"Nua e Crua" de Marta Gautier (Dom Quixote)
O seu último romance é composto por um aglomerado de episódios, cronologicamente ordenados – que são, por vezes, intercalados por alguns capítulos acerca de uma misteriosa e sedutora mulher, Bia, da qual só mais lá para o final do romance é que nos apercebemos de que forma a sua existência se relaciona com a da protagonista – Marina, uma jovem marcada por uma infância “pobre em afectos”, o que explica a sua extrema insegurança na vida adulta.
Vida essa que é caracterizada por uma série de conflitos intrapessoais e interpessoais e pela necessidade compulsiva de conquistar a sua própria autonomia sem ferir ninguém – um conflito do tipo atracção-repulsão, despoletado pela necessidade se ser amada e admirada por todos.
Principalmente pela tia Manuela, sua mãe adoptiva e mentora.
De outra forma, o seu crescimento pessoal jamais se efectuará sem que antes Marina corte radicalmente com o seu passado, já no final da adolescência.
Marina não consegue relacionar-se com os outros sem fazer tudo por tudo para lhes ser agradável, no sentido de colmatar as suas carências afectivas. Daí recorrer, constantemente à manipulação, que resulta numa necessidade compulsiva de colocar uma máscara diferente consoante as ocasiões ou o papel a desempenhar.
A dada altura, o seu verdadeiro EU está soterrado debaixo de uma personalidade fictícia, que todos amam, mas que ninguém conhece verdadeiramente.
Os afectos tornam-se superficiais e a sensação de solidão aumenta. O equilíbrio emocional de Marina e dos que lhes estão próximos está à beira da ruptura…
É necessária a reconciliação com o passado. A resolução dos conflitos pendentes impõe-se, apesar dos esforços titânicos de Marina em mantê-los trancados nos arquivos poeirentos da memória.
A perda de identidade, a importância das raízes e as consequências despoletadas pelo estilo de afectividade e educação ao longo da infância, são as linhas de desenvolvimento deste romance, de pendor tão realista, que nos é dado pela pena de Marta Gautier.
Uma escritora que, à semelhança de Alberto Moravia em Agostinho, disseca as atitudes nas suas diferentes componentes: cognitiva, emocional e comportamental.
Mas, ao contrário do escritor italiano, a tónica do discurso narrativo de Marta Gautier em Nua e Crua está isenta de qualquer forma de pessimismo ou depressão.
Nos capítulos relativos a Marina, a narrativa decorre na primeira pessoa e é notório o contraste entre o tom equilibrado presente da protagonista e narradora com as atitudes do passado, contraditórias e incoerentes para os que com ela convivem.
Nos capítulos que relatam o quotidiano de Bia, o narrador coloca-se na posição de observador, como se estivesse no cinema ou no teatro. A história passa a ser contada na terceira pessoa. Como se o narrador dos restantes capítulos "saísse de si mesmo", despersonalizando-se, tirando a máscara, para falar do alter-ego de Marina.
Também a ênfase no desenvolvimento psicossexual, tão ao gosto de Moravia, é aqui dividida e atenuada por outras dimensões do desenvolvimento pessoal de Marina: a dimensão psicossocial de cariz erikssoniano e a visão construtivista\cognitivista de Jean Piaget.
Por último, Nua e Crua, é um livro extraordinariamente bem escrito, por aliar um solidíssimo saber técnico a uma apurada sensibilidade e poder de observação.
Esperamos, por isso, pelo próximo romance de Marta Gautier.
Ansiosamente.
Cláudia de Sousa Dias