“Persona” de Eduardo Pitta (Quidnovi)
Persona é uma obra da
Autoria do poeta, ensaísta e crítico Eduardo Pitta,
constituída por três novelas cujo tema principal e, apesar de não conseguirmos evitar pensar no filme homónimo de Ingmar Bergman, e de uma possível intertextualidade com a obra do cineasta a te temática central, comum às
três narrativas, incide apenas na questão da identidade sexual, mais propriamente na edificação da Persona ou Máscara que faz parte do processo mais
amplo de construção do Eu nas personagens de Eduardo Pitta. A acção situa-se em terras de Moçambique,
no período anterior ao vinte e cinco de Abril. Apesar de Persona de Eduardo Pitta não ter como ponto de partida a criação de Bergman, podemos olhá-la como o lado simétrico da do realizador sueco: as
personagens centrais são, ao contrário das do filme, masculinas, todas elas e enfrentam um meio
social e regime político hostis, formando um vasto conjunto de
obstáculos à livre escolha da pessoa que se deseja ser. Daí as
máscaras – personae – que visam adopção de uma conduta
aparente, mais ou menos fictícia que implica sempre uma
performance, uma actuação, como se se estivesse no palco a
actuar perante um público e consoante as expectativas desse mesmo
público, que espera daquele actor, que veste aquela máscara,
um determinado comportamento, como é o caso do jovem adolescente da
primeira história, Marilyn.
O Autor identifica esta publicação
como “uma trilogia de contos morais”, cuja acção decorre em
Moçambique, entre 1960 e 1973. As três estórias representam três
momentos-chave na vida da personagem central que aparece em todas as
narrativas, apesar de, na minha opinião, a primeira se enquadrar
melhor no género conto.
Assim, Marilyn, a primeira
história, será talvez a situação retratada que melhor ilustra o
espírito da obra. A acção passa-se em 1962, o protagonista é um
adolescente que, pelo aspecto algo efeminado e conduta que revela uma
tendência a uma inclinação por pessoas do próprio sexo, é alvo
de bullying na escola, sendo encaminhado para ajuda
psicológica com o objectivo de corrigir aquele “desvio”, mas
acaba por ser assediado pelo próprio médico, que tenta
aproveitar-se da situação vulnerável da criança, ao abrigo da
máscara social que lhe é proporcionada pela profissão.
A forma como é construída a narrativa
é feita de forma a provocar no leitor uma crescente sensação de
angústia e o intuito de incitar a revolta no leitor que se “cola”
à figura da criança, como o elo mais frágil que é, dado que o
agressor tenta chantagear a vítima, ao tentar fazê-la sentir-se
culpada pela situação e, assim, justificar um assédio premeditado
e cuidadosamente planeado.
A cena no consultório coloca o leitor
numa situação de extrema tensão psicológica como a que assistimos
ao longo do filme “Michael” do realizador austríaco
Markus Schleinzer. Em ambos os casos, o leitor/espectador
experimenta a sensação de empatia pela criança, ao tomar
consciência do terror sentido por esta, face à eminência de sofrer
um abuso sexual por parte de um adulto. O desfecho da história, ao
contrário do filme de Schleizer, onde se nota a marca da
influência de Michael Hannecke, traz ao leitor a sensação
de alívio, mediante a dissipação do risco, mas também a tristeza
pela morte de algo, uma fase da vida, um paradigma, um ícone
representado por alguém que, também ela, é impedida de ser o que
deseja, vivendo de uma máscara criada para ela, para o agrado das
massas. A história termina de forma abrupta, com a desilusão de um
jovem que vê desvanecer-se um primeiro amor e, simultaneamente,
desaparecer um ícone de beleza absoluta, arquétipo da imagem da
sensualidade inocente.
A segunda história intitula-se
Kalahari e consiste numa trama que descreve uma aventurosa
viagem através do deserto, uma odisseia empreendida por um grupo de
jovens boémios – e com as hormonas em fogo – em pleno mês de
Setembro de 1967. Eduardo Pitta descreve uma paisagem
escaldante e exótica ao longo de uma travessia que pode tornar-se,
por vários factores –
geográficos, climáticos e sócio-políticos –, arriscada. Na
escrita de Eduardo Pitta,
em Kalahari, estão presentes inúmeras referências
culturais que denunciam um forte contacto com a cultura
anglo-saxónica, desde o requinte cinematográfico dos cenários por
onde se movimentam as personagens, que denuncia a denuncia a origem
social do protagonista, Afonso, e dos jovens que o acompanham como
pertencentes, quase todos, à elite local, beneficiando de uma
cultura muito acima da média, mas impregnada de rebeldia e
inconformismo, que se reflectem, por vezes, na crueza da linguagem,
presente também na expressão de um intenso erotismo com que é
descrita a pujante sexualidade juvenil de que está revestida a
estória.
A acção da última narrativa passa-se
entre 1971 e 1973, tendo como pano de fundo a repressão à
homossexualidade, presente no exército e a repressão feita pela
PIDE à homossexualidade. É aqui, talvez que encontramos mais
vincadas as contradições inerentes a uma sociedade que insiste em
excluir determinados grupos sociais, baseados apenas na orientação
sexual. Esta será, de entre as três narrativas que são aqui
comentadas, aquela que explora, de fora mais completa e sob várias
perspectivas, as personae de que se munem as pessoas que
sofrem o aguilhão do desejo recalcado, numa perspectiva
eminentemente freudiana.
A opinião da crítica
O escritor e filósofo Miguel Real
comentou a propósito desta trilogia, num artigo do JL (2001), acerca
do léxico utilizado pelo autor, classificando-o de “subversivo”
relativamente à chamada “normalidade”, ao passo que Pedro
Mexia no DN (2001),
refere-se-lhe como “uma narrativa de aprendizagem sexual, de
fruição homoerótica”. Já Maria Augusta da Silva no
Diário de Notícias (2001) descreve a obra como “uma
abordagem crua e desassombrada de um lado oculto da guerra colonial e
do apartheid sul-africano,
mas na qual se cumpre a função crítica perante cenários marcados
pelo arbítrio e abuso do poder”. Jorge Listopad do JL
(2001), por sua vez, fala do “enigma poético” a propósito da
obra que “filtra a homossexualidade latente, factual, ressuscitando
a memória dos pequenos infernos”. E Fernando Matos Oliveira
na Colóquio-Letras (2002) destaca: “A impressão que se tem ao ler
Persona é a de uma reactivação de experiências de
leitura de algum património moral do século XVIII, até porque há
entre eles marcas de género (…): ritmo acelerado, narrador
autodiegético, e sobredeterminação da pulsão erótica.” E
Helena Barbas no Expresso (2002), por sua vez, compara as
idades de Afonso nas três estórias – doze, dezoito e vinte e dois
anos – fazendo corresponder a cada uma delas “uma forma de
iniciação”. Finalmente, Edgar Pereira da Revista de
Estudos Portugueses da Universidade de Minas Gerais (2005) destaca o
último conto “pela contiguidade da libertação política e da
concepção libertária da sexualidade (…). O último conto atinge
em cheio as supostamente sólidas fundações do Império Luso”. EP
aponta ainda “o dinamismo e agilidade da linguagem, num português
globalizado”, referindo-se à profusão de estrangeirismos,
sobretudo de origem anglossaxónica, mas também galicismos e
expressões de origem crioula, cujo resultado final é “uma prosa
ficcional alegre e ousada, refinada e demolidora, irónica e
encharcada de cepticismo”.
Por todas estas razões a leitura de um
livro tão inquietante e fracturante quanto Persona
torna pertinente a sua reedição, editada pela primeira vez em 2000 e em 2003, de forma a facilitar o seu acesso
ao público para além dos raros exemplares existentes em
pouquíssimas bibliotecas.
18.12.2012-16.09.2013
Cláudia de Sousa Dias