Sunil e Lalit – o lado masculino da questão
A narrativa de Sunil é feita através de uma gravação que é dirigida, aparentemente a Dayita, mas na realidade destina-se a Sudha. O tom é melodramático e fala repetidamente do desejo obsessivo que sente pela mãe da criança. O aparente cepticismo de Sunil, esconde a amargura do desejo frustrado. Os métodos utilizados para chegar à mulher que ama são revestidos da ingenuidade presente nas histórias tradicionais para crianças.
As pessoas não passam de más para boas – bum! – assim, de repente. Mas o contrário, sim .
Isto a propósito, mais uma vez, de uma notícia sobre o julgamento do caso O.J. Simpson, o qual, para Sunil, se trata de uma personagem interessante porque multifacetada:
As pessoas boas tornam-se más. Um homem pode estar a atravessar um pântano, julgando que é um jardim, sem nunca imaginar que é um pântano. Até se afundar.
E Sunil, tal como O.J. , afunda-se num pântano de emoções turbulentas.
A introdução de um episódio burlesco – como a reprodução de um cenário de Bollywood – como a festa em casa de Chopra, o chefe de Sunil, serve não apenas como o cenário mágico onde Sudha conhece Lalit, que se torna o rival de Sunil – ambos se encontram de certa forma na orla da festa, isolados como e não pertencessem ali – é o sítio onde é dado a conhecer ao leitores a forma como os americanos vêem os indianos: seres excepcionalmente extravagantes e vulgares, numa impudica exibição de racismo, patente no diálogo entre os seguranças da festa que comentam a aparência e o hábito dos comensais.
Lalit, o médico-cirurgião indiano, um dos convidados apaixona-se por Sudha à primeira vista, insinuando-se de forma subtil.
No discurso de Lalit, há um jogo interessante entre este e Sudha , patente nos diálogos entre ambos, sobretudo na dicotomia entre aquilo que se diz e aquilo que por dizer. Esta dicotomia entre o discurso expresso e o discurso tácito, confirma aquilo que antes já se suspeitava: a tendência do médico em aligeirar situações dramáticas – vício da profissão – sobretudo em relação às próprias emoções, o que acaba por ser um mecanismo de defesa.
Livro dois – Lembrança e Esquecimento
A segunda parte é desenvolvida no sentido de traçar o caminho da superação dos traumas vividos por ambas as primas.
O curso de escrita criativa absorve Anju cada vez mais, tal como o idoso com AVC, doença que o torna incómodo para a família, ocupa cada vez mais a rotina de Sudha.
A família com quem está a viver pertence à classe média alta onde a nora do enfermo, a sofisticada Myra, casada com um jovem imigrante oriundo da Índia. É uma pessoa algo superficial , que exibe alguns sinais de riqueza e cultura como símbolos que lhe conferem um determinado estatuto social. Myra preocupa-se muito pouco em dar atenção às pessoas mais próximas ; é incapaz de pensar por si, limitando-se a seguir as instruções do terapeuta.
Enquanto isso, Sudha leva com o rancor e ódio do doente, cuja incapacidade para ultrapassrar a própria condição, o leva a agredir quem está mais próximo.
A inversão da situação é despoletada por Dayita, mas o facto de Sudha ser indiana, conhecer a cultura e a gastronomia, ajuda bastante no caminho para a recuperação.
Sudha inicia, tal como algumas figuras da mitologia, o processo de bordar o trajecto da própria vida numa colcha, colocando a criatividade e imaginação ao serviço do bordado, da mesma forma que Anju o faz na escrita. Confecciona uma colcha autobiográfica.
No final, Anju Já não escreve aos mortos como fazia no início do romance – o filho Prem. Está preparada para lidar com os vivos e livrar-se das lembranças dolorosas. Aprende a “voar”. Em todos os sentidos.
Sudha reflecte sobre o destino de Anju e de Nicole Simpson – Os mortos não dão conselho. Observam com tristeza enquanto repetimos os nossos erros.
As primas reencontram-se e através da intervenção facilitadora de Lalit.
Mas o aguilhão da culpa e do remorso continuam a ocupar o pensamento de Sudha, que receia que lhe aconteça o mesmo que a Mangala ou a Nicole caso regresse à Índia natal.
Quanto a Anju ela própria identifica a prima com a figura mítica de Draupadi, criando um conto com esta personagem, inspirada na beleza sedutora da prima:
Ela tinha nascido do fogo (…)onde quer que fosse deixava pegadas chamuscadas (…), o seu único defeito era que ela queria – e obtinha – aquilo que era proibido a todas as mulheres. Por isso tinha de pagar um preço exorbitante e, numa espécie de antevisão ao destino de Sudha, …e juntamente com Draupadi, começa a sua fatal viagem às montanhas do Himalaia onde ela morrerá.
Posteriormente decide aligeirar a tragédia, imaginando a personagem num contexto diferente do anterior – menos fatalista, visualizando-a a plantar uma misteriosa planta – talvez a própria videira do desejo – que nos dá sempre tudo aquilo que pedimos embora sempre diferente daquilo que esperamos.
Anju supera o rancor pela prima projectando-o na escrita.
Sudha volta à Índia mas não a Calcutá, de forma a evitar mexericos mas a uma cidade da qual conhece a cultura e as normas que dela fazem parte.
O final é aberto sugerindo um leque de possibilidades. Embora o passado deixe sempre cicatrizes:
Atrás das palavras proferidas está a decorrer uma conversa completamente diferente. Esmagam-se emoções contra as janelas do carro como pássaros tentando fugir.
A dor é no entanto apagada num oceano de fogo de diamante num voo de asa delta…
Um romance de emoções observadas a partir do ponto de vista de todos os intervenientes o que nos dá uma visão muito ampliada e completa de todas as personagens onde a preocupação em contextualizar as atitudes de cada uma delas, conjugada com uma criatividade impar expressa no discurso narrativo coloca a obra e a Autora num patamar superior da escrita poética e ficcional.
Cláudia de Sousa Dias
Madrugada e entardecer, Inverno e Primavera.
Com o jogo do tempo, a vida escoa-se
Só o Desejo permanece
De novo o nascer, de novo a morte
De novo a escura viagem pelo ventre
Aeste mundo em mudança nada se fixa
Excepto a retorcida Videira do Desejo
Baja Govindam, Sri Shakaracharya
(Epígrafe que introduz o romance AVideira do Desejo)
A Autora nasceu em Calcutá onde concluiu o bacharelato. E, em 1976, emigra para os Estados Unidos onde tira o mestrado em literatura na Wright State University. O doutoramento é obtido na Universidade de Berkeley, Califórnia, em 1985. Para sobreviver e pagar os estudos Chitra Banerjee Divakaruni trabalhou como baby sitter, cortadora de pão, fiel de armazém, empregada de mesa e ajudante de laboratório. Actualmente, vive no Texas e dá aulas na universidade de Houston, inserida no programa de Escrita Criativa.
Foi também co-fundadora de uma linha de atendimento para mulheres asiáticas sujeitas a maus tratos e outros tipos de abuso.
A escrita de Chitra Banerjee Divakaruni abrange uma vasta gama de géneros literários desde a poesia até ao romance, passando pelo conto e pelo romance de fantasia, direccionado ao público juvenil. O espaço onde decorre a acção situa-se, normalmente, entre a Índia e o Ocidente.
Bad and tentatively I began writing early poems (…) I destroyed those sentimental and bad poems so that archivists could not find them.
Foi premiada com o Poetry Prize por Leaving Yuba City: New and selected Poems; com o Best books Los Angeles Times por A Senhora das Especiarias, já adaptado ao grande écran; com The American Book Award por Casamentos forçados: contos, titulo que lhe valeu também o Prémio Pen assim como o Bay Area Book Reviews Award for Fiction.
A autora define-se como uma ouvinte, facilitadora, um elemento de ligação entre as pessoas”. Para ela, “a vida é a arte de dissolver obstáculos.
A maior parte da ficção divakaruniana tem um cunho autobiográfico. No caso de A Videira do Desejo, a acção passa-se na baía da Califórnia e debruça-se sobre a experiência de imigração das mulheres asiáticas nos EUA. Para Chitra Banerjee Divakaruni, a escrita serve para destruir estereótipos e aproximar gentes oriundas de gerações e mundos diferentes: Quero que as pessoas se reportem, se inspirem nas minhas personagens.
No romance Irmã da minha Alma, a autora explora a condição de duas mulheres cuja vida é radicalmente alterada pelo casamento. Uma delas, Anju, mudar-se-á para a California enquanto a segunda, Sudha, continua o seu percurso na Índia, por mais algum tempo. No entanto, as duas voltam a reencontrar-se em A Videira do Desejo. Ambas têm muitas afinidades com a sua criadora. Por exemplo: a habilidade de Anju na escrita criativa ou o facto de Sudha desempenhar vários tipos de trabalhos temporário com vista à sobrevivência a curto prazo.
Anju é uma mulher de emoções intensas e humor depressivo em consequência de um aborto espontâneo, cuja principal consequência é o esfriar do desejo que apresará o final do casamento com Sunil.
A qualidade de vida no pequeno apartamento de uma das cidades mais poluídas do mundo é marcada por algumas dificuldades económicas iniciais, o que agrava a tendência sombria do humor de Anju. A chegada de Sudha, a prima de beleza cinematográfica, da Índia acabará por precipitar os acontecimentos…
Anju dedica-se a escrever diários, um processo de catarse, uma forma de terapia de onde nasce um talento que se manifesta numa prosa rica na expressão de emoções, as quais explodem sob a forma de ousadas comparações e metáforas. A inscrição no curso de escrita criativa marca o início de uma nova etapa seguindo de perto o percurso de vida da própria Autora.
Sudha, por sua vez , sai da Índia em busca da independência após a derrocada do casamento como resultado do choque da personalidade individualista da jovem face a alguns aspectos da cultura tradicional onde, desde tempos imemoriais, se valoriza a produção de filhos varões e onde face a um sistema de planeamento familiar decretado pelo governo, baseado na existência de um filho apenas por casal, a população reage eliminando os recém-nascidos do sexo feminino ou convencendo as jovens a abortar.
Sudha decide optar por romper o casamento e abandonar a estabilidade económica proporcionada por um casamento que lhe confere um estatuto social invejável, preferindo enfrentar a censura familiar e as dificuldades de integração numa cultura diferente daquela em que foi criada.
Inicialmente, um dos objectivos de Sudha é o de ajudar Anju a ultrapassar o trauma do aborto, onde a filha Dayita actua como catalisador facilitando o processo de fechar algumas feridas de Anju e Sunil. A bébé não consegue, no entanto, salvar o casamento dos tios.
A dada altura Sudha acaba por ser contagiada pelo desejo, retorcido, tortuoso como a videira, o que precipita a sua saída do apartamento para não prejudicar o casamento da prima.
Mas o principal móbil da acção de Sudha é sempre a busca da liberdade e, simultaneamente, do prazer de se saber desejada, sem culpas. Conhece uma jovem indiana, Sara, livre como o vento e, simultaneamente, frágil, mas sem medo do futuro, que a inspira. Também a cerebral e prática Lupe, a empresária do trabalho temporário hispano-americana que a encaminha para um emprego como enfermeira a cuidar de um idoso, indiano como ela, cuja personalidade o tornou intratável após sofrer um AVC, se revela providencial marcando um ponto e viragem no seu percurso. Sudha caminha com passo lento firme e sem desvios em direcção à autonomia, ao mesmo tempo que se aproxima das próprias origens em terra estranha.
Conhece Lalit, o médico-cirurgião cuja leveza na forma como encara as situações mais dramáticas ajuda a jovem a sair de situações complicadas.
Também a libertação do paternalismo de Ashok, o amor da adolescência, contribui largamente para o seu amadurecimento ao tomar consciência de que o passado não se repete, uma vez que O Desejo é caprichoso e retorcido como a planta da vinha. A raiz desta sede de independência de Sudha reside na forma como olha para a educação das meninas indianas: um ensaio para se tornarem mulheres casadas – na Índia não há lugar para a Mulher fora do casamento.
A primeira parte do romance, intitulada Verdades subterrâneas fala dos impulsos do inconsciente logo introduzida pela epígrafe inicial:
Eros é a força que se entrega a algo de impalpável, algo que arde
In O Casamento de Cadmo e Harmony de Robert Calarso
Nela, Anju prossegue a escrita dos seus diários em cores sombrias e ácidas mas polvilhadas de referências à Índia , sobretudo no que toca à gastronomia. Impressionantemente culta, no seu discurso encontramos uma profusão de referências literárias a Tolstoi, D. H. Lawrence, F. Scott Fitzgerald, para além dos clássicos da literatura indiana.
Registe-se ainda o peso dos silêncios nas cenas de diálogo com Sunil e a referencia a acontecimentos que marcam a actualidade internacional e que ajudam a situar a acção no tempo – década de 1990 – como a guerra na Jugoslávia, os conflitos étnicos na África do Sul, entre Zulus e o ANC ou entre Utus e Tutsis; as descobertas científicas no campo da astronomia e da arqueologia, a atribuição do oscar a Steven Spielberg por A Lista de Schindler ou o caso mediático deO.J. Simpson.
A própria narradora Anju, faz a interpretação da do significado subjacente aos silêncios incómodos entre esta e o marido com excepcional nitidez, permitindo ao leitor a visualização da cena com precisão cinematográfica: três pessoas, com pequenina caixas pretas, que encerram outras caixas mais pequenas e mais pretas. Segredos empacotados em segredos…
O único aspecto menos positivo na obra será pelo menos na parte inicial, talvez, a tradução que transpõe palavras do inglês que têm tradução portuguesa como guava (goiaba) ou mango (manga) a par de uma deficiente revisão ortográfica - ex: confusão de gazes com gases ou cozer e coser.
Da Índia chegam-nos ecos da mentalidade e cultura locais através do intercâmbio epistolar entre Anju e Sudha e as respectivas mães, tias e sogras, onde nos apercebemos da importância do papel da mulher na sociedade hindú, como elemento de ligação de onde ressalta a preponderância do papel expressivo na gestão emocional das relações familiares. De onde se compreende a preocupação de todas elas relativamente ao desenraizamento cultural de ambas as primas, sobretudo pelo receio do esquecimento de todas as tradições ancestrais que as ligam.
Numa carta auto-censurada, de Anju para a mãe, vemos que a preocupação destas não é, de todo, descabida. O tom é demasiado emotivo, denunciando o estado de esgotamento nervoso e perigosamente denunciador de instabilidade emocional, pelo que é substituída por outra missiva mais optimista mas, também, mais superficial.
Sudha e as lendas tradicionais
Quando Sudha assume o papel de narradora, a partir da pag 87, a escrita de Divakaruni passa a adoptar o discurso de uma ouvinte que revela a uma extraordinária capacidade de executar uma escuta activa e, simultaneamente, atenta à descrição detalhada dos cenários, aos movimentos das pessoas, às expressões faciais.
Para Sudha é especialmente importante a expressão da memória, as recordações da infância, as histórias e lendas tradicionais como a epopeia do Ramayana para entreter a filha, obra utilizada como ferramenta pedagógica de forma a transmitir valores e padrões de conduta, como o peso da mentira, o perigo da ingenuidade, que permite cair na cilada de um mentiroso, as consequências de se atravessar os limites do proibido, do interdito. Ou da princesa no palácio das cobras – parábola à vida de casada da própria Sudha – que exprime o conflito entre o desejo e a culpa, que compara à poderosa força das massas tectónicas da libido que condicionam os impulsos mais primitivos porque incontroláveis:
Passam-se coisas por baixo da superfície – a poderosa força das correntes que nos querem levar para além de tudo o que conhecemos, o sorriso invisível de criaturas aquáticas, que se enrolam e desenrolam.
Sudha pensa, escreve e fala sobre o amor em todas as suas dimensões: erótico, filial, maternal, amor-amizade e, principalmente, sobre a inconstância do amor erótico.
Mas o amor é como um código desenhado no pó. Olha-se para o outro lado, sopra o vento, o padrão altera-se e, quando se volta a olhar, descobre-se que já diz outra coisa…
Sudha é uma mulher de beleza magnética a quem os homens raramente conseguem ficar indiferentes.
Não consegue, no entanto, fixar-se e encontrar a pessoa que a consiga “prender “de livre vontade, numa relação duradoura sem ser opressiva. No entanto, é-lhe, também, impossível, tal como À Princesa do Palácio das Cobras, encontrar a escadaria de pérolas que a leve de volta ao palácio das cobras – metáfora ao casamento.
Para Sudha, o dever é representado pela filha Dayita, a qual mantêm Sudha ligada à realidade, à Mãe-Terra.
O amor maternal parece ser a forma de amor mais venerada na ala mais conservadora da sociedade indiana, porque consagrado ao culto da deusa Kali, um amor que na perspectiva de Sudha chega a ser: aguçado como estilhaços, doce como chá a ferver. Quem me dera senti-lo mais vezes. Isto porque a alma de uma mulher como Sudha não se esgota, apenas e só, no papel de mãe.
Um dos aspectos mais importantes do romance é dado precisamente pelo olhar de Sudha foca a importância de se estar presente nos momentos essenciais daqueles a quem amamos, ao referir-se à filha: como percebermos os olhos da pessoa mais importante na nossa vida quando damos o primeiro passo para algo que é vital…e que se torna trágico quando não é notado pela pessoa certa. E, quando isso não acontece, São pequenas tragédias, as rachas da espessura de um cabelo nas nossas relações.
Sudha é amiúde assaltada por uma angústia que a leva a pensar vir a sofrer um dia uma espécie de punição por sair fora da protecção do círculo familiar, de vir a ter um destino trágico como o de Nicole Simpson. Ou da criada indiana, Mangala, por amar alguém fora do seu alcance. Por desejar o fruto proibido.
Ambos os casos, quer o de Nicole, quer o de Mangala, são reveladores acerca da dificuldade em destrinçar a verdade da mentira quando se trata de fazer justiça.
As lendas tradicionais que traçam paralelismos com a realidade quotidiana vivida em ambos os continentes vêm sublinhar a propensão destes pensamentos, para além da modelagem efectuada no meio familiar. Tomando como exemplo o conto sobre as Vich Kanyas – mulheres criadas na prisão, cujos beijos traziam a destruição para onde quer que fossem - expressam o receio de Sudha acerca do próprio futuro sentimental, expressa numa carta destinada a Ashok, o primeiro namorado.
Sudha, tal como as heroínas mitológicas, atravessa, também, a dada altura, a fronteira do proibido, uma vez que, após o deslize com Sunil, As paredes da casa estão pintadas com a s cores do êxtase. O sofá está estofado com as cores do arrependimento.
Por outro lado, Anju, a propósito, ainda, do amor e das relações interditas e dos direitos das mulheres, estabelece a comparação das duas realidades culturais da seguinte forma: “Há, aqui (na América) muitas mulheres silenciadas. A regra “sem dinheiro, sem direitos” também funciona aqui. E os subornos. Só não é tão frontal. Apenas mais hipócrita.
Por outro lado, as directivas para os trabalhos de escrita criativa de Anju, parecem constituir pistas que despoletam no leitor insights que lhe permitem adivinhar o desenrolar da história. A narradora Anju confunde-se muitas vezes com a própria Autora, durante o processo de escrita, apesar de esta se projectar, de forma inequívoca, em ambas as figuras femininas do romance.
Existem ao todo quatro narradores participantes n’ A Videira do Desejo: Anju, Sudha, Sunil e Lalit.
Após a ingressão de Anju na Universidade, esta defronta-se com os rígidos parâmetros de avaliação dos mestres face aos quais sente a crescente necessidade de se afirmar pelo próprio estilo – o clássico drama dos escritores em início de carreira.
Nos que respeita às dificuldades de integração social de Anju, o principal obstáculo parece ser a impossibilidade de partilha das mesmas angústias com as colegas americanas, as quais não conhecem a realidade da condição feminina na Índia.
Sunil e Lalit – o lado masculino da questão
A narrativa de Sunil é feita através de uma gravação que é dirigida, aparentemente a Dayita, mas na realidade destina-se a Sudha. O tom é melodramático e fala repetidamente do desejo obsessivo que sente pela mãe da criança. O aparente cepticismo de Sunil, esconde a amargura do desejo frustrado. Os métodos utilizados para chegar à mulher que ama são revestidos da ingenuidade presente nas histórias tradicionais para crianças.
As pessoas não passam de más para boas – bum! – assim, de repente. Mas o contrário, sim .
Isto a propósito, mais uma vez, de uma notícia sobre o julgamento do caso O.J. Simpson, o qual, para Sunil, se trata de uma personagem interessante porque multifacetada:
As pessoas boas tornam-se más. Um homem pode estar a atravessar um pântano, julgando que é um jardim, sem nunca imaginar que é um pântano. Até se afundar.
E Sunil, tal como O.J. , afunda-se num pântano de emoções turbulentas.
A introdução de um episódio burlesco – como a reprodução de um cenário de Bollywood – como a festa em casa de Chopra, o chefe de Sunil, serve não apenas como o cenário mágico onde Sudha conhece Lalit, que se torna o rival de Sunil – ambos se encontram de certa forma na orla da festa, isolados como e não pertencessem ali – é o sítio onde é dado a conhecer ao leitores a forma como os americanos vêem os indianos: seres excepcionalmente extravagantes e vulgares, numa impudica exibição de racismo, patente no diálogo entre os seguranças da festa que comentam a aparência e o hábito dos comensais.
Lalit, o médico-cirurgião indiano, um dos convidados apaixona-se por Sudha à primeira vista, insinuando-se de forma subtil.
No discurso de Lalit, há um jogo interessante entre este e Sudha , patente nos diálogos entre ambos, sobretudo na dicotomia entre aquilo que se diz e aquilo que por dizer. Esta dicotomia entre o discurso expresso e o discurso tácito, confirma aquilo que antes já se suspeitava: a tendência do médico em aligeirar situações dramáticas – vício da profissão – sobretudo em relação às próprias emoções, o que acaba por ser um mecanismo de defesa.
Livro dois – Lembrança e Esquecimento
A segunda parte é desenvolvida no sentido de traçar o caminho da superação dos traumas vividos por ambas as primas.
O curso de escrita criativa absorve Anju cada vez mais, tal como o idoso com AVC, doença que o torna incómodo para a família, ocupa cada vez mais a rotina de Sudha.
A família com quem está a viver pertence à classe média alta onde a nora do enfermo, a sofisticada Myra, casada com um jovem imigrante oriundo da Índia. É uma pessoa algo superficial , que exibe alguns sinais de riqueza e cultura como símbolos que lhe conferem um determinado estatuto social. Myra preocupa-se muito pouco em dar atenção às pessoas mais próximas ; é incapaz de pensar por si, limitando-se a seguir as instruções do terapeuta.
Enquanto isso, Sudha leva com o rancor e ódio do doente, cuja incapacidade para ultrapassrar a própria condição, o leva a agredir quem está mais próximo.
A inversão da situação é despoletada por Dayita, mas o facto de Sudha ser indiana, conhecer a cultura e a gastronomia, ajuda bastante no caminho para a recuperação.
Sudha inicia, tal como algumas figuras da mitologia, o processo de bordar o trajecto da própria vida numa colcha, colocando a criatividade e imaginação ao serviço do bordado, da mesma forma que Anju o faz na escrita. Confecciona uma colcha autobiográfica.
No final, Anju Já não escreve aos mortos como fazia no início do romance – o filho Prem. Está preparada para lidar com os vivos e livrar-se das lembranças dolorosas. Aprende a “voar”. Em todos os sentidos.
Sudha reflecte sobre o destino de Anju e de Nicole Simpson – Os mortos não dão conselho. Observam com tristeza enquanto repetimos os nossos erros.
As primas reencontram-se e através da intervenção facilitadora de Lalit.
Mas o aguilhão da culpa e do remorso continuam a ocupar o pensamento de Sudha, que receia que lhe aconteça o mesmo que a Mangala ou a Nicole caso regresse à Índia natal.
Quanto a Anju ela própria identifica a prima com a figura mítica de Draupadi, criando um conto com esta personagem, inspirada na beleza sedutora da prima:
Ela tinha nascido do fogo (…)onde quer que fosse deixava pegadas chamuscadas (…), o seu único defeito era que ela queria – e obtinha – aquilo que era proibido a todas as mulheres. Por isso tinha de pagar um preço exorbitante e, numa espécie de antevisão ao destino de Sudha, …e juntamente com Draupadi, começa a sua fatal viagem às montanhas do Himalaia onde ela morrerá.
Posteriormente decide aligeirar a tragédia, imaginando a personagem num contexto diferente do anterior – menos fatalista, visualizando-a a plantar uma misteriosa planta – talvez a própria videira do desejo – que nos dá sempre tudo aquilo que pedimos embora sempre diferente daquilo que esperamos.
Anju supera o rancor pela prima projectando-o na escrita.
Sudha volta à Índia mas não a Calcutá, de forma a evitar mexericos mas a uma cidade da qual conhece a cultura e as normas que dela fazem parte.
O final é aberto sugerindo um leque de possibilidades. Embora o passado deixe sempre cicatrizes:
Atrás das palavras proferidas está a decorrer uma conversa completamente diferente. Esmagam-se emoções contra as janelas do carro como pássaros tentando fugir.
A dor é no entanto apagada num oceano de fogo de diamante num voo de asa delta…
Um romance de emoções observadas a partir do ponto de vista de todos os intervenientes o que nos dá uma visão muito ampliada e completa de todas as personagens onde a preocupação em contextualizar as atitudes de cada uma delas, conjugada com uma criatividade impar expressa no discurso narrativo coloca a obra e a Autora num patamar superior da escrita poética e ficcional.
Cláudia de Sousa Dias