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Bibliomaníaca e melómana. O resto terão de descobrir por vocês!

Saturday, April 28, 2012

“A Inexistência de Eva” de Filipa Leal ( Deriva)



Filipa Leal, poeta, jornalista e, actualmente, colaboradora no programa “Câmara Clara”, dá-nos uma poesia minimalista mas na qual está contida uma densíssima massa de ingredientes emocionais. Trata-se de uma poética que fala do medo da perda, das palavras que ficam por dizer, submersas na brancura imaculada de um mundo onde só a perfeição tem lugar. As coisas importantes mas desestabilizadoras vindas do mundo “lá fora” estão cuidadosamente embutidas nas entrelinhas, apagadas pela aparente perfeição de um paraíso, belo, sem mácula mas fortemente murado. Como tal, o leitor vê-se compelido a descodificar as mensagens subliminares, cifradas, actividade que torna a leitura muito mais exigente e absorvente, permitindo demarcar a escrita desta jovem poeta da escrita banal.

Eva ou Lillith?

A obra A Inexistência de Eva, dá voz à alma de uma mulher aparentemente submissa mas dotada de uma inquietude interior, que poderá ter de pagar o preço da solidão e da incerteza para preservar a identidade.
Ligada a esta “Eva” de Filipa Leal, está também a simbologia da maçã, directamente relacionada com o livro do Génesis. A Maçã representa o Conhecimento. Conhecimento que é uma forma de Poder. E o desejo de conhecimento e poder para conquista da independência – e da liberdade – será talvez uma forma de rebeldia. Atitude que poderá ser interpretada como uma espécie de insubordinação pela insistência em abdicar da protecção daqueles que são os guardiões do seu mundo perfeito e em romper o véu da imaculada cegueira branca, vivida num Éden que é um sistema fechado. Um mundo onde a felicidade assenta numa asséptica ignorância.

Uma Eva com alma de Lillith vê-se, confrontada com a tentação de se deixar ficar no casulo que vive. Para isso, terá de abdicar da possibilidade de acesso ao Conhecimento, o que iria obrigá-la a sair dos limites do mundo conhecido e a abdicar da própria identidade, ao ignorar o mundo exterior em nome da segurança, que a impede de crescer e de fazer as próprias escolhas. Ficar no Paraíso é deixar-se estar dentro dos limites nas zona de conforto, que obriga a uma cega obediência às convenções sociais, mesmo quando estas estão em contradição com valores fundamentais como a ética, o direito ao livre arbítrio, ao amor. A mesma obediência cega, sem espírito crítico, implica abdicar da Sabedoria e da capacidade de discernir. A capacidade de discernimento é também um elemento que serve de guia a esta Eva, dividida entre duas forças opostas: a voz do medo e a vontade de crescer. Essas mesmas forças formam um conjunto de vozes sibilinas e anónimas, que lançam constantemente avisos à laia de profecias, dirigidas a esta Eva.

Todo o conteúdo do livro explica a ideia chave do livro do Génesis e desconstrói o mito do Pecado Original. O medo de Eva em arriscar viver uma vida diferente é instigado por uma destas vozes (as quais não temos a certeza se são internas ou externas relativamente à personagem central da obra), tendo em conta que o discurso é uma espécie de monólogo interno, mas condicionado por entidades externas que influenciam o comportamento desta Eva, a qual dá, por vezes ouvidos, à voz do Medo, que lhe sussurra de forma insidiosa a sua suposta incapacidade de sobreviver fora da protecção do Paraíso, da perfeita tranquilidade do anonimato e da imaculada inexistência em que vive mas sentindo-se atraída pela voz do Desejo, de crescer saber mais, viver...
A presença constante da voz do medo visa destruir a sua autoconfiança como se vê nos seguites excertos:

Perder-te-ás na ausência da água do rio.

e:

Assustar-te-á a existência
de dia e de noite.

Mas, contrariamente àquilo que afirma a tradição bíblica, o impulso secreto da busca de conhecimento insinua, do outro lado da consciência, que as consequências da ignorância são muito mais nefastas do que os inconvenientes da tomada de consciência despoletada pelo conhecimento.

um pássaro que todas as
noites se deita à tua porta
Como não sabes a que horas anoitece,
nem o que é anoitecer, se a abrires,
esmagá-lo-ás.

O conflito pelo qual passa a “Eva” desta obra, pode também ser interpretado como o risco implícito à transposição para fora do círculo protector da família associado à perda de um paradigma, num mundo desconhecido, onde as normas e padrões de conduta social poderão ser radicalmente diferentes ou simplesmente não existir.

Na maior parte dos micro poemas de Filipa Leal, está sempre implícito o desejo de libertação de uma prisão higiénica do mundo já desvendado.

Noutra dimensão, o texto dá-nos a entender ser o Amor outra forma de conhecimento. E, no entender da voz poética que o narra, o Amor encerra, em si próprio o mesmo perigo que o veneno de uma víbora, como todo o conhecimento quando usado para fins nefastos, ou uma experiência que não corre da melhor forma.

Um dia tirou da arca uma serpente
de barro, amolecida pela humidade.
Juntou-lhe as duas pontas e foi
Dobrando e moldando o círculo.
Quando a guardou, tinha a forma
De um coração.

Porque o conhecimento é também transmitido através do amor ou da experiência de amar e do sofrimento nela contido. Trata-se de conhecer o Bem o e Mal para apurar a capacidade de distinguir, comparar, discernir.

O medo de abrir a porta ao desconhecido, provém do receio de não mais poder regressar. Isto por que ao Conhecimento nunca sucede a inocência. Daí os três versos que se seguem:

Não serenidade para desta sala.
Quando perceberes que existe
O mundo, não aceitarás a brancura.

A percepção da ideia do Mal implica, por si só, que a concepção idealizada da Perfeição é a Suprema Mentira.

Tradicionalmente, o Conhecimento é visto como a Suprema Tentação por excelência, a tentativa do Homem em igualar-se à Divindade, sobretudo nas civilizações antigas, onde o conhecimento era restrito aos sacerdotes (como no antigo Egipto, na Suméria, na Assírio-babilónia, na Judeia) que tinham acesso às bibliotecas e controlavam o Saber, exercendo uma espécie de contrapoder face à realeza. Na Bíblia, isto torna-se evidente, sempre que os reis tentam sair da norma adaptando traços culturais ou padrões de conduta importados de outras civilizações, casando com mulheres estrangeiras ou permitindo a intrusão de costumes vindos de fora, como é o caso do Rei Salomão o qual começou a ser contestado quando o saber por si acumulado começou a ser um forte concorrente à classe sacerdotal. Em A Inexistência de Eva, somos confrontados com o olhar da narradora através de uma outra face do mesmo prisma: a tentação para esta “eva” é o comodismo oferecido por aqueles que lhe são próximos.

Para Eva, o tempo esgota-se. O deixar-se estar na segurança de um paraíso-prisão faz com que as forças que impelem à ousadia de uma escolha diferente se escoem, lenta e inexoravelmente. A maçã vai perdendo a cor à medida que envelhece. O conhecimento adquirido torna-se obsoleto quando estagnado. Tal como o amor, quando entra na rotina e não comporta o mínimo sentimento de perigo. Da mesma forma, o saber que nunca é questionado e tido como verdade absoluta e indesmentível.

Ambivalência na escrita

A ambiguidade é uma constante na escrita poética de Filipa Leal. Nunca chegamos a saber ao certo que espécie de voz é aquela – se colectiva se individual – que sussurra aos ouvidos de toas as Evas palavras como estas:

Arrependes-te porque sabes distinguir o Bem do Mal.
Fora daqui, não conseguirás fazê-lo.

Apesar de parecer estarmos diante de uma contradição pois, como foi já foi dito, a experiência do mundo exterior ajudará ao discernimento, a expressão pode significar que a realidade tem muito mais nuances do que os extremismos a preto e branco ou arquétipos puros do bem e do mal, quando na verdade, estes dois elementos surgem em diferentes proporções em cada situação e em cada ser individual. A mesma expressão pode também significar que, fora dos limites, a Eva de que aqui falamos poderá jamais conseguir regressar ao Paraíso pela impossibilidade de voltar ao antigo estágio e regressar à vida supostamente perfeita, depois de concluir assentar esta em pilares muito pouco seguros.

Por último, temos a simbologia da Árvore da Vida, doadora do conhecimento pela experiência que é a sociedade:

A árvore crescerá; dela cairão folhas e flores,
mas não conhecerás os frutos se não
te deixares cair

Ou seja, um ser humano como esta Eva é, também ele, produto da sociedade, do mundo exterior, não podendo por isso também dela se isolar. Logo, os muros do Paraíso são falsos e estão assentes em bases muito frágeis.

A Eva deste livro, no entanto, acaba por deixar-se soterrar pelo medo e escolhe a falsa segurança, reflectindo a escolha da esmagadora maioria das mulheres que optam (ou porque não lhes são muitas vezes dadas as condições para optar) por se deixarem ficar numa situação de dependência. Mas um dia, a Mulher (Eva, a Vivente) poderá recuperar a coragem para tirar a serpente do fundo da arca, no fundo do abismo. Poderá, no entanto, ser tarde. O tempo passa. A vida resume-se à Inexistência de Eva.


Cláudia de Sousa Dias
Maio 2011 - 29.01.2012


Friday, April 20, 2012

“O Voo da Rainha” de Tomás Eloy Martinez (ASA)


Tradução de Helena Pitta

Tomás Eloy Martínez nasceu a 16 de Julho de 1934, em Tucumán, Argentina, tendo falecido a 31 de Janeiro de 2010, vítima de cancro, ao 75 anos.
Foi, além de jornalista e escritor, um intelectual brilhante arrebatando, no ano de 2002, o Prémio Alfaguara com O Voo da Rainha, o romance de que aqui tratamos.

Apesar de exibir muitos traços comuns em relação ao protagonista do romance, que também é o narrador principal(a profissão, a erudição, a cultura e, até, a doença) o Autor é, no entanto, uma espécie de “eu invertido” em relação à sua “criatura”, no tocante à personalidade: Martínez construiu a persona do editor G. M. Camargo como o simétrico da sua própria personalidade, o “EU” do outro lado do espelho, emprestando-lhe a profissão de jornalista e editor, os gostos culturais no que tocante à música, ao cinema e até mesmo à literatura, atribuindo-lhe, no entanto, a característica que considerava como a mais abominável de sempre, presente no género humano: a soberba.

Todos aqueles que conviveram de perto com o Autor na altura em que escreveu O Voo da Rainha afirmam que Tomás Eloy Matrtínez procedeu a uma cuidadosa investigação sobre os passos, hábitos e tiques de um dos seus pares, conhecido como "uma sinistra figura do meio editorial sul-americano", segundo o jornalista Ariel Palacios (blogs.estadao.com.br) no seu artigo “Tomás Eloy Martínez: o Ficcionista da História”. Segundo Palacios, essa mesma “sinistra figura” teria servido de base para a criação deste livro, numa construção ficcional, mas baseada em factos verídicos. Na verdade, o que único aspecto que provoca um certo incómodo neste livro é, precisamente o facto de a história ser verosímil a ponto de os acontecimentos que lhe deram origem terem tido destaque na capa da revista “Veja”, e cujos e protagonistas reais são mencionados explicita e brevemente no romance como indício da sua conclusão.

A chave para a interpretação de O Voo da Rainha torna-se inteligível a partir do momento em que sabemos tratar-se da crónica de um crime, ocorrido originalmente no Brasil: o assassinato de Sandra Gomide pelo namorado, empresário e editor Marco António Pimenta Neves. Os factos, no romance transitam de cenário e são transplantados para a Argentina nos primeiros anos do século XXI, altura em que aquele país atravessava um grave período de crise económica, em situação de quase bancarrota. A acção decorre sensivelmente entre os anos de 1997 e 2001 e, segundo as palavras do Autor, todo o livro é si mesmo “uma metáfora do que acontecia à época, na República do Prata”.

Os protagonistas de O Voo da rainha são G.M. Camargo e Reina Remis. Camargo é director do Diario de Buenos Aires e mostra-se empenhado na luta contra a corrupção nos mais altos escalões do governo. Fá-lo, no entanto, não por princípio mas somente para demonstrar que é mais forte do que o próprio Poder. Ou seja, por soberba. E é com a mesma presunção que julga apaixonar-se por Reina: para exercer o poder de domínio de uma mulher que ostenta como uma bandeira a sua liberdade e independência “de gata”.

Reina é, tal como a jovem que inspirou a sua criação, uma mulher de origem humilde, mas ambiciosa, inteligente, que anseia por voar alto, tal como a Rainha das Abelhas. Entrega-se a Camargo em parte por curiosidade, em parte por se sentir valorizada por um homem a quem considra superior e em parte, também, por ambição. Só muito mais tarde se apercebe da armadilha em que cai, ao tomar consciência que em Camargo, o exercício de poder está muito para além das relações profissionais com os seus colaboradores. o Editor controla, também, a vida pessoal e familiar dos seus colaboradores, inclusive as afinidades políticas dos seus parentes, entrando inclusivamente no email pessoal dos seus funcionários.

No Brasil, o responsável pela organização da colecção Plenos Pecados, da Editora Objectiva, encarregue da publicação do romance naquele país, cita o escritor mexicano Carlos Fuentes, o qual chegou a afirmar ser esta obra, “ a história de um país que se imagina europeu, racional, civilizado e que amanhece um dia sem ilusões. Tão latino-americano quanto a Venezuela e o México,porém mais enlouquecido porque jamais se acreditou tão vulnerável, como os seus militares; tão brutalmente corrupto, como os seus políticos; tão brutalmente ineficaz, como os seus tecnocratas".

De acordo com a entrevista de Tomás Eloy Martínez à editora Objectiva, - “a obra aborda o problema da identidade. Toda a gente tem, em alguma parte, o seu gémeo: a cada história corresponde outra história, que acontece num lugar diferente. A identidade não tem contornos precisos, há duplicidades por toda a parte. E, também, espelhos invertidos”- inferimos que Camargo é o inverso de Martínez reflectido do outro lado do espelho.

Os dois autores sintetizam desta forma a dimensão social e pessoa do romance, respectivamente, mas em relação à tipificação da mesma obra, o seu autor coloca-a num ponto intermédio entre a realidade e a ficção, muito a estilo do pós-modernismo.

Em relação à Literatura e ao Jornalismo, para Tomás Eloy Martínez, herdeiro da tradição jornalística de Julian Barnes, Gay Talese, Norman Mailer e Truman Capote não há nenhum escritor latino-americano que não tenha sido, igualmente, um grande jornalista, aproveitando para citar nomes como Neruda, Vallejo, García Márquez e, também, o brasileiro Euclides da Cunha. Sem, no entanto deixar de fazer notar as diferenças entre as duas formas de escrita: para Martínez, o jornalista tem de ser sempre fiel à verdade, aos leitores e a si mesmo” Já a Literatura posiciona-se sempre na zona fronteiriça entre a realidade e a ficção, pelo que se torna propensa a ambiguidades, o que permite, também, retratar as diferentes nuances do real.

Ao estabelecer a ponte entre “a soberba e o caos da Argentina”, Martínez vai de encontro à opinião d seu colega mexicano Carlos Fuentes, ao reforçar a ideia de que “A Argentina sempre quis ser um país europeu. E quiçá isso não tenha sido um erro, esse afã por se distinguir tanto, dos seus vizinhos. Agora mesmo, a situação é catastrófica e, daquela velha distinção, aquilo que mantém, de alguma forma, consistência são as conquistas em matéria de educação e cultura. Mas o futuro é negro e também estas podem ir a pique. A crise actual é o resultado de uma forma errónea de entender e aplicar o conceito de globalização.”.

Sobre “O Voo da Rainha” - a raiz do problema

Esta novela veio levantar o meu ânimo. O desenvolvimento deste romance passou por várias interrupções, provocadas por uma enfermidade pela qual passei, mas que teve um desenlace feliz. E depois veio a morte da minha esposa, num atropelamento do qual eu também fui vítima e que me paralisou durante seis meses.
A soberba, "o mais venal dos pecados", na perspectiva do Autor "é a raiz a partir da qual derivam todos os males" como pretende a trama e o argumento de O Voo da Rainha. Para o Dicionário Houain da Língua Portuguesa, a soberba equivale à altivez por parte de alguém que se vê ou sente como superior a outrem; um sentimento de auto-elevação, arrogância.

Segundo o padre Teodoro el Grecco, "trata-se de um desejo desordenado, ou uma visão distorcida da própria superioridade. Sentimentos subsidiários à soberba podem ser também a ambição, a presunção, a vanglória, a hipocrisia e a ostentação."

Segundo Martínez, teologicamente, já com S. Agostinho se fez a distinção entre Soberba e orgulho, sendo que este último poderá apresentar-se como legítimo, porque compatível com a humanidade, se se tiver em conta, como dado adquirido, ter sido o Homem construído à semelhança da Divindade, ao passo que a soberba será a manifestação ridícula, arrogante, afectada de um orgulho ilegítimo.
Segundo Alceu Amoroso Lima – Jornal do Brasil, 1982 – “na soberba ocorre a auto-divinização do Homem. É ela fruto de todos os pecados, porque nega a existência deles, isto é, ao afirmar a superioridade do Homem sobre todas as coisas, contesta a existência de falhas humanas.

Comentário à obra

 Voo da Rainha é, na realidade, a crónica de uma paixão obsessiva que expõe diante dos nossos olhos a anatomia de um crime passional, uma vez que é contada pelo ponto de vista do criminoso que é, também, o narrador principal. Este narrador participante alterna, por vezes, com a aquele que é o seu duplo, ou a projecção da persona que escreve o romance que é, por sua vez, o inverso do seu anti-herói.

Mas o narrador participante é, no caso de O Voo da Rainha precisamente aquele com quem o leitor não se identifica por ser quem incarna a característica que se revela para o autor e para a maior parte da humanidade a mais odiosa: a soberba, que passa a ser o tema central do romance. Este narrador terá, então, o papel de conduzir o leitor ao longo de toda a intriga, “empurrando-o” para o desenlace final, face ao qual nos sentimos irremediavelmente atraídos, apesar de todos os indícios que pressagiam a tragédia.

Parte da trama lembra, de certa forma, no filme A Janela Indiscreta de Alfred Hitchcock, a condizer com os gostos cinéfilos do Autor.

O tratamento e exploração do tipo de distorção da personalidade como a de Camargo, cuja soberba se manifesta numa atitude de cínica altivez e sentimento de superioridade relativamente aos restantes elementos da raça humana é apenas uma das dimensões que compõem a trama do romance. Na verdade, a história gira também, num plano mais pessoal, à volta da paixão obsessiva deste empresário dos media e do desejo de posse ou domínio do mesmo editor, por uma das suas colaboradoras. A forma como lida com essa pulsão serve, por si só, para caracterizar a forma abusiva como exerce o poder: Reina (Rainha, em castelhano) é um jovem em início de carreira, de origem humilde mas culta, que preza muito e a própria liberdade de acção e expressão, cultivando uma secreta sensualidade, denunciada por pequenos gestos, executados de forma quase automática, quando julga que não está a ser observada. Reina Remis ambiciona afirmar-se como jornalista e, posteriormente, como escritora e investigadora, dedicando-se a estudar enigmas e questões que envolvem ética, filosofia e religião. Profissionalmente, a sua atitude dominante é a de uma repórter intrépida, capaz de grandes golpes de audácia, envolvendo-se por vezes em situações de elevado risco, com o objectivo de conseguir uma boa reportagem.

EM contrapartida, o perseguidor Camargo mostra-se, ao longo da trama, como o predador que é, observando, na sombra, todos os movimentos da presa, registando hábitos, rotinas, origens sociais e familiares, ligações, história de vida, sem o conhecimento da jovem.

Na verdade, Camargo adopta este procedimento não em relação a Reina, mas também em relação à vida privada de todos aqueles com quem se relaciona, pessoal e profissionalmente, incluindo o percurso político dos respectivos familiares e ligações sentimentais, contando para tal com uma espécie de “polícia política secreta” dentro do jornal, peritos em informática, especialistas em invadir o correio electrónico pessoal dos funcionários visados por Camargo. Neste contexto, a devassa à vida de Reina Remis está longe de ser um caso isolado nos procedimentos de do seu chefe e ex-marido, mas antes um comportamento padrão de que se serve para exercer o poder, como se estivesse à frente de um Governo de um estado de regime autoritário.

Ao ler os emails pessoas dos seus colaboradores, Camargo afirma a dada altura: “Nenhum destes zângãos faz a mais pequena ideia de que, quando escreve, se revela”.

Os acontecimentos que se sucedem ao longo do romance, situam-se temporalmente no final da década de 1990 do século XX, altura em que à conjuntura económica desfavorável vivida na época, se juntava a corrupção generalizada da estrutura político-governamental, assente no tráfico de influências e que se traduzia em gigantescos desvios das verbas públicas para cofres privados.

Neste contexto, a extrema soberba da personagem principal, o editor Camargo acaba por ser a forma de demonstrar como se exerce o chamado “quarto poder” (Tofler) quando um país só dispõe de jornalismo associado a uma determinada facção política, a funcionar como extensão do partido que está no poder ou, pelo contrário como o seu concorrente directo, o que é neste caso, a posição de Camargo.

Em relação à vida privada, a mesma personagem, opta por um modelo comportamental que denuncia um estado de espírito a caminhar progressivamente para o caos: o interesse pela própria família esvai-se, centrando-se cada vez mais obsessivamente na figura de Reina, no sentido de seguir todos os movimentos daquela que lhe parece cada vez mais como a incarnação do espírito da abelha-mestra, a rainha que deseja voar até ao sol. Até se lhe queimarem as asas. À semelhança do sucedido a Ícaro.
A extrema soberba de Camargo acaba por se transfigurar de comportamento abusivo em atitude criminosa, levando-o a planear e executar, de forma insidiosa e fria, vários crimes contra a mema pessoa, com requintes de crueldade.

De facto a atitude de Camargo é explicada logo nas epígrafes que introduzem o romance:

O criminoso não cria a beleza: ele próprio é a beleza em estado puro, ou julga ser, seja qual for o tipo de beleza que pretende incarnar. A frase é de Jean-Paul Sartre e descreve com precisão o carácter de alguém extremamente narcisista, que só se admira a si mesmo.

A outra frase elucidativa vem apenar completar a primeira:

A soberba é por assim dizer, a abelha-rainha de todos os vícios e pecados”.

A partir do momento em que Remis se torna amante de Camargo, irá sofrer uma ascensão profissional vertiginosa e, ao mesmo tempo, deixar-se contaminar um pouco pela mesma soberba do chefe e amante. Até chegar a altura em que o relacionamento começa a degradar-se.

Já depois da ruptura, numa das devassas feitas ao apartamento de Remis, Camargo encontra uma inquietante notícia sobre o assassínio da jovem esposa (Sandra Gomide) de um empresário de uma editora brasileira (Pimenta Neves) e da forma escorregadia em como este consegue esgueirar-se por entre os meandros da lei e assim, escapar à prisão, trabalhando meticulosamente no sentido de destruir a reputação da vítima, para conseguir atenuantes. A táctica consistia em lançar a dúvida para manipular a opinião pública e os magistrados encarregues de julgar o caso, relativamente ao carácter e à estabilidade emocional da vítima.

O estilo de Martínez

Quando entramos na narrativa de O Voo da rainha deparamo-nos com o forte impacto do desconforto causado pela sensação de sermos confrontados com a admiração pela distinção que caracteriza a figura do narrador (Camargo) dono de uma evidentemente vasta cultura cinéfila e literária, denunciada pelas várias citações e referências que faz ao longo do discurso; d e uma inteligência e sagacidade, evidenciadas pela consciência lúcida face à situação económica que atravessa a Argentina, naquele momento da sua História. O único elemento discordante face a uma pessoa que tanto se distingue da média é o aparente desequilíbrio  que está patente na compulsividade com que observa uma jovem que está diante de um espelho no prédio em frente a despir-se. Aquela a quem o narrador a examina sem ser visto, com uma espécie de telescópio, protegido pela penumbra do quarto. A esta indiscrição Hitchcockiana, sucede-se uma série de factos que interligados, nos vão dando a percepção da dimensão monstruosa da personalidade de Camargo. Começamos por estranhar o facto de esta personagem se introduzir, de forma despropositada e por demais invasiva, na vida alheia e da jovem aparentemente uma desconhecida, muito antes de sabermos o teor da relação que esta mantém com o narrador.

Paralelamente à obsessão demonstrada por aquele estranho homem face a uma jovem notamos, paralelamente, uma estranha indiferença em relação à própria família: sobretudo o pouco caso que faz das duas filhas adolescentes, uma das quais doente oncológica em estado crítico. O detalhe da cena em que Camargo encontra, entre as coisas de Reina, o exemplar da revista onde vêm relatados os factos de um caso em tudo semelhante ao ocorrido no romance, com o título de “uma paixão Brasileira” é já um indício do desfecho da história, fazendo parte do" jogo de espelhos", utilizado por Tomás Eloy Martínez como recurso estilístico. Como já foi dito anteriormente Martínez via em Pimenta das Neves o seu simétrico: alguém que emparelhava consigo no tocante ao currículo profissional, mas diametralmente oposto no tocante à personalidade. A soberba de Pimenta das Neves é substituída em Martínez pela consciência crítica, que lhe serve de bitola para construir a personagem Camargo, produto da fusão de ambos. Apesar do requinte e postura cavalheiresca (como era característica do autor), Camargo age como Pimenta da Neves: como se fosse um semi-deus que tudo vê, tudo sabe e tudo pode, empenhado em demonstrar um profunda arrogância por todos à sua volta,   por considerar-se superior quer aos seus pares quer aos próprios colaboradores a quem chama de subordinados. Tanto a personagem real inspiradora como a ficcional se  destacam por serem figuras que utilizam próprio o poder para impedir a ex-companheira de encontrar trabalho, mediante o despeito a jovem ter posto um fim à relação. O desenvolvimento da trama ficcional tem um percurso ligeiramente diferente àquele que fez correr rios de tinta no Brasil, mas o resultado é estranhamente similar: o voo de Reina, a rainha, a abelha-mestra, é abruptamente interrompido após uma série de reveses inesperados.

A grande mais-valia deste romance de Martínez consiste numa habilidade invulgar para fundir realidade e ficção. O narrador principal entra frequentemente em diálogo consigo mesmo, ou melhor, com o seu duplo, do outro lado do espelho da alma. Nestes diálogos exploram-se reflexões sobre o crime, reportando-o a vários planos e dimensões numa tentativa de dissecar os fundamentos do Mal absoluto.

O primeiro indício de uma mente criminosa, onde o Eu se vê como algo de sublime ao praticar u crime, está patente logo na pág 46 desta edição da ASA quando, numa das suas divagações Camargo medita: Todo o criminoso é um poeta que escreve um crime. Sendo que aqui o verbo “escrever” é na verdade um eufemismo que significa realmente “planear” ou “arquitectar”, “Esquematizar”: os passos que constituem a preparação para o acto final. Este Ego vê-se a si esmo como um poeta mas somente para dar uma conotação de sublime ao acto que pratica e que é socialmente inaceitável, aquilo a que em psicologia se chama de “sublimação". Só desta forma se consegue entender e reconstituir o pensamento do criminoso.

A escrita impecável, sem melodramas nem qualquer apelo ao sentimentalismo ao leitor deste livro reveste-se de importância máxima na tomada de consciência de algumas das mais graves maleitas sociais dos nossos dias, pelo que a sua leitura se torna urgente e inequivocamente recomendável.


Cláudia de Sousa Dias
03-06-2011/ 23-01-2012

Tuesday, April 03, 2012

“O Padrinho” de Mario Puzo (Bertrand11/17)










Tradução de: Carlos Vieira da Silva

Com a publicação, em 1969, deste romance sobre a Máfia nova-iorquina passado nos anos 1940, Mario Puzo, também ele, tal como as suas personagens, um descendente de imigrantes italianos nos Estados Unidos, jornalista de profissão, consegue finalmente afirmar-se como ficcionista. O mesmo romance daria, alguns anos mais tarde, origem à adaptação cinematográfica de Francis Ford Copolla, em 1972, com Marlon Brando no papel de Don Vito Corleone e Al Pacino como Michael Corleone. Uma película que ganharia três óscares para a categoria de Melhor Filme, Melhor Argumento Adaptado e Melhor Actor (Brando).

A acção principal do romance incide, como já foi referido, em Nova-Iorque durante a chamada “Lei Seca”, que proibia a venda de bebidas alcoólicas, época que coincide com a ascensão do poder tentacular dos vários ramos da Máfia Siciliana naquela cidade, os quais, durante a segunda metade do século XX, estendem a sua influência a cidades como Las Vegas e Los Angeles.

No primeiro volume da saga Corleone, Puzo explora, embora de forma algo superficial, as raízes históricas das Máfias sicilianas em terras do Tio Sam e a razão do secretismo à volta daquela organização, construída à base de laços afectivos e de sangue, com raízes que as culturas que remontam à época medieval na Europa,surgindo num contexto de oposição à ordem estabelecida e às classes dominantes como forma de subversão, formando um grupo reaccionário face às leis impostas pela sociedade e, principalmente como forma de resistir aos desmandos da Inquisição.

Mas com o passar do Tempo dá-se, segundo o Autor, uma nova inversão de valores e a rede mafiosa passa a ser, ela própria, um instrumento de opressão, baseando as suas atitudes na rapina, na contrafacção e na extorsão, dirigida a todas as classes sociais, inclusive àquelas que era suposto proteger.

O autor dedica uma boa pare do romance a explicar a forma como, pouco antes da II Guerra Mundial, as famílias mafiosas e os seus associados passaram a ser perseguidos em Itália. Mussolini mandava prender todos aqueles que se lhe apresentavam como meros suspeitos de pertencer a uma qualquer organização criminosa, mas sem proceder a qualquer tipo de julgamento, fundamentação ou validação de provas ou depoimentos que se lhe apresentassem, prendendo culpados e, na maior parte das vezes, inocentes, baseando-se frequentemente em denúncias falsas.

Com a chegada dos Aliados à Península, sobretudo após o desembarque do Exército Americano, é deliberada a libertação de todos os prisioneiros durante o regime de Mussolini sem terem em conta que alguns eram, de facto, criminosos.

Noutra perspectiva, o Autor elabora, também, o retrato da situação política do fascismo e do pós-guerra que acaba por pressionar grande parte da população siciliana a emigrar, impelida pelas graves dificuldades económicas na Ilha a emigrar para os Estados Unidos.

Já nas décadas de 1930 e 1940 – coincidindo com a ascensão e consolidação do poder de Mussolini -, as organizações mafiosas começaram a proliferar nos Estados Unidos, com o pretexto inicial de garantir a protecção aos seus conterrâneos, actuando os seus chefes como patriarcas de uma grande tribo ou clã. Noutras publicações deste Autor, como O Siciliano de que falaremos dentro de algumas semanas, o Autor dedica-se a explorar com pormenor as razões pelas quais os habitantes daquela ilha e os seus descendentes em terras estrangeiras, confiam muito mais nos laços de parentesco do que nas instituições do Estado para garantir a própria segurança.

A família siciliana, retratada por Puzo é muito mais do que uma família de sangue: trata-se de uma família alargada, que engloba também um vastíssimo número de “afilhados”. No caso concreto da comunidade ligada à família Corleone,em O Padrinho, trata-se de pessoas com problemas sobretudo do foro legal, a quem falha a ajuda das instituições. É por essa razão que procuram Don Vito, um homem poderoso, com as mesmas origens e raízes culturais, com o qual estabelecem laços de suserania e vassalagem, garantindo assim a coesão social tipicamente italiana, baseada na ajuda mútua e na troca de favores. Desta forma é construída uma micro-estrutura social dentro do macro-sistema social que é a sociedade norte-americana.

O motor do desenvolvimento da história de O Padrinho será, no entanto, o conflito de gerações no seio da família Corleone, cujo patriarca se vê pressionado pelas outras famílias rivais a alargar o seu ramo de actividade:ao invés de se limitarem a contrabandear bebidas alcoólicas e a cobrar uma espécie de dízimo para garantir a segurança dos seus protegidos, a família Corleone é assediada por outros grupos rivais no sentido de vir a colaborar no tráfico de drogas - a família Tataglia, que gere uma rede de clubes nocturnos na Big Apple. A tensão está patente, dentro e fora da família, uma vez que o poder de Don Corlene assenta numa complexa teia de favores – tráfico de influências –, embora para o patriarca os fins nem sempre justifiquem os meios.

Estrutura da trama

Para explicar a forma como se estrutura o poder de Don Corleone, Mario Puzo começa por expor, de forma simples e dinâmica, algumas situações concretas de pessoas que se encontram em situação frágil, sendo o único traço em comum entre elas, uma situação de absoluto desespero, para a qual procuram a ajuda e a protecção de Don Corleone, ao qual passam a chamar de “Padrinho”. A ajuda terá, obviamente, o seu preço, o qual será cobrado na hora exacta. A pessoa que é ajudada coloca-se sob a sua protecção, mas ficará, a partir daquele instante, devedora de uma lealdade incondicional ao seu benfeitor. O tratamento por “Padrinho” é sinónimo de uma afectividade da qual o patriarca é credor, sujeitando os seus aficcionados à lei do silêncio – a Omertà – face às autoridades oficiais e instituições do Estado, já que a Máfia continua a ser, como nos tempos medievais, um desafio à ordem estabelecida, constituindo um sistema de justiça paralelo. A Omertà protege este tipo de laços. Se esta lei é quebrada, cessa o dever de protecção do “Padrinho”, ficando o delator sujeito consequências que daí possam advir – a vendetta. Uma punição implacável, cruel, mas sempre coerente. Para Don Corleone a vendetta é um prato que se come frio, nunca esquecendo uma ofensa, como os felinos, característica que é também típica do temperamento sulfuroso e vulcânico dos sicilianos.

Há, no romance, uma personagem, Johnny Fontana, que lembra de forma algo alarmante o cantor Franck Sinatra, com a sua voz de veludo dos tempos áureos, as tão especuladas ligações à Máfia, as suas atribuladas ligações sentimentais, o alcoolismo, a perda ou modificação da voz, para além de nos permitir mergulhar no mundo de corrupção que é Hollywood e o Showbizz e as ligações perigosas da Meca do cinema.

Estrutura e desenvolvimento da trama
O romance divide-se oito partes ou Livros: No livro I são esquematizadas as situações que levam a que algum dos protegidos de Don Corleone lhe peçam um favor “especial”, no dia do casamento da filha deste, sabendo da tradição siciliana que obriga a que um patriarca nunca recuse um pedido que lhe façam no casamento de uma filha: o funerário Amérigo Bonasera, o cantor Johnny Fontane, o padeiro Nazorine e Anthony Copolla, o futuro dono de uma trattoria. Assistimos também nesta fase ao nascimento de uma ligação sentimental clandestina entre Sony e Luci Mancini, uma das damas de honra da noiva, Constanza, facto que dá um toque picante ao romance. Em simultâneo, o leitor é também posto ao corrente do desenvolvimento da estrutura organizacional da rede de contacto e actividades de Don Corleone, a qual se divide em várias facções, lideradas pela sua equipa ou Capporegime (facções encabeçadas por vários líderes): Tessio, Clemenza e Paulie Gatto. Estes centuriões de actividades ilícitas encabeçam a facção armada do pessoal de Don Corleone. Controlam as bancas de jogo e todo um sistema de apostas e comércio de bebidas ilegais. A entrada de Tom Hagen, um irlandês de ascendência germânica tão próximo de Don Corleone como um filho, desde a adolescência, altura em que perdeu os pais, dá-se na altura da sucessão de Genco Abbandando, para o lugar de consigliere, homem da máxima confiança e braço direito do “Padrinho”, acaba por despoletar alguns ciúmes e ódios virulentos.

Ao mesmo tempo o desenvolvimento da personagem Michael Corleone, o filho mais novo, sofre uma viragem de 180º. Trata-se da personagem mais modelada do romance, posto que, inicialmente, somos levados a pensar que este terá um percurso de vida fora das redes da Máfia, mas os acontecimentos subsequentes e um ataque directo à família por clãs rivais alteram drasticamente o percurso e a própria personalidade do benjamim Corleone.
Nos capítulos seguintes, a história segue o seu curso fazendo entrever um desenvolvimento algo previsível. A trama é articulada como um organograma de uma organização que funciona como uma grande empresa ou corporação, mostrando os múltiplos expedientes de que se serve para se infiltrar nas instituições estatais: na política e no senado, nos grandes negócios (legais), e até no cinema e demais meios de difusão de massas, montando todo um complexo esquema de lavagem de dinheiro.
Por outro lado, a tentativa de assassínio de Don Vito Corleone e a morte de Sonny marcam o início de uma guerra sem tréguas, entre os Corleone e os outros clãs das máfias de origem siciliana…

Nos livros III e IV, assistimos a uma analepse – um recuo no tempo, cujo objectivo é o de ficarmos a saber as origens de Don Corleone, desde o seu passado e origens familiares na Sicília à construção do enorme poderio económico em Nova Iorque, sobretudo no livro III. Ao recuo temporal que possibilita o mergulho no passado de Don Vito segue-se uma pausa no desenvolvimento da narrativa, que consiste na estadia de Michael na Sicília, para se recuperar das feridas de um tiroteio e escapar da mira dos seus inimigos. A história de Michael na Sicília é uma das passagens mais belas do romance, e provavelmente, a de maior valor literário, com um episódio lírico a terminar à maneira das tragédias clássicas. Os dias passam lentos na paisagem quase paradisíaca da Sicília. Quase. Porque a ilha esconde debaixo dos perfumes da terra, venenos sulfurosos e um Etna social que é a Máfia local. A família Corleone tenta colocar Michael sob a protecção de um dos padrinhos da ilha, enquanto nos E.U.A. se tomam diligências para limpar o nome de Michael, de forma a que este possa regressar àquele país sem correr risco de prisão.

No livro V, sobressai a velocidade dos acontecimentos após a morte de Santino (Sonny). A guerra deflagra entre as famílias mafiosas de Nova Iorque, após serem identificados os traidores dentro do grupos, violadores do princípio da Omertà. Mas a tensão manter-se-á até ao final do último capítulo. A identidade do traidor-mor é mantida até ao fim, através de uma técnica utilizada pelo Autor a que podemos chamar de “cortina de fumo”, que consiste em desviar as atenções do principal suspeito, mantendo-o cuidadosamente “na sombra”, em segundo plano. Uma estratégia frequentemente utilizada por Mario Puzo e que se repete em romances posteriores como O Siciliano e O Último Padrinho. O grande vilão de O Padrinho”, romance no qual praticamente todas as personagens – salvo Kay, Apollonia e Mrs. Corleone são anti-heróis, pode definir-se como um indivíduo inequivocamente reles: para além da ambição desmedida é alguém possuidor de inteligência medíocre e sempre pronto a vender a alma e o corpo pelo lance mais alto.

A actividade da Família Corleone começa a deslocar-se gradualmente para Las Vegas e , através do contacto de Johnny Fontana, a olhar para Los Angeles e Hollywood como futuros foco de actuação.

No Livro VI, voltamos novamente à Sicília onde ainda se encontra Michael, já casado com a bela Apollonia, em recuperação. Neste episódio temos um breve vislumbre de como o fundamento da Omertà favorece as relações de poder insulares, que radicam num feudalismo serôdio que se escusa de premiar o mérito pessoal ou o trabalho mas somente as relações de poder.

Mike apercebe-se que esta Máfia, com um código de honra ainda tão decalcado dos moldes do feudalismo é, afinal, o garante da ordem política e jurídica existente…

No livro VI, é relatada a paixão fulminante que acomete Michael pela primeira mulher, uma mistura de gazela feita de ar, virginal, mas com algo de bacante, pela luxúria que desperta a sua carne adolescente. Os acontecimentos precipitam-se no entanto de forma funesta, precipitando o regresso de Michael a Nova Iorque.

O livro VII mostra o filho mais novo de Don Vito de volta aos Estados Unidos e aos braços da antiga namorada, Kay, tal como um Ulisses que regressa a Ítaca e ao leito de Penélope, após um idílico romântico e insular com a ninfa Calipso. Ao contrário da relação com Apollonia esta é uma relação baseada em afinidades: Kay não é fulminante como um raio, mas antes um lago calmo.

Neta fase da história, assistimos à evolução da saúde de Johnny e à ascensão profissional de Nino, um protegido de Don Corleone e, também ao peso crescente do médico Jules, amante da jovem Mancini, antiga paixão de Sonny. Este será o médico que assiste ao pessoal e clientes dos casinos Corleone, em Las Vegas, e gestor do hospital, fundado pela família, num genial esquema de lavagem de dinheiro de origem duvidosa. Jules enriquece em troca de ajudar alguns amigos de Don Corleone cuja saúde está ameaçada. Como paga dos seus benefícios só tem de ignorar a proveniência dos fundos que servem para criar - e manter - um luxuoso hospital privado.

Freddie, o filho do meio, lidera os negócios Corleone em Las Vegas, dedicando-se definitivamente ao jogo, à hotelaria e evitando o narcotráfico, por ordem expressa do patriarca.

Após o seu regresso, Michael começa entretanto a preparar-se para suceder ao pai nos negócios, tarefa que lhe exige grande esforço diplomático, devidamente aconselhado por Don Vito e Tom Hagen.


O Livro VIII, marca a entrada de um novo elemento na organização: Albert Neri, que substitui o feroz Lucca Brasi: para não ferir susceptibilidades nem pôr em causa a autoridade dos dois lugares tenentes da organização , Michael tem de agir como se pisasse ovos, mas sem demonstrar receio.
Entretanto são descobertos mais dois traidores ligados à família, entre os quais Carlo Rizzi, cunhado de Mike.

A morte de Don Vito é o segundo momento de grande beleza literária do romance , culminando numa cena cheia de dramatismo, um quadro digno de uma ópera de Verdi ou Pucinni.

O livro IX consiste numa espécie de epílogo, onde é descrita a “limpeza final”, a terrível vendetta e as tendências de evolução e mudança, ocorridas na Família, cujo foco de acção se desloca, cada vez mais, para Las Vegas. Uma palavra para os nomes das personagens a provar a extrema ironia, caracterizada por evidentes traços de humor negro que caracterizam a escrita de Mario Puzo: o devasso Santino (Santinho) ou Sonny (filhinho) diminutivo anglicizado, o impiedoso Clemenza (clemência), o funerário Buonasera (Boanoite), entre outros…

Este não é o melhor livro de Mario Puzo, estando muito longe da obra-prima que publicou postumamente A Família sobre os Bórgia, durante o período do Renascimento. Mas é um romance policial que se lê com prazer, devido à forma cinematográfica com que são descritos os acontecimentos, muitos deles em sequência alternada, o que dá impressão de que os factos se sucedem a um ritmo voraz, tornando a obra facilmente adaptável ao mundo da Sétima Arte. Com isto, Mario Puzo forneceu a base do argumento daquele que foi, durante muitos anos, considerado o melhor filme de sempre, realizado por Francis Ford Copolla: O Padrinho I.

Cláudia de Sousa Dias

30.06.2011