“A Insustentável Leveza do Ser” de Milan Kundera (Dom Quixote)
A acção situa-se na época da invasão da Boémia pelo Exército Russo, à qual se sucede uma autêntica revolução cultural. Os textos dos intelectuais checos são censurados, as suas casas são confiscadas juntamente com as suas bibliotecas privadas. São saneados no emprego e obrigados a retratar-se, isto quando não são sujeitos a represálias por parte da Polícia ou deportados para a Sibéria.
A intenção do Autor é, sobretudo fazer a crítica ao estilo kitsch na arte. Sobretudo na literatura, na pintura e no cinema. E, principalmente, ao kitsch comunista – a ideia formatada pela intelligensia soviética, que pretende mostrar às massas o comunismo como destino edénico, ou o fim idílico da História.
Kundera consegue ir ainda mais longe. O seu objectivo é a desmistificação do culto do Kitsch em qualquer sistema político. "Porque o Kitsch mutila a Arte. O Kitsch é a cegueira. O Kitsch é a ideia falsificada da Perfeição. É a negação dos aspectos negativos das infraestruturas que servem de suporte a uma sociedade. É a negação da existência da merda” (sic). Isto é, o kitsch é o paraíso artificial prometido quer pelos filmes cor-de-rosa de Hollywood, quer pela propaganda do regime comunista, habilmente polida, lustrada pela censura. De facto, um regime cuja censura impede a visualização ou a consciencialização dos seus aspectos negativos, só pode ser comparado a uma flor de artificial. Ou de estufa. Uma estética perfeita, mas sem perfume. Por isso, um intelectual, escritor, pintor ou jornalista dificilmente conseguirá exprimir-se livremente num regime onde a arte como veículo de canalização das emoções ou do livre pensamento é mutilada.
É por esta razão que duas das personagens principais são, ou pretendem ser, a antítese do Kitsch: Thomas, o médico e intelectual rebelde; e Sabina a pintora inconformista, de “boas famílias” que sente o impulso incontrolável de cortar com a tradição.
Sabina e Thomas sentem, por isso, a necessidade compulsiva de fazer o contrário daquilo que a respectiva família ou instituições esperam deles. O seu móbil é a procura do oposto daquilo que é politicamente correcto. Não querem ser formatados. São seres cuja atitude anti-conformista se traduz numa tentativa de chamar a atenção da opinião pública, no sentido de mudar atitudes e comportamentos: Thomas, com os seus artigos de opinião, que publica no jornal; Sabina, com a sua pintura.
A Insustentável Leveza do Ser é, por isso, um romance que trata do dilema entre a manutenção da integridade do EU e a necessidade humana de integração, o impulso de constituir aquilo que Herbert Spencer chama de “a célula básica das sociedades humanas”: a família.
Relacionado com esta questão, está o golpe de audácia do Autor em recuperar o pensamento de alguns filósofos pré-socráticos como Heraclito e Parménides adaptando-o à realidade do sec. XX.
Em primeiro lugar, o Autor apresenta-nos a problemática do “eterno retorno”, aquilo que em economia se chama de “custo de oportunidade” – ou o custo de uma tomada de decisão – que implica a impossibilidade de sabermos as consequências ou implicações na nossa vida se tivéssemos tomado a decisão oposta. O eterno retorno assenta no pressuposto de que o curso da vida não segue em linha recta, mas em círculos. Ou em espiral. O que remete para a tese de Heraclito, de que “nunca nos banhamos duas vezes no mesmo rio”.
Da mesma forma, só podemos tomar a mesma decisão uma única vez, porque a vida não permite ensaios.
Porque, para Kundera, mesmo quando surge a oportunidade de refazermos as nossas vidas, as circunstâncias, ou melhor, a conjuntura envolvente já não é a mesma. O conjunto de variáveis já se alterou. Portanto, a decisão já não é a mesma.
Por outro lado, a dicotomia entre “leve” e “pesado”, que Kundera introduz, de forma algo irónica, acerca das relações afectivas entre homens e mulheres, remete-nos para a teoria dos opostos de Parménides. Para Thomas, o médico checo dividido entre duas belas mulheres, Teresa e Sabina, trata-se de saber o que é mais importante na relação amorosa: o peso ou a leveza. Qual deles é o pólo positivo e qual o negativo?
Sabina é a beleza sensual, a leveza, a paixão, a liberdade – a paixão de Thomas pela indomável pintora tem, por isso, algo de auto-erótico, pelo facto de parecerem tão semelhantes (como se vê na cena do espelho com o chapéu-de-coco como acessório sexual).
Teresa, pelo contrário, é uma jovem de família humilde, disfuncional, problemática e extremamente carente. Esta consegue prender Thomas usando as grilhetas da compaixão. Teresa é o peso que consegue agarrar o rebelde e inconstante Dom Juan à Terra e aos laços do matrimónio.
O custo de oportunidade de Thomas só se consegue observar mediante o desenrolar da vida de Sabina – a sua alma gémea – que escolheu “a leveza do ser”, isto é, a liberdade e independência absolutas.
Ao contrário de Thomas, Sabina mantém a integridade do EU até ao final pelo facto de não se deixar prender a ninguém.
Thomas pelo contrário passa a ser influenciado e a dirigir a sua vida em função das emoções de Teresa – o abandono da carreira profissional em Zurich e, mais tarde, em Praga, quando decide retirar-se para uma aldeia no interior.
A carreira de Thomas entra em entropia devido à sua indecisão em optar entre “o peso e a leveza”: Thomas quer o amor de Teresa e quer, simultaneamente, a sua vida antes de Teresa, isto é, a sua vida de cientista sexual.
Impedido de exercer medicina pelo regime comunista, Thomas prossegue a sua carreira de investigador do comportamento sexual feminino, utilizando as suas clientes, na sua nova carreira de lavador de janelas, como cobaias.
No final, o “peso” é que acaba por dominar a vida de Thomas. O sofrimento de Teresa é uma arma poderosa de persuasão. Paralelamente, o sofrimento de Karenine, o cão de Teresa, um ser cujo amor é partilhado por ambos acaba por aproximá-los e transformar o Dom Juan em Tristão, confirmando as previsões de Sabina acerca da relação de ambos.
O dilema de Teresa é diferente do de Thomas. Teresa está preocupada com a Alma. Com o culto do EU. Inteligente e autodidacta aspira a elevar-se intelectualmente. Preocupa-a a ligação, a correspondência, de cariz algo platónico, entre o corpo e a alma. Idealista e apaixonada, a jovem sucumbe à atracção fatal de Thomas, fruto de uma série de acasos sucessivos, que ela julga ser obra do Destino ou de qualquer outra entidade superior, algo que anula o livre-arbítrio.
A sua paixão por Thomas deixa-lhe, no entanto, a alma dividida, anula-lhe o equilíbrio psíquico e desenvolve um receio paranóico de ver-se abandonada, substituída.
Franz, o namorado de Sabina, é a versão masculina do Eu de Teresa. Mas como Sabina, ao contrário de Thomas, não se deixa prender pelos afectos, Franz refugia-se na Utopia, no saber e na inteligência. Franz é aquilo no qual Teresa poderia ter-se tornado se não se tivesse fundido, isto é, incorporado a sua vida na de Thomas.
Em Franz, a autenticidade manifesta-se na sua procura pelo ideal, seja ele político, afectivo ou emocional. A Grande Marcha contra a opressão e a violência do regime comunista é regida pela devoção, pela idolatria ao seu ideal de mulher que ele identifica com Sabina. Franz admira-a por ser igual a si mesma, porque nunca tenta agradar a ninguém, ao contrário da sua própria esposa, Marie-Claude, que vive em função das aparências.
Por isso, todas as suas atitudes são direccionadas no sentido de cativar a admiração de Sabina.
A respeito deste casal, o capítulo respeitante às diferentes significações atribuídas às mesmas palavras é um autêntico tratado de psicologia no que toca à terapia de casal.
E é, sobretudo, na terceira parte, intitulada de As palavras Mal-Entendidas, que nos apercebemos da dimensão da importância das cognições (a forma como estamos programados para entender determinadas palavras) em relação ao condicionamento das atitudes dos indivíduos.
Aliás, todo o livro é terapêutico no que respeita à análise da evolução das relações amorosas, independentemente do sistema político em que estas se desenrolam.
Por todos estes motivos, A Insustentável Leveza do Ser é uma das maiores obras literárias do sec. XX,..
Um livro que se lê de forma compulsiva, de capítulos pequenos, o que torna a leitura extremamente dinâmica. A escrita é introspectiva, demonstrativa, recorrendo, por vezes, à maiêutica socrática, o que ajuda a estimular o raciocínio.
O estilo narrativo de Kundera é depurado, não há uma única palavra supérflua. Destituído de floreados poéticos, confere aos textos uma beleza (leveza) ática, que se lê com prazer.
Um livro de leitura obrigatória.
Revolucionário na forma de olhar o mundo.
Genial.
Cláudia de Sousa Dias
A intenção do Autor é, sobretudo fazer a crítica ao estilo kitsch na arte. Sobretudo na literatura, na pintura e no cinema. E, principalmente, ao kitsch comunista – a ideia formatada pela intelligensia soviética, que pretende mostrar às massas o comunismo como destino edénico, ou o fim idílico da História.
Kundera consegue ir ainda mais longe. O seu objectivo é a desmistificação do culto do Kitsch em qualquer sistema político. "Porque o Kitsch mutila a Arte. O Kitsch é a cegueira. O Kitsch é a ideia falsificada da Perfeição. É a negação dos aspectos negativos das infraestruturas que servem de suporte a uma sociedade. É a negação da existência da merda” (sic). Isto é, o kitsch é o paraíso artificial prometido quer pelos filmes cor-de-rosa de Hollywood, quer pela propaganda do regime comunista, habilmente polida, lustrada pela censura. De facto, um regime cuja censura impede a visualização ou a consciencialização dos seus aspectos negativos, só pode ser comparado a uma flor de artificial. Ou de estufa. Uma estética perfeita, mas sem perfume. Por isso, um intelectual, escritor, pintor ou jornalista dificilmente conseguirá exprimir-se livremente num regime onde a arte como veículo de canalização das emoções ou do livre pensamento é mutilada.
É por esta razão que duas das personagens principais são, ou pretendem ser, a antítese do Kitsch: Thomas, o médico e intelectual rebelde; e Sabina a pintora inconformista, de “boas famílias” que sente o impulso incontrolável de cortar com a tradição.
Sabina e Thomas sentem, por isso, a necessidade compulsiva de fazer o contrário daquilo que a respectiva família ou instituições esperam deles. O seu móbil é a procura do oposto daquilo que é politicamente correcto. Não querem ser formatados. São seres cuja atitude anti-conformista se traduz numa tentativa de chamar a atenção da opinião pública, no sentido de mudar atitudes e comportamentos: Thomas, com os seus artigos de opinião, que publica no jornal; Sabina, com a sua pintura.
A Insustentável Leveza do Ser é, por isso, um romance que trata do dilema entre a manutenção da integridade do EU e a necessidade humana de integração, o impulso de constituir aquilo que Herbert Spencer chama de “a célula básica das sociedades humanas”: a família.
Relacionado com esta questão, está o golpe de audácia do Autor em recuperar o pensamento de alguns filósofos pré-socráticos como Heraclito e Parménides adaptando-o à realidade do sec. XX.
Em primeiro lugar, o Autor apresenta-nos a problemática do “eterno retorno”, aquilo que em economia se chama de “custo de oportunidade” – ou o custo de uma tomada de decisão – que implica a impossibilidade de sabermos as consequências ou implicações na nossa vida se tivéssemos tomado a decisão oposta. O eterno retorno assenta no pressuposto de que o curso da vida não segue em linha recta, mas em círculos. Ou em espiral. O que remete para a tese de Heraclito, de que “nunca nos banhamos duas vezes no mesmo rio”.
Da mesma forma, só podemos tomar a mesma decisão uma única vez, porque a vida não permite ensaios.
Porque, para Kundera, mesmo quando surge a oportunidade de refazermos as nossas vidas, as circunstâncias, ou melhor, a conjuntura envolvente já não é a mesma. O conjunto de variáveis já se alterou. Portanto, a decisão já não é a mesma.
Por outro lado, a dicotomia entre “leve” e “pesado”, que Kundera introduz, de forma algo irónica, acerca das relações afectivas entre homens e mulheres, remete-nos para a teoria dos opostos de Parménides. Para Thomas, o médico checo dividido entre duas belas mulheres, Teresa e Sabina, trata-se de saber o que é mais importante na relação amorosa: o peso ou a leveza. Qual deles é o pólo positivo e qual o negativo?
Sabina é a beleza sensual, a leveza, a paixão, a liberdade – a paixão de Thomas pela indomável pintora tem, por isso, algo de auto-erótico, pelo facto de parecerem tão semelhantes (como se vê na cena do espelho com o chapéu-de-coco como acessório sexual).
Teresa, pelo contrário, é uma jovem de família humilde, disfuncional, problemática e extremamente carente. Esta consegue prender Thomas usando as grilhetas da compaixão. Teresa é o peso que consegue agarrar o rebelde e inconstante Dom Juan à Terra e aos laços do matrimónio.
O custo de oportunidade de Thomas só se consegue observar mediante o desenrolar da vida de Sabina – a sua alma gémea – que escolheu “a leveza do ser”, isto é, a liberdade e independência absolutas.
Ao contrário de Thomas, Sabina mantém a integridade do EU até ao final pelo facto de não se deixar prender a ninguém.
Thomas pelo contrário passa a ser influenciado e a dirigir a sua vida em função das emoções de Teresa – o abandono da carreira profissional em Zurich e, mais tarde, em Praga, quando decide retirar-se para uma aldeia no interior.
A carreira de Thomas entra em entropia devido à sua indecisão em optar entre “o peso e a leveza”: Thomas quer o amor de Teresa e quer, simultaneamente, a sua vida antes de Teresa, isto é, a sua vida de cientista sexual.
Impedido de exercer medicina pelo regime comunista, Thomas prossegue a sua carreira de investigador do comportamento sexual feminino, utilizando as suas clientes, na sua nova carreira de lavador de janelas, como cobaias.
No final, o “peso” é que acaba por dominar a vida de Thomas. O sofrimento de Teresa é uma arma poderosa de persuasão. Paralelamente, o sofrimento de Karenine, o cão de Teresa, um ser cujo amor é partilhado por ambos acaba por aproximá-los e transformar o Dom Juan em Tristão, confirmando as previsões de Sabina acerca da relação de ambos.
O dilema de Teresa é diferente do de Thomas. Teresa está preocupada com a Alma. Com o culto do EU. Inteligente e autodidacta aspira a elevar-se intelectualmente. Preocupa-a a ligação, a correspondência, de cariz algo platónico, entre o corpo e a alma. Idealista e apaixonada, a jovem sucumbe à atracção fatal de Thomas, fruto de uma série de acasos sucessivos, que ela julga ser obra do Destino ou de qualquer outra entidade superior, algo que anula o livre-arbítrio.
A sua paixão por Thomas deixa-lhe, no entanto, a alma dividida, anula-lhe o equilíbrio psíquico e desenvolve um receio paranóico de ver-se abandonada, substituída.
Franz, o namorado de Sabina, é a versão masculina do Eu de Teresa. Mas como Sabina, ao contrário de Thomas, não se deixa prender pelos afectos, Franz refugia-se na Utopia, no saber e na inteligência. Franz é aquilo no qual Teresa poderia ter-se tornado se não se tivesse fundido, isto é, incorporado a sua vida na de Thomas.
Em Franz, a autenticidade manifesta-se na sua procura pelo ideal, seja ele político, afectivo ou emocional. A Grande Marcha contra a opressão e a violência do regime comunista é regida pela devoção, pela idolatria ao seu ideal de mulher que ele identifica com Sabina. Franz admira-a por ser igual a si mesma, porque nunca tenta agradar a ninguém, ao contrário da sua própria esposa, Marie-Claude, que vive em função das aparências.
Por isso, todas as suas atitudes são direccionadas no sentido de cativar a admiração de Sabina.
A respeito deste casal, o capítulo respeitante às diferentes significações atribuídas às mesmas palavras é um autêntico tratado de psicologia no que toca à terapia de casal.
E é, sobretudo, na terceira parte, intitulada de As palavras Mal-Entendidas, que nos apercebemos da dimensão da importância das cognições (a forma como estamos programados para entender determinadas palavras) em relação ao condicionamento das atitudes dos indivíduos.
Aliás, todo o livro é terapêutico no que respeita à análise da evolução das relações amorosas, independentemente do sistema político em que estas se desenrolam.
Por todos estes motivos, A Insustentável Leveza do Ser é uma das maiores obras literárias do sec. XX,..
Um livro que se lê de forma compulsiva, de capítulos pequenos, o que torna a leitura extremamente dinâmica. A escrita é introspectiva, demonstrativa, recorrendo, por vezes, à maiêutica socrática, o que ajuda a estimular o raciocínio.
O estilo narrativo de Kundera é depurado, não há uma única palavra supérflua. Destituído de floreados poéticos, confere aos textos uma beleza (leveza) ática, que se lê com prazer.
Um livro de leitura obrigatória.
Revolucionário na forma de olhar o mundo.
Genial.
Cláudia de Sousa Dias