Vencedor do Prémio PT 2012,
este quarto romance de valter hugo mãe pode-se dizer que é
um romance bipolar. Não, como é óbvio, no sentido clínico ou da
patologia da mente, a acepção mais comum da palavra, trata-se antes
de uma polarização que se adapta como uma luva à exploração do
sentido da dor pessoal do protagonista – o senhor silva, um idoso,
internado num lar de terceira idade, após sofrer um avc – por um
lado, e a dimensão da pusilanimidade colectiva do homem comum
português que vive a maior parte da sua existência em regime
ditatorial e a outra metade em democracia, pelo outro.
O senhor silva é um octogenário, fiel
a um amor que durou mais de meio século e só terminou com a morte
ou, se calhar, nem assim. Na verdade, ao longo do romance, esta
personagem central sob cujo olhar nos é dada a conhecer a narrativa,
não deixa nunca de sofrer as consequências do violento choque
emocional de ter perdido a mulher. Logo a seguir à morte da esposa,
o senhor silva vê-se confrontado com um drama existencial
aparentemente inultrapassável: o desafio de sobreviver ao amor de
toda uma vida em primeira instância e, numa segunda fase, deter o
processo de entropia da máquina biológica que o mantém vivo.
A partir daqui, entramos já na
dimensão social do envelhecimento quando, juntamente com o senhor
silva, cruzamos o limiar do lar de terceira idade “feliz idade”.
E é então que percebemos com a leitura de a máquina de fazer
espanhóis até que ponto se torna trágico processo de
envelhecimento, sempre de mãos dadas com a exclusão da sociedade
produtiva, com base da premissa de com a chegada do fim da idade para
trabalhar e a entrada na idade da reforma, a vida começa a
degradar-se e a deixar de fazer sentido. Além das doenças
degenerativas e incapacitantes que se aliam à indesculpável e
insultuosa falta de respeito dos outros na forma como usam as palavra
“velho”, como na ausência total de uma política de inclusão.
Os filhos do senhor silva e da dona laura, com as suas casas
adaptadas à família nuclear e as exigências das respectivas
profissões, não conseguem albergar mais uma geração dentro de
casa. Para além disto, o avc parece ter despoletado um mecanismo que
vai progressivamente alterando a personalidade do senhor silva, facto
de que só nos apercebemos, à medida que vamos avançando no
romance. O momento exacto em que isto acontece dá-se quando nos
damos conta de que o nosso protagonista, alguém aparentemente
lúcido, começa a demonstrar alguma dificuldade em distinguir o
sonho da realidade e a caminhar perigosamente no limiar entre o bem e
o mal. Neste contexto, há uma cena em que agride uma idosa durante o
sono, a fazer lembrar um filme de Michael Hannecke, pela surpresa,
pelo choque e pelas consequências que daí advém.
A relação do senhor silva com os
outros utentes do feliz idade (cuja fonética tem um aspecto
ironicamente semelhante à palavra felicidade) é bastante
controversa: por um lado, assistimos a uma certa cumplicidade e
solidariedade com os restantes utentes masculinos – como o seu
homónimo a quem chama jocosamente de o silva da europa (o
senhor silva é eurocéptico, em contraste com o seu colega,
entusiástico apoiante da adesão de Portugal à UE), o anísio, o
medeiros, esteves sem metafísica
(que lhe lembra o protagonista do poema A Tabacaria de
Fernando Pessoa),
sobetudo no tocante ao pessoal da ala feminina a relação não é
tão pacífica, apesar da máscara de cavalheirismo e falsa cortesia.
Na verdade o senhor silva não as suporta, nem a elas nem à sua
religiosidade beata, aversão que se torna particularmente notória
no tratamento com que brinda a imagem da Virgem, à qual lhe descola
e destrói as pombinhas de cartão ao mesmo tempo que a trata
familiarmente por “mariazinha”, tornando-a igual às outras
mulheres, mortal portanto, uma mulher que morre como as outras e cujo
corpo se decompõe. Não suporta também a mesquinhez, as picuinhas e
a maledicência das habitantes femininas do lar, sempre reunidas à
mesa do jardim, com os seus pueris trabalhos artesanais, excluindo os
homens da conversa, falando mal deles ou de outras mulheres que não
estão presentes. No entanto, anísio, antigo curador do museu de
arte antiga em lisboa é o único homem admitido na tertúlia
feminina e é também o único a arranjar namorada, dentro do lar.
Esta é também a única personagem de entre os internos no lar que o
próprio Autor afirma ser “genuinamente boa” pelo seu
temperamento naturalmente conciliador e que por essa mesma razão, é
o único a vivenciar o amor naquele lugar.
Na
dimensão sociológica de a máquina de fazer espanhóis
está também contido o lado
da sociologia que faz fronteira com a política e a história, ao
pretender retratar no romance, de forma satírica e acutilante humor
negro, a evolução e amadurecimento das pessoas que viveram a
infância e juventude durante o Estado Novo e depois, já na idade
adulta, a transição e desenvolvimento da democracia, sobretudo nas
classes sociais mais humildes e que, por medo de represálias, vindas
do aparelho central e da mudança nos governos, sempre manifestaram
medo em exteriorizar as convicções politicas. Este receio
traduziu-se em esquivar-se invariavelmente a qualquer tipo de
participação no tocante à intervenção política, dando-se
especial ênfase ao incentivo à despolitização, operado durante
largas décadas ao povos dos “silvas”, mesmo durante o regime
democrático, e cuja consequência se reflecte numa exasperante
pusilanimidade, à semelhança de Pilatos da atitude de Pilatos
diante de um inocente politicamente incómodo. O povo que valter
hugo mãe descreve neste
romance é isso mesmo: um exército de clones de alguém que não
hesita em “lavar as mãos” ao denunciar ou prejudicar o vizinho
para ficar bem na fotografia, no mais perfeito exercício de
pusilanimidade. É por esta razão que o título inicial para esta
obra seria o de “o fascismo dos bons homens”,
o qual decide depois mudar para o periférico título “a
máquina de fazer espanhóis”,
pelo receio do impacto negativo que o título original pudesse causar
e ao preconceito que poderia gerar à leitura, ainda antes de sair da
estante das livrarias.
Na
verdade, fala-se muito deste livro, dos prémios adquiridos mas o que
é curioso é a comunicação social omitir na quase totalidade a
referência a este aspecto do romance, o que não deixa de ser
curioso.
O
Desenvolvimento da trama
Em a
máquina de fazer espanhóis,
a crítica social é apresentada em alternância com o drama da
alteração progressiva da personalidade e degradação das
faculdades mentais do senhor silva. Com a entrada naquela
instituição, o senhor silva é colocado diante do facto consumado
do envelhecimento e da entrada no corredor da morte . A evolução
deste processo é narrada totalmente pelo ponto de vista do idoso, um
homem inteligente, arguto, de sentido crítico vincado, acintosamente
céptico. O primeiro detalhe em que repara, logo ao entrar no feliz
idade, é no facto de os utentes
recém-chegados serem alvo de tratamento VIP, instalados nos quartos
mais aprazíveis, com vista para o parque onde brincam crianças -
uma vista para o passado das próprias vidas, pelo menos enquanto
ainda têm memória – mas à medida que as faculdades mentais, a
mobilidade e o controle das funções vitais vai diminuindo, a
máquina biológica entra em entropia ao mesmo tempo que a máquina
social se revela totalmente incapaz de encontrar uma solução para
travar o avanço da morte. Assim, os doentes vão sendo transferidos
para os quartos do outro lado do edifício, alegadamente melhor
equipados, com vista para o cemitério – a paisagem do futuro. Para
se irem habituando à ideia,
segundo o senhor silva.
valter
hugo mãe afirmou, em
entrevista ao jornal Público que
esta movimentação nos quartos dos utentes «tem o mesmo
efeito psicológico que uma roleta russa onde os quartos são os
espaços do canhão onde a bala eventualmente entra. É um lugar de
debitar corpos.»
Dos momentos mais
emblemáticos da diegese de a máquina de fazer espanhóis
destacamos capítulo cujo título esteve para ser o título
do romance, o fascismo dos bons homens, no qual os “silvas”
são conotados com o protótipo do português típico comum, de
classe média-baixa que viveu grande parte da vida durante a ditadura
do Estado Novo. A descrição desta figura-tipo resume-se, em traços
largos, a poucas linhas: pessoas que gostam de ser vistas como homens
honrados e trabalhadores, de cumprir compromissos, mas sem a
robustez psíquica par fazer face a uma ameaça externa, de uma
“máquina maior”, de uma super-engrenagem. Na verdade, este
romance de vhm dá a entender, logo no primeiro capítulo,
pela voz do senhor silva que, quarenta anos após a Revolução, já
não é preciso pensar na Liberdade nem defendê-la, porque se trata
de um dado adquirido e “há quem pense nela por nós”. a
máquina de fazer espanhóis é, assim, uma 'máquina'
asséptica que nos leva a não pensar e a nos fundirmos com um todo
maior, isto é, a diluir a nossa identidade, diluição à qual está
implícita uma crise de valores. Nesta linha de pensamento, o Autor
mostra-nos as sementes que levam ao germinar de uma generalizada
crise deontológica e de princípios axiológicos que se reflecte na
apatia social e no desinteresse pelas grandes questões, na miragem
da perseguição do bem-estar a curto prazo, um objectivo que nunca é
atingido.
«um dia estamos
distanciados de tudo, e no outro somos os pacíficos pais de família,
tão felizes e iludidos (…) iludidos como se nada fosse, porque
nada é. as ideias, meu amigo, são menores nos nossos dias. não
importam. e podemos pensar qualquer atrocidade saindo à rua.
(…)
as liberdades também fazem isso,
uma não importância do que se pensa, porque para quem já não é
preciso pensar.
(…)
se não dermos nas vistas podemos
passar a vida inteira com os piores instintos e ninguém saberá. Com
a liberdade, só os cretinos mais incautos passaram a ser má gente.»
Para antónio
silva, o nosso “bom homem” em quem reside o fascismo mais
latente, inculcado durante quarenta e oito anos de ditadura, a
colocação do eu em relação ao outro apresenta-se da seguinte
forma:
«num tempo em
que somos todos bons homens, a culpa tem de atingir os inocentes (…)
não sou um homem piedoso. não há inocentes.»
Sobre a rudeza
silvestre das gentes portuguesas, o Autor dá a entender, pela voz
dos dois silvas, ser esta uma característica de uma educação
repressiva, tanto das atitudes como do pensamento o que,
paradoxalmente, reproduz atitudes hostis.
«somos todos silvas neste país,
quase todos crescemos por aí como o mato, é o que é. como as
silvas. somos silvestres (…)exactamente (…) assim, do mato,
passando pelo terreno de fora com cara de gente mas muito agrestes,
sem solução nenhuma.
(…)
«olhe que somos
gente educada! (antónio silva)
(…)
«mas a educação tem sido
apresentada, neste país, à paulada, ou não lhe parece? (o
silva da europa)
(…)
«achei que aquele silva era um
imbecil dos grandes e que me estava a empatar a energia com retóricas
(antónio silva sobre o silva da
europa)
«mas somos bons homens!» (o silva
da europa)
Como se vê no
discurso “o silva da europa” é um homem ingénuo, dotado de
alguma bonomia, crê numa utopia onde o mundo seja um governo único,
onde os homens vivem como numa irmandade, como na letra do coral da
nona sinfonia de Beethoven, o Hino da Europa:
«um dia seremos cidadãos de um
mesmo mundo. iguais, todos iguais. e felizes, nem que seja por
obrigação.»
Outro dos capítulos
a destacar é a brancura é um estágio para a desintegração
final, onde se trata da brancura asséptica dos hospitais
enquanto antecâmaras da morte, omnipresente nos quartos dos utentes
em estado terminal no lar “feliz idade”. Este é o
primeiro capítulo em que antónio silva se apercebe da dinâmica
sinistra das relações e do percurso dos utentes naquela instituição
a qual, mais do que um lugar de apoio à velhice e, sobretudo, mais
do que um lugar de preparação para a morte, esconde um propósito
bastante mais cínico:
«o lar não
suporta mais do que setenta e três pessoas e, para que uma entre,
outras têm de sair. a saída é dolorosa mas rápida. Rodam-se
alguns velhos pelos quartos fora. Eventualmente, um que já esteja
acamado vai para a ala esquerda, já muito vizinho dos mortos, e
outro entrará de novo no quarto vago com vista para o jardim.»
Depois, o capítulo
o amor é uma estupidez intermitente mas universal que nos
mostra, com o humor corrosivo que caracteriza o discurso do senhor
antónio silva, o cínico sobrevivente do amor, os devaneios
amorosos dos utentes do lar feliz idade principalmente do
ponto de vista das mulheres. Como já antes foi referido, há muito
do cineasta Michael Hannecke na forma como é construída a crueldade
secreta do senhor silva por valter hugo mãe que faz por vezes
recordar, quando acedemos aos pensamentos mais secretos, o terrível
patriarca de “O Laço Branco” ou o protagonista da
longa-metragem mais recente, “Amour” na construção do
ethos social deste idoso antónio silva, um homem
aparentemente pacífico, mas cujo lado sombrio acaba por dominá-lo.
Uma pessoas
observadas por antónio silva e com quem este se diverte cruelmente,
estimulando a sua esperança cega, é a dona marta, na sua eterna
espera de notícias por parte do companheiro que ali a depositou para
depois se esquecer definitivamente dela:
«ela ficava
ali, perante o américo ( rapaz que traz o correio) como uma
noiva. a cometer o erro de acreditar no marido uma e outra vez.
porque acreditava, mesmo a fim de dois anos sem uma linha, que ele
voltaria com uma desculpa de mérito, ainda precisando do carinho
dela e feliz pelo reencontro assim é o amor, uma estupidez completa,
mas universal.»
Em um ataque de
qualquer coisa o autor já coloca em destaque os estranhos surtos
psicóticos de antónio, acerca dos quais nunca temos a certeza se
ocorrem durante o sono ou a vigília.
Os restantes
capítulos desenvolvem a ideia explicitada no início da obra, sempre
de acordo com o vector da desintegração progressiva da
personalidade e do eu, da cristalização da memória no
passado, não apenas de antónio silva, mas dos outros utentes em
geral, incluindo o “esteves sem metafísica”, o sr. medeiros,
etc.
Um dos aspectos
mais comoventes no romance consiste na reacção não apenas de
antónio silva mas de todos os utentes com o jovem enfermeiro
américo, a principal fonte de afecto para os habitantes daquele
lugar. Américo é um jovem que desempenha a profissão com o amor e
a compaixão que são requeridos a alguém que dedique a própria
vida a cuidar de seres debilitados, sem ver neles apenas um número
ou uma fonte de rendimento.
Uma outra
curiosidade neste romance algo incómodo para algumas pessoas pouco
habituadas ao estilo de vhm é o episódio do incêndio e a
morte de um utente em condições mais do que suspeitas no feliz
idade – um facto que aconteceu realmente no lar visitado pelo
Autor e que serviu de inspiração para a escrita deste romance –
dá lugar a um inquérito de investigação operado pelos
protagonistas dos romance policiais de Francisco José Viegas: o
inspector Jaime Ramos e o seu assistente na PSP do Porto, Isaltino de
Jesus. Os dois, hilariantes na sua placidez e estoicismo quanto à
pressa em arranjar indícios e provas para resolver o caso, à boa
maneira portuguesa. A intrusão desta dupla nos assuntos do lar, a
bisbilhotar tudo e todos sem resolver nada e sem tirar conclusões de
maior, vem causar uma ruptura no ambiente dramático e depressivo que
se começa a avolumar a partir do meio da trama. São as únicas
personagens, que por serem criações de outro Autor, são brindadas
com maiúsculas. A descompressão face ao ambiente insuportavelmente
tenso que se cria neste ponto estágio de desenvolvimento da
narrativa, está patente na exasperante lentidão processual e
formalismo burocrático com que ambos os funcionários se empenham em
fazer cumprir a lei, assim como no carácter inconclusivo de todas as
suas acções. A sua inclusão no romance tem a ver com o desejo de
representar todo o conjunto de disfunções de um estado burocrático
que tenta parecer organizado e voltado para o crescimento, mas a
viver dominado por sentimentos contraditórios, a oscilar entre a
admiração e a inveja pelos seus vizinhos (espanhóis, sobretudo).
Os dois polícias representam, neste contexto e em forma de
metonímia, a alegoria da lenta transformação de Portugal, por
culpa de uma máquina burocrática que obriga a cumprir ordens ao
invés de raciocinar, numa distopia, isto é, numa máquina de fazer
espanhóis (que até há bem pouco tempo tanto queríamos imitar),
isto é, numa indústria de produção em série de emigrantes como
seres uniformizados e sem identidade cultural.
«de espanha,
nem bom vento nem bom casamento. no entanto, há o desejo de para lá
emigrar.»
Entretanto, a
paranóia de antónio silva intensifica-se à medida que a história
vai avançando, até ao vazio total, à dissolução, ao último
estágio de entropia física e mental.
a máquina de
fazer espanhóis trata de uma realidade dura, difícil de
aceitar pela sociedade ocidental em geral: o envelhecimento e a
morte, a doença prolongada; mas também de uma determinada concepção
específica de ethos social, muito típico na sociedade
portuguesa, que está impresso nos diálogos entre as personagens,
nas palavras ácidas, revestidas de uma crueldade e egoísmo
latentes, em pessoas afundadas no seu drama pessoal, nas areias
movediças da própria solidão, seres incapazes de olhar o Outro por
outro ponto de vista que não o do eu ou de um acto de
altruísmo, mas que chegam ao cúmulo de nos arrancar uma gargalhada
à situação patética do “a minha dor é maior do que a tua”
mas que colide ao mesmo tempo com a profunda comiseração face à
incomensurável tragédia da finitude inerente à condição de
mortais.
24.08.2012-15.05.2013
Cláudia de Sousa
Dias