“Deserto” de J.M.G. Le Clézio (Dom Quixote)

Jean-Marie Gustave Le Clézio nasceu na ilha Maurícia, mas as suas origens remontam à Bretanha. Os seus antepassados emigraram no século XVIII para aquela ilha, de modo que se trata de um escritor de língua francesa, apesar da cidadania britânica. A segunda Guerra Mundial passou-a em Nice juntamente com a mãe e, acabada a guerra, a família reúne-se com o pai na Nigéria, onde este serve como cirurgião do Exército Britânico.
A carreira de Le Clézio é marcada por duas fases distintas: de 1963 a 1975, Le Clézio dedica-se a explorar temas como a loucura, a linguagem ou a escrita, dedicando-se à experimentação formal.
Casado e com duas filhas vive, desde 1990, entre Albuquerque, a Ilha Maurícia e Nice.
só se avistava o planeta Júpiter, estático no céu gelado. A luz da Lua envolveu tudo com a sua bruma (…) Tudo era imenso e gélido, a luz branca da Lua tudo afogava e cegava.
A cultura dos povos do deserto no Norte de África é, neste romance, radiografada pelo olhar de uma criança – Lalla – descendente dos lendários guerreiros azuis, nómadas e seguidores de um líder espiritual muçulmano, tido como santo, Ma el Ainine.
O mesmo olhar inocente da criança que vive entre as dunas e o mar disseca a cultura ocidental cuja sociedade, orientada para o consumo, faz dos homens escravos de um deus chamado Dinheiro.
A observação da cultura ocidental pelos olhos ambarinos de Lalla, que transportam a luz dos deserto, revelam-nos o lado menos belo e menos brilhante da mesma cultura urbana ocidental, que normalmente nos esforçamos por ignorar na esperança de adquirirmos o nosso próprio oásis (moradia ou apartamento) que compramos com o dinheiro de um trabalho, conseguido e mantido a duras penas. Um paraíso, na maior parte das vezes, ilusório.
A extrema violência no mundo dos excluídos culmina com a trágica morte do amigo cigano de Lalla. Apesar de bafejada pela Sorte, que é atraída pelo magnetismo da beleza exótica de Lalla, a errância está-lhe nos genes, traduzindo-se num irreprimível impulso de evasão. O preço de uma existência dourada semelhante à vida num serralho que lhe promete o mundo da publicidade e da moda implicam a restrição à sua liberdade. Tal como o casamento. Mas Lalla é um animal selvagem. Do Deserto. Descende das ancestrais tribos nómadas do lendário Ma el Ainine…E Lalla acabará por não resistir ao chamamento do deserto à procura da Árvore da Vida, neste caso uma figueira. A figueira representa, aqui, a abundância no meio da privação, que Lalla consegue atrair em qualquer meio onde se encontre. E é debaixo de uma figueira do deserto, entre as dunas e o mar, que Lalla decide dar à luz, à sombra de uma árvore odorífera que lhe faculta alimento e protecção pela sombra fresca que se desprende da folhagem…
Mas a leitura de Deserto pode ser efectuada sob dois prismas diferentes: tanto pela dicotomia Oriente/Ocidente, pelo transitar da personagem Lalla dum mundo de regras e sujeições para o qual não está preparada; como pela análise transversal de duas épocas, com um hiato de meio século – um abismo temporal a que aos anos 1960 do século XX se opõe o período em que vive Nour, em 1910, durante a ocupação da região pelo exército francês, às portas da Primeira Guerra Mundial. Uma altura em que as tribos nómadas da região são empurradas para norte, pelo Exército Colonial Francês, acabando por ficar encurraladas entre os canhões e as baionetas e o Mediterrâneo. O exército persegue de forma implacável a comitiva do xeque Ma el Ainine, o líder espiritual que une várias tribos e a quem o general classifica de “fanático” e de “selvagem”.
…Caminhavam desde o romper da alva, sem parar, atolados na ganga da fadiga e da sede. A secura endurecera-lhes os lábios e a língua. A fome roía-os. Nem teriam podido falar. Havia muito que se tinham tornado mudos como o deserto, cheios de luz quando o sol arde no centro do céu vazio e gelados pela noite crivada de estrelas imóveis.
(…)
Sob os mantos, os fatos azuis estavam em farrapos, rasgados pelos espinhos, gastos pela areia.
(…)
Eles eram os homens e as mulheres de areia, do vento, da luz, da noite.
(…)
Levavam com eles a fome, a sede, que faz sangrar os lábios, o silêncio onde luze o sol, as noites frias, o clarão da Via Láctea, a Lua: com eles viajava a sua sombra gigante ao pôr-do-sol, acompanhavam-nos as ondas de areia virgem, tocadas pelos dedos, afastadas dos seus pés. Tinham sobretudo a luz do olhar que brilhava tão claramente na esclerótica dos seus olhos.
(…)
A enumeração é outro recurso de estilo de que se serve o Autor para dar ideia da imensidão não só em termos de distância percorrida pelas tribos como da variedade das gentes que dela fizeram parte:
Tinham acorrido a todos os pontos do deserto, para lá da Hamada de pedras, das montanhas de Chebiba e de Quarkziz, do Sirouc, dos montes Oum Cha Korert, para lá mesmo dos grandes oásis do sul, do lago subterrâneo de Gourara. Tinham atravessado as montanhas do desfiladeiro de Marder em direcção a Tarhamant ou, mais abaixo, lá onde o Draa vai ao encontro de Tingut, por Regbat. Tinham vindo todos eles, todos os povos do sul, os nómadas, os comerciantes, os pastores, os ladrões e os mendigos. Alguns talvez tivessem vindo do reino do Biru ou do grande oásis de Oualata. As caras tinham a marca do sol medonho, do frio mortal das noites, nos confins do deserto. Alguns deles eram de um negro quase vermelhos, altos e longilíneos, falando uma língua desconhecida: eram os Tubbus, vindos do outro lado do deserto, do Borku e do Tibesti, os comedores de nozes de cola que iam até ao mar.
A dimensão deste êxodo e as provações e privações por que passaram aqueles que dele fizeram parte nada fica a dever ao da Bíblia, pois trata-se uma vasta população que, fugindo da escravatura de um império faraónico, procura preservar a sua identidade motivada por uma sede imensa de liberdade. Os nómadas deste romance não fogem à tradição errante das gentes dos desertos de há alguns milhares de anos atrás. Mas desta vez o Império dos Faraós está sediado na Europa do início do século XX, cujo Imperialismo começa a dar sinais de declínio cada vez mais alarmantes. Os nómadas de Deserto são os desenraizados pelo império colonial francês, que os obriga a uma cruel errância pelas terras mais áridas do globo no Norte de África, um pouco como os curdos na transição do século XX para o século XXI.
As gentes nascidas do deserto revelam-se possuidoras de uma resistência física e força de espírito para nós inimaginável, o que explica que crianças como Nour e mesmo o adolescente errante com quem Lalla descobre o amor, décadas mais tarde, conseguem encontrar a felicidade dentro das privações. Porque têm um mundo de beleza, pura, agreste e indomável diante e dentro de si. Resistem até ao limite, até chegarem a uma cidade junto de um oásis onde saciam a fome:
Comiam agora a cozedura do milho, regado com leite coalhado, o pão, as tâmaras secas que sabiam a mel e a pimenta. As moscas e os mosquitos dançavam em torno do cabelo das crianças, no ar da tarde, as vespas pousavam nas mãos, nos rostos sujos de poeira.
Falavam agora em voz muito alta e as mulheres na sombra abafada das tendas riam e atiravam pedrinhas às crianças que brincavam.
(…) Mas no entanto os homens e as mulheres com os rostos e os corpos azulados pelo anil e pelo suor conservavam o silêncio: afinal não tinham deixado o deserto. Não esqueciam.
O primeiro capítulo desta narrativa secundária surge como uma espécie de prólogo, servindo para explicar depois, a história que se desenrola no tempo “presente” e mostrar o nível de resistência e a coragem dos sobreviventes à travessia do mar de areia, levando ao limite as forças dos sobreviventes que chegam vivos ao poço ou ao oásis mais próximo.
Caminhavam lentamente para a água dos poços para dessedentarem as bocas a sangrar. O vento tinha começado a soprar lá em cima, na Hamada. No vale, ia perdendo a força, nas palmeiras anãs, nas sarças, nas cidades de pedra seca (…). O céu não tinha limites, de um azul tão duro que queimava a cara.
(…)
Era aqui a ordem vazia do deserto, onde tudo era possível, onde se caminhava sem sombra, à beira da sua própria morte.
(…)
Os homens e a s mulheres viviam assim, sempre a andar, sem encontrar descanso. Morriam um dia, surpreendidos pela luz do sol, atingidos por uma bala inimiga ou então consumidos pela febre. As mulheres punham os filhos no mundo, simplesmente acocoradas na sombra de uma tenda, amparadas por duas mulheres, com o ventre comprimido pela grande faixa de pano. A partir do primeiro minuto da sua vida, os homens começavam a pertencer à extensão sem limites, à areia, aos cardos, às serpentes, aos ratos, ao vento sobretudo, pois era essa a sua verdadeira família. As meninas de cabelo cobreado cresciam, apreendiam os gestos sem fim da vida (…). Os rapazes aprendiam a andar, a falar e a combater, simplesmente para aprenderem a morrer na areia.
Também o silêncio domina a paisagem do deserto, incitando à introspecção, à meditação e à oração, de forma a diminuir um pouco a distancia entre o homem e a divindade.
A descrição de um local de culto no deserto, um simples túmulo cavado na rocha, serve para retemperar as forças e a esperança, como local de refúgio contra a mordedura impiedosa do sol na pele durante o dia e a omnipresença do gelo à noite. O silêncio que envolve o lugar permite por si só serenar as angústias, sofridas no caminho pelas intempéries.
Era o silêncio, talvez, vindo do deserto, do mar das dunas, das montanhas de pedra de claridade lunar, ou então das grandes planícies de areia cor-de-rosa, onde a luz do sol dança e ondula, como uma cortina de chuva: o silêncio dos buracos de água verde, que contemplam o céu como olhos, o silêncio do céu sem nuvens, sem pássaros, onde o vento é livre.
(…) Já não havia sofrimento, nem desejo, nem sequer vingança. Esquecia tudo, como se a água da oração lhe tivesse lavado o espírito.
A colisão de interesses dá-se pela batalha pela posse do território entre os habitantes locais e os colonizadores europeus:
Os outros xeques os chefes da grande tenda e os guerreiros azuis vieram todos, um após o outro (…). Falavam dos cristãos que entravam no oásis do sul e que levavam a guerra aos nómadas. Falavam das grandes cidades fortificadas que os cristãos construíam no deserto. E que fechavam o acesso aos poços até às margens do mar.
A miséria e tragédia que se abate sobre os povos do deserto, a par de uma incomensurável vontade de se agarrar à vida são o que lhes permite continuar vivos. As páginas e páginas de invocação de Ma el Ainine à Divindade são revelam, por sua vez, do desespero e a tenacidade de quem se recusa a deixar-se morrer.
A protagonista do tempo presente, Lalla descendente destas tribos de nómadas, possui a mesma nobreza tenacidade dos seus antepassados e ao mesmo tempo desprende-se dela a capacidade de enfeitiçar aqueles com quem se cruza. Tanto no deserto como nas cidades europeias, onde impera o medo em relação aos estrangeiros e onde aquele que é diferente leva a marca da exclusão. Lalla consegue escapar a este estigma, porque a luz sobrenatural da dunas solta-se-lhe do olhar e da pele…
Lalla está condenada a viver entre os dois mundos, entre o mar e as dunas. E é neste limiar e na costa mediterrânica do Norte de África que Lalla decide dar à luz o filho de Artani, fruto de um amor adolescente. Do jovem semi-selvagem que vive uma vida de errância que ela espera um dia poder acompanhar.
Em plena liberdade.
Cláudia de Sousa Dias