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Blog sobre todos os livros que eu conseguir ler! Aqui, podem procurar um livro, ler a minha opinião ou, se quiserem, deixar apenas a vossa opinião sobre algum destes livros que já tenham lido. Podem, simplesmente, sugerir um livro para que eu o leia! Fico à espera das V. sugestões e comentários! Agradeço a V. estimada visita. Boas leituras!

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Bibliomaníaca e melómana. O resto terão de descobrir por vocês!

Saturday, March 31, 2007

“Tango Triste” (memento) de Luísa Monteiro (Hugin)


A escrita subversiva e afiada como um cutelo de um talhante de Luísa Monteiro, prende a atenção do leitor ao irradiar um magnetismo irresistível pela forma surpreendente que tem de colocar a nu os tabus que todos queremos esconder, colocando-a na galeria dos autores “malditos” como Charles Beaudelaire e a inquestionavelmente talentosa Maria Teresa Horta.

A escritora, nascida no Minho, reside actualmente no Algarve e prepara-se para lançar mais um livro, ao mesmo tempo que conclui a tese de doutoramento.

Mas enquanto que o seu trabalho mais recente não chega às livrarias, podemos apreciar mais uma das suas obras mais marcantes, publicada em 1999, a marcar final do milénio.

O passado jornalístico da Autora, apaixonada pela investigação, levou-a a construir um romance com base num crime cujos contornos macabros o tornaram especialmente susceptível de ser dissecado pelos media – um parricídio transportado para a ficção.

A estória é narrada por uma jovem órfã – Simone – de treze anos de idade, precocemente dotada para a escrita, que escreve um diário onde fala das suas memórias, referindo-se ao passado da família, envolto numa escura e densa neblina, distorcido pelos rumores que lhe chegam aos ouvidos a respeito quer dos pais, quer dos avós.

Existem três narradores principais.

Uma delas é Nana ou Fernanda, a mãe, que vai buscar o diminutivo a um dos romances de Zola. Nana é adoptada, mas, dos pais, recebe apenas conforto material e palavras duras que levam a que não se cheguem a desenvolver laços afectivos entre ela e o casal. O discurso de Nana é romântico, denunciador de uma grande necessidade de afecto e solidão deixando, ao mesmo tempo, entrever a sua crescente rebeldia a par de uma inteligência acima da média. As desordens afectivas transformam-na contudo, na vítima ideal do poder persuasivo de um psicopata, que a desviam da rota prevista.

Francisco – ou Francis, como lhe chamaria Zola – tem, por sua vez, um discurso cínico, tenebroso, ilustrando o abismo tenebroso de uma alma dissimulada, tortuosa, sem sombra de respeito pela vida alheia. A desumanidade presente no seu carácter é destilada a partir do momento em que é vítima de abuso sexual na infância por parte de um tio, um sacerdote acima de qualquer suspeita. A alma envenenada do Francisco-criança evolui para uma personalidade anti-social na pré-adolescência, transformando-se num assassino frio e impiedoso.

Quanto a Nana, as sevícias passadas na prisão, a fuga, o exílio, a separação por morte de Francis e o seu desaparecimento marcam o destino da pequena Simone, criada por uma prima. O percurso do casal é determinante para a formação da personalidade de Simone, ensinada pelos familiares mais próximos a odiar os pais desde o berço. A jovem tem uma infância ausente de referências positivas, sem um adulto que possa servir de paradigma, a partir do qual ela possa modelar a sua própria conduta.

Já a escrita de Simone mostra claramente que se trata de uma criança com uma inteligência muito acima da média, ultrapassando a mãe em larga medida. Mas, tal como os pais, Simone é vítima de um conjunto de desordens afectivas – ampliadas pelo ambiente degradado da casa onde vive, com uma família completamente disfuncional, num vivo contraste com a família da sua homónima, Simone também, a grande amiga e confidente da mãe.

Com a mudança de residência, juntamente com a prima, para o outro extremo do país, a jovem Simone conhece alguma tranquilidade. Ficaram, apesar de tudo, algumas mazelas. Simone é uma adolescente cujo dom da palavra deixa transparecer emoções violentas, uma sensualidade voltada para si mesma (mecanismo de autodefesa?) que a leva a sentir-se atraída por pessoas do mesmo sexo, uma forma de auto-erotismo projectada para o exterior, para o Outro (Laura, Lúcia).

No Algarve a jovem trava acidentalmente amizade com um “casal de velhos tristes”, marcados pela solidão, pela melancolia e pela perda, que encontram o amparo no profundo afecto que nutrem um pelo outro: um amor sublimado pelos anos de vida em comum.

Alguns dos temas, presentes em Tango Triste (memento), são recorrentes na obra da Autora, como por exemplo, o abuso sexual, os maus-tratos a mulheres e a violência doméstica (A casa das Areias; O estranho Amável), o abuso sexual a crianças (O Evangelho das Rãs) ou os crimes violentos (As Sobredotadas).


Em Tango Triste podemos observar as diferenças, os contrastes culturais entre duas regiões tão díspares como o Minho e o Algarve. Como se a acidez do vinho verde acentuasse o carácter avinagrado das gentes tradicionais do norte, impiedosas na crítica social de quem ousa romper com as convenções. No Algarve, é como se a tepidez do mar temperasse a tendência para emitir pré-juízos, um apelo à tolerância à qual não é alheia a convivência com as gentes vindas dos mais diversos lugares, a multiplicidade de culturas que desaguam no mesmo mar calmo e tépido a banhar a costa do sul da Europa e o Norte de África…

O universo feminino domina a escrita de Luísa Monteiro cujas protagonistas crescem invariavelmente em famílias nas quais o elemento masculino está ausente (As Sobredotadas; A Vaca-Loura) ou, noutros casos, seria melhor que estivesse (A Casa das Areias, O Estranho Amável). Na adolescência e na vida adulta, orientam a sua conduta e, na maior parte das vezes, a sexualidade, como se procurassem refúgio, regressando ao útero materno.

Estas questões aliam-se à sedução de temas como a implacável crítica social, ou a ignorância de uma classe emergente que procura a compensação no consumismo exacerbado (desesperado?), típica das cidades recém-desenvolvidas no norte do país.

Aborda ainda o problema da indiferença social face ao ambiente nas prisões, da falta de critério no agrupamento dos indivíduos nas celas, ou do ambiente infecto de uma sala onde se realizam abortos clandestinos.

O Tango – nesta obra concebida com a intenção de abalar as consciências que dominam os meios sociais, onde impera a pobreza de espírito que teima em classificar as pessoas segundo os arquétipos puros do bem e do mal e esquecer-se de que ninguém é totalmente bom ou mau –, vem associado à ideia de morte, tragédia e fatalidade, pelo menos na primeira parte do romance.

É a máscara que encobre um crime.

No final, é o género musical que marca o fecho de um ciclo, a memória (memento), a lembrança da perda, a nostalgia. O Tango substitui o Fado, num canto de Dor que cheira a Saudade…

E é também sinónimo de paixão violenta, incontrolável como o caudal de um rio…

…de sangue.

Mais uma obra a exibir o toque de génio de uma Autora que retira do “cemitério das notícias esquecidas” (Carlos Ruiz de Zafón que me perdoa a utilização abusiva da sua expressão que descaradamente retirei do seu A Sombra do Vento…!).

Um livro que deveria ser de leitura obrigatória nas escolas.


Cláudia de Sousa Dias

Friday, March 23, 2007

“O Palácio dos Sonhos” de Ismail Kadaré (Dom Quixote)


Nascido no sul da Albânia, Ismail Kadaré inicia a sua actividade de romancista, jornalista e poeta depois de o seu país ter rompido os laços políticos com a União Soviética, reafirmando a sua soberania.

Depois de exercer a actividade como deputado na Assembleia Popular de Tirana durante doze anos, a Autor obtém asilo político em França, já no final da década de oitenta.

O romance O Palácio dos Sonhos, apesar de terminado em 1981, só é publicado pela primeira vez em França em 1990, chegando a Portugal dois anos depois.

O impacto do romance, no público da Europa Comunitária, é fortemente ampliado pelo assunto que dominava os media na altura: o conflito nos balcãs.

A acção de O Palácio dos Sonhos decorre no Império Otomano, nos finais do século XIX. Uma época efervescente, na qual o tabuleiro de xadrez político Europeu é palco do conflito de interesses entre dois gigantes imperiais com pretensões expansionistas cujas fronteiras se encontravam confinadas: o Império Otomano (a dominar praticamente toda a bacia do Mediterrâneo a oriente do Adriático) e o Império Austro-Húngaro (abarcando grande parte da Europa do Leste). O que significa que os Balcãs estão no centro do fogo cruzado e das insustentáveis tensões políticas e diplomáticas que se geram entre estes dois titãs...

...sob o olhar da águia imperial russa que aguarda pacientemente...

É este o cenário geopolítico que antecede a Primeira Guerra Mundial, despoletada pelo assassínio do Kaiser por um jovem nacionalista sérvio.

O medo irracional do Sultão em ser vítima de um golpe de estado fá-lo organizar uma vasta equipe com a tarefa de executar uma recolha exaustiva dos sonhos de todos os habitantes do Império em busca de indícios, presságios, oráculos anunciadores de uma possível tragédia seja ela de natureza natural económica ou política, embora o objectivo central seja o de detectar uma possível conspiração que vise directamente o Sultão.

O Palácio dos Sonhos é o edifício Imperial onde se recolhem, seleccionam, interpretam e arquivam os sonhos – ou o sono – de um dos mais vastos impérios à escala mundial. Organizado numa pesada superestrutura burocrática, situada num edifício cuja multiplicidade de corredores e galerias o tornam semelhante ao labirinto de Creta, e em cujas inúmeras encruzilhadas se confrontam os principais grupos rivais, à procura de um lugar de destaque na Corte governada por um soberano despótico.

Um lugar onde os sonhos mais importantes são forjados por grupos de interesses ou famílias rivais e onde os funcionários são simples marionetas. Estes são a máscara que esconde os mais sujos jogos de extorsão. O Minotauro pode estar è espreita na esquina de cada corredor ou ao abrigo de um dos gabinetes da cúpula...

A imponência, a austeridade e a atmosfera lúgubre do Palácio, banhado na profunda solidão quase autista dos funcionários, mergulhados durante horas a fio no conteúdo das suas pastas, está impressa em cada linha da escrita de Kadaré. De tal forma que o leitor quase sente o frio impiedoso do inverno de Istambul a penetrar os ossos e a entorpecer os movimentos.

A pretensão hipócrita manifestada pelas instâncias superiores do Palácio acerca do isolamento face às influencias externas, aquando da primeira entrevista do jovem Mark-Alem, esbarra directamente com o poder dos grupos de pressão, personificados pelas famílias influentes, como a Quprili à qual pertence Mark-Alem, sobrinho do Vizir. As promoções também sofrem o mesmo processo, onde o mérito conta muito pouco em detrimento dos laços de sangue. Mas a garantia de eficácia baseia-se, curiosamente, no factor sorte, que consiste em conseguir um aliado/informador privilegiado...durante a pausa para o café.

No entanto, o mesmo prestígio genealógico que coloca Mark-Alem numa posição influente é, também, o factor que o coloca na mira dos mais encarniçados e ferozes inimigos.

Acresce o facto de que, no Império Otomano, ninguém poder ser mais amado do que o próprio Sultão.

O prestígio de uma família proeminente bem como as afinidades do membro intelectualmente mais brilhante da família com o embaixador da potência rival, abrem a porta à Intriga com o objectivo de despertar o Ciúme, a Inveja e o Medo do Grande Tirano, e lançar a tragédia no seio dos Quprili...

O Palácio dos Sonhos oferece-nos a possibilidade de conhecermos um pouco mais profundamente a história da Albânia e as suas ligações face aos estados vizinhos como a Bósnia, a Turquia ou o Kosovo. E a entender as delicadíssimas e espinhosas relações diplomáticas/culturais bem como a génese dos conflitos étnicos que desembocaram em confrontos sangrentos que se estendem até à época contemporânea.

Um livro imperdível para quem deseja entender um pouco melhor os acontecimentos históricos das últimas décadas. Sobretudo para aqueles que gostariam de avaliar até onde pode chegar a prepotência da intervenção estatal quando se trata de invadir a vida privada.

Um romance que fala de sonhos roubados, dentro do palácio que é a mente de cada indivíduo.

Um grito de revolta a apelar ao direito pensar livremente.

De sonhar.

Sem medos.


Cláudia de Sousa Dias

Monday, March 19, 2007

“Lendas de Santos” de Eça de Queirós (Livros do Brasil)


Este é o livro de Eça no fim da vida, um Eça romântico, revolucionário, crente na infinita bondade humana de alguns seres excepcionais, embora sempre anti-clerical ao manifestar, nas entrelinhas e sobretudo na Lenda de S. Cristóvão, o ódio visceral à Igreja enquanto instituição, que o caracteriza.

O gigante S. Cristóvão, que viveu nos primeiros séculos da era cristã, é transportado por Eça de Queirós para a Idade Média e inserido no meio social envolvente, numa brilhante reconstituição histórica tanto no que toca ao cenário medieval (a casa do senhor, o mosteiro, a casa do servo) como nos episódios, cenas e quadros que ilustram a época, assim como as relações sociais típicas do período feudal.

Oriundo das gentes do povo, Cristóvão nasce com algumas características físicas que não o tornam muito propenso a ser aceite socialmente. Na realidade, é mesmo considerado como sendo um “monstro” – pés chatos, pele rugosa e tamanho desmesurado. Extremamente lento de raciocínio, Cristóvão é, no entanto, uma criatura dócil e muito prestativa. Coloca sempre a sua força de trabalho ao serviço dos outros sem, no entanto, exigir qualquer tipo de recompensa material. E quando o faz nunca é em proveito próprio.
Dedica a vida inteira à defesa dos mais fracos, facto a que se deve a sua canonização.

Das três lendas tratadas pela pena do mais célebre romancista português do século XIX, a mais completa e bem acabada é, precisamente, a de S. Cristóvão, uma vez que, na lenda de Santo Onofre, em muitas das páginas, não se sabe ao certo qual é a versão final, ou definitiva e, quanto à lenda de Frei Gil, cujo plano ou estrutura da narrativa nos dá a entender tratar-se de um belo e atribuladíssimo romance ao estilo de A Relíquia ou O Mandarim mas ficou, devido à morte do Autor, inacabado.


De tudo o que foi dito acerca da personagem Cristóvão, não há muito mais a acrescentar. Mas o mesmo não acontece em relação à época medieval, que é minuciosamente caracterizada pelo Autor até à exaustão, tecendo quadros de um vivo realismo como a vida nas cidades medievais, na aldeia, no castelo, a descrição das respectivas salas, a precisão das actividades passadas na cozinha castelã; a vida monástica e a forma como o sofrimento auto-infligido dos eremitas constituem, no seu entender, uma forma pretensiosa de se igualar ao modelo de perfeição personificado na figura de Cristo. Eça dá a entender ao leitor, pelo olhar de Cristóvão, tratar-se de soberba aquilo que se pretende fazer passar por humildade, valorizando antes a disposição em ajudar o Outro altruisticamente – o esquecimento de si.

Cristóvão tem, apesar de tudo, um ponto fraco. Necessita de sentir que precisam dele, do seu amor e infinita necessidade de se sentir útil.

Juntamente com o percurso de Cristóvão, são também explorados, vários episódios/acontecimentos da vida medieval, como as relações de vassalagem, a vida monástica, a vida eremita, o fenómeno da peste negra, a marginalização dos doentes, a falta de higiene pelo facto de não tratarem dos cadáveres, a guerra dos Jacques (jacobinos) num prenúncio dos acontecimentos que originaram a Revolução Francesa, cerca de quatro séculos mais tarde, as guerras entre suseranos, os torneios, as jornadas dos mercadores. Sem falar na administração da Justiça. Os enforcamentos, as flagelações. Também são mencionados, em vários episódios, toda uma casta de superstições de origem pré-cristã e os chamados “bruxedos”, que faziam parte das tradições populares e do misticismo lusitano, a par da adoração das relíquias, peregrinações e festas populares.

A lenda de S. Cristóvão é, por isso, um belo retrato da época medieval “roubado” aos romances de cavalaria, recheada do idealismo de D. Quixote e, simultaneamente, da rude simplicidade de Sancho Pança.

Relativamente à Lenda de Santo Onofre, que foi contemporâneo do Imperador Constantino. Tendo ele vivido logo após as perseguições de Diocleciano, a lenda de Santo Onofre passa-se, portanto, já num ambiente político mais tolerante e, por consequência, mais favorável à disseminação ideológica inerente ao cristianismo.

Nascido na pequena cidade de Afrodite, nas margens do Nilo, na rota de peregrinação que vai desde o Delta e de Alexandria até Tebas, a família de Onofre é, contudo, de origem grega. O pai é proprietário de uma taberna de uma califa de dromedários que aluga aos viajantes.
O acesso ao conteúdo ideológico da nova seita vinda dos lados da Palestina, foi proporcionado por um escravo núbio que lhe contava a vida dos solitários/eremitas que, no deserto, atingiam a perfeição contemplativa ao alhearem-se por completo da vida material e dos prazeres terrenos. Deste modo encaravam aquilo que, então, entendiam como a aproximação com o divino.

Curiosamente, o escravo núbio, originário das províncias arábicas, transmite uma ideia de paraíso muito semelhante àquele que é idealizado pelos muçulmanos...mas é ele, segundo a versão queirosiana, o principal mentor de Onofre.

Ao fazer vinte anos, Onofre retira-se para o deserto da Tebaida, onde sofre as mais rigorosas privações em busca da tão almejada perfeição e aproximação com a divindade. No entanto, o principal obstáculo a esta bem-aventurança é o seu desmedido narcisismo, o seu orgulho, manifesto numa infinita vaidade e no desejo de fama ânsia ardente pela aquisição do poder de mudar o mundo; a Mulher é, também, encarada como o símbolo do Mal, uma distracção que o desvia da sua busca pela virtude suprema.

O desejo de omnisciência acaba, também, por tentá-lo, mas acaba por cair no sofisma, devido à extensa quantidade de falsos santos e mestres supostamente iluminados que visam apenas confundi-lo. Há, no entanto, no meio de todos estes supostos modelos conceptuais e religiosos, um conjunto de interrogações (vide página 190) que mostram todo o cepticismo religioso do Autor relativamente às origens divinas de Cristo, facto que, noutros tempos, colocaria directamente a obra no index.

São igualmente mencionadas as teorias dos cátaros, luciferinos e outros diabólicos, colocadas estrategicamente com o propósito de iludir ou confundir possíveis censores...ao colocá-los aparentemente a todos “no mesmo barco”. Só conseguirá, no entanto, iludir quem não terá lido A Relíquia ou O Crime do Padre Amaro.

Onofre acaba, afinal, por alcançar a virtude, uma vez que o seu sentido do dever, materializado pelo desejo de ajudar o Outro, acaba por se sobrepor à vaidade perfeccionista com a qual desejava conquistar o Paraíso...

Para conferir a nota de realismo impressa nas belíssimas descrições deste conto, Eça de Queirós socorre-se não só do deu impressionante saber histórico e conhecimento das civilizações antigas extraído das leituras dos autores clássicos latinos e gregos, mas sobretudo da memória visual e do contacto das gentes da Terra dos Faraós, durante a sua estadia no Egipto.

O calor, a aridez, os sons das terras do Norte de África junto ao Nilo ficaram indelevelmente registados para a posteridade, dotando a escrita do texto A Lenda de Sto. Onofre, de um requintado toque de exotismo pela mão de um Autor que tem o dom de colorir a sua escrita com belíssimos quadros visuais.

Para a bela estória de Frei Gil, Eça de Queirós inspirou-se na tranquila paisagem de Vouzela, onde o canto da calhandra por entre o arvoredo da paisagem serrana, com os seus silêncios e murmúrios, o aproximam do romântico Goethe. Eça vai buscar a Werther e ao Fausto de Thomas Mann a inspiração para esboçar um plano para delinear a estrutura da vida atribulada de um jovem de beleza e inteligência supremas , nascido no seio da aristocracia rural, que decide correr mundo, com o objectivo de desenvolver as suas capacidades intelectuais e aumentar o seu acervo de conhecimento.

Uma vida cheia de peripécias, onde não deixa de intervir a presença de um Mefistófeles e de uma figura feminina arcadiana a simbolizar a Tentação, o Desvio da Rota, uma mulher de beleza suprema, um misto de Eva com Helena de Tróia.

Aquele a quem, no final da sua existência, apelidam de S.Frei Gil, acaba por colocar o seu vastíssimo saber, acumulado ao longo de toda uma vida ao serviço do próximo, é o mais terreno dos santos de Eça de Queirós. A simpatia do Autor por este santo que, durante uma boa parte da sua vida foi um bon vivant, deve-se ao facto de este, na verdade, não ambicionar a santidade, de ser destituído do desejo, da vaidade narcísica da perfeição, substituída antes por uma insaciável curiosidade e sede de viver.

O texto é o mais bem conseguido, em termos literários, de toda a obra. Seria um belíssimo romance histórico com o criticismo de Cervantes e a magia da audaciosa Marion Zimmer Bradley que, no século vinte, conquistou legiões de leitores em todo o globo com As Brumas de Avalon. Um romance infelizmente inacabado.

Na primeira parte da narrativa o jovem fidalgo Gil Mendo trava conhecimento com o Diabo que o afasta do seu objectivo inicial – o estudo das artes médicas em Paris – ao convencê-lo a ingressar na Universidade das Artes Negras em Toledo...

Após muitas peripécias e satisfeitos os apetites relacionados com o Poder, a Sabedoria e o Amor, Gil cansa-se da vida terrena e decide, então, buscar o aperfeiçoamento espiritual...

Eça de Queirós deixa-nos, com a sua morte, na expectativa, com uma estória terminada exactamente no ponto de viragem (no momento em que conhece o estranho cavaleiro que o convence a trocar Paris por Toledo), onde a trama começa a ficar realmente interessante...

...Até que alguém, um dia, decida dar continuidade à rota marcada no mapa do fidalgo seguindo as pisadas do maior escritor português...

Esperemos que sim...


Cláudia de Sousa Dias

Monday, March 12, 2007

“A Imortalidade” de Milan Kundera (Dom Quixote)


Este é um livro extremamente difícil de comentar, uma vez que o Autor se propõe escrever um romance que não possa ser contado. Trata-se de uma narrativa não linear, onde não existe uma trama principal mas várias, que se cruzam no espaço e no tempo, onde o autor – que é, também uma personagem – intervém e interage com as outras personagens. Este é sobretudo um observador não participante a analisar detalhadamente os gestos e atitudes exteriores do Outro, como um antropólogo ou psicólogo behavourista, para depois procurar o fundamento, o motivo, que sustenta esse mesmo comportamento, seja ele de origem cultural, individual, ou despoletado pela interacção social com determinado grupo.

Não se trata, por isso, de um romance autobiográfico mas antes de uma recriação da construção ficcional a partir de um dado real – um rosto ou um gesto a ele associado. Por exemplo, um movimento executado por uma senhora que, já no limiar da velhice, desfere um jovial gesto de despedida ao jovem professor de ginástica, como se fosse uma adolescente.

O gesto como signo não verbal, tradutor da essência de sedução, de eterno feminino que nunca envelhece passa, incólume, através das modas que se sucedem ao longo das décadas. Desperta, no Autor, todo um conjunto de reflexões acerca da universalidade e intemporalidade da linguagem não verbal quando se trata de transmitir uma mensagem.


Mas se as personagens são fictícias – mesmo as históricas como Goethe, Hemingway ou Beethoven, uma vez que não se trata da biografia de nenhum deles, mas antes da recriação/reconstrução de alguns episódios reais ou inventados das suas vidas (ex: o encontro entre Goethe e Hemingway, já no plano da imortalidade, numa “vida” post-mortem ou da cena de sedução, protagonizada por Goethe e a pseudo-amante, Bettina Brentano).O mesmo nºão se passa com a narração dos métodos de observação do Autor, da construção da narrativa e das personagens.

Para Milan Kundera, o desejo de imortalidade, de permanecer na memória colectiva depois do desaparecimento do mundo terreno, condiciona todos os gestos da humanidade, desde o desejo de fazer-se notar, através da emissão de opiniões marcadas por um fanatismo militante, ao uso do ruído – visual ou auditivo – para chamar a atenção e fixar-se na memória dos demais. Algo que é contrariado pela sociedade que nos molda e nos obriga a submeter-nos às mesmas regras (ex: a censura alheia quando contrariamos a atitude da maioria), um paradoxo da sociedade onde vivemos a qual, ao defender a liberdade de expressão obriga, na realidade, à uniformidade de gestos e atitudes. Ao conformismo.

Na primeira parte do romance, Kundera apresenta-nos uma heroína cansada de viver, que encontra a felicidade e a paz na quietude, que procura desesperadamente no meio do ruído infernal da cidade. A paixão pelo silêncio, pela tranquilidade bucólica que encontramos nas frases de Goethe, Agnés herda-a do pai. Um tipo de quietude e silêncio que, nos nossos dias, só se encontra próximo da morte…

O ícone de beleza no seu estado puro está condensado na flor de miosótis (a cor da capa do livro), cujo azul intenso destoa ostensivamente no meio da poluição cinzento/antracite da Cidade.

O alheamento de Agnés e a sua falta de solidariedade provém da falta de um afecto verdadeiro e gerador da motivação para o prazer, do contacto social e da alegria. O desenvolvimento do Eu social. Agnés é racional, céptica, profissional e despojada. Mais tarde, verificar-se-á que não é apenas isso.

O Autor relaciona, também, o tema da imortalidade com a falta de privacidade em relação às figuras públicas e com a avidez do homem comum que suga vampiricamente a vida privada das celebridades, em busca de escândalos que dêem algum colorido às suas vidas, também elas cinzentas. Da mesma forma, e obedecendo ao mesmo desejo de imortalidade, o jornalismo, na óptica de Kundera, perdeu um pouco de vista a sua primitiva função de informar, para se tornar numa forma de exercício de poder, transformando-se, na maior parte dos casos, numa disputa ou num combate entre entrevistador e entrevistado.

A Imortalidade

A segunda parte do romance refere-se exclusivamente à vida privada e à dissecação daquilo que terá realmente acontecido entre Goethe e Bettina, num trabalho quase que de arqueólogo. O objectivo é, em primeiro lugar, desenterrar a verdade, limpá-la e deixá-la brilhar no esplendor da sua nudez para depois se encontrar um paralelismo com outra narrativa, já no tempo presente. É neste momento do romance que se observa a universalidade de gestos, dos comportamentos subjacentes às normas de conduta vigentes que se transmitem através dos séculos e que servem, muitas vezes, para mascarar emoções e esconder os impulsos e os verdadeiros motivos que estão por detrás de um gesto ou de uma frase (por exemplo, o quebrar de um par de óculos). E também o processo de atribuição de rótulos inadequados a uma dada figura pública que, ainda antes de se terem inventado os meios audiovisuais, já se colavam de forma indelével a uma dada personalidade distorcendo a sua imagem com um efeito de halo.

É também nesta fase do romance que Milan Kundera expõe a sua tipologia relativa aos diferentes tipos de imortalidade: pequena, grande, sublime, risível…e ainda a imortalidade associada aos homens de estado e, também, aquela que está directamente relacionada aos homens das artes, das letras e das ciências. Frisa, ainda, que a ideia de imortalidade está ligada à ideia da morte, de forma indissociável.

Voltando a Bettina Brentano, a suposta amante de Goethe, o seu comportamento imoderado e falta de decoro são alvo do impiedoso sarcasmo e refinadíssima ironia de Kundera, um espírito apolíneo, marcado por um elevado sentido de equilíbrio. O Autor diverte-se a caricaturar todo e qualquer tipo de exagero comportamental ou forma de expressão individual ou colectiva, elevando o seu sentido crítico à forma de Arte. Principalmente quando todo o exagero tem como objectivo o destaque do sujeito que o pratica, ou seja o desejo de permanecer na memória das pessoas. Numa palavra: a imortalidade. Para o Autor só o talento e a inteligência são, na verdade, o único atributo merecedor da imortalidade. O único motivo válido para permanecer na memória colectiva.

Porque a imortalidade sem talento torna-se ridícula. Como é o caso de Bettina. Que ainda por cima tenta colorir de ridículo a imortalidade de Goethe e de Beethoven, ao atribuir a um gesto sem importância um significado espúrio, distorcido das suas reais motivações e personalidade.

Kundera encontra afinidades com Goethe (o poeta do século XIX tem, na altura em que conhece Bettina, a mesma idade que Kundera ao escrever o romance), identificando-se com este, quando, numa das suas cartas a um amigo, apelida Bettina de “moscardo insuportável” que é a sua afirmação da total liberdade de expressão.

Bettina acaba por ser publicamente desmoralizada com a publicação da correspondência original de Goethe, que desmente inequivocamente o romance forjado por uma jovem sem talento nem inteligência que lhe valham um lugar entre os Imortais.

O amor pelo silêncio vem unir três intervenientes na estória: o próprio Kundera, que participa no romance na qualidade de narrador/observador, sem intervir no desenrolar dos acontecimentos (a não ser enquanto criador das personagem; de facto, pode-se dizer que o Autor está a desempenhar o papel de um deus que observa tudo de um lugar privilegiado, ou de um espectador de teatro que assiste ao desenrolar da cena, confortavelmente instalado no seu camarote; ou então de um antropólogo, observador não participante, que regista, classifica e interpreta os acontecimentos tentando abster-se de efectuar juízos de valor).

Ao analisar Bettina, Kundera identifica-a como uma precursora do jornalismo sensacionalista, cujo objectivo é o de achincalhar o aspecto privado e humano das figuras públicas susceptíveis de se tornarem imortais, de forma a conquistarem audiências e assim “saciarem o apetite das massas por episódios burlescos”. Mas não só. É preciso também que as massas se sintam mais próximas daqueles que se destacaram de entre os muitos milhões que nunca saíram do anonimato. Porque o lado humano e grotesco dos génios atenua a diferença. O móbil é sempre o mesmo. A imortalidade. Mesmo que conseguida à custa da desvalorização do inquestionável talento do Outro.

O mesmo se passa hoje em dia com a Comunicação Social, onde o jornalismo que, desde Oriana Fallaci, faz e desfaz reputações, constrói a imagem das figuras públicas. Para Milan Kundera a ideologia nos dias de hoje, foi substituída pela imagologia.

Este é um tema que é desenvolvido na terceira parte da obra intitulada A Luta

A Luta

Nesta terceira parte, o Autor desenvolve uma trama principal construída com as personagens fictícias do tempo presente – as duas irmãs, rivais desde a infância, Agnés e Laura.

Desde sempre, Laura tenta superar a irmã, imitando-a ao mesmo tempo que a corrige, com o objectivo de se tornar a favorita do pai. Uma tendência comportamental que transpõe, depois, para a vida adulta, ao disputar-lhe o marido, Paul. Kundera “veste-a” com muitos dos comportamentos de Bettina, com a diferença de que Laura é uma exímia chantagista emocional, ao passo que Bettina se destaca pela presunção e inconveniente ubiquidade.

Ambas se servem do mesmo objecto, um par de óculos, atrás dos quais escondem a sua falsa fragilidade. No entanto, as duas são diametralmente opostas na forma como encaram a sexualidade e de se relacionarem com o próprio corpo.

Por outro lado, a idolatria militante da lógica, do modernismo, da juventude e a preocupação excessiva em não parecer antiquado são factores que explicam as atitudes de algumas personagens – Paul – modeladas pelos valores colocados no pedestal ideológico do século XX.

Homo Sentimentalis

Na quarta parte deste A Imortalidade, Kundera estabelece a comparação entre o racionalismo cartesiano francês e o sentimentalismo leste europeu, explorando as respectivas causas sociais (vide pag 191) no inconsciente colectivo. Tudo isto a propósito da posição dos três autores, no início do século, relativamente ao caso Bettina-Goethe.

Todos eles são unânimes se não na defesa, pelo menos na simpatia por Bettina, esmagando a esposa, Christiane, que Goethe sempre protegeu. No seu entender, à luz da cultura judaico-cristã, a paixão e o amor conjugal são incompatíveis e inconciliáveis na mesma pessoa.

A partir dos comentários tecidos por estes três Autores, Kundera chega à distinção entre amor-sentimento e amor-relação. E conclui que o amor de Bettina é auto-suficiente. Não precisa de retribuição. Um amor que não precisa de aprofundar o conhecimento do Outro. De partilhar. Porque se alimenta de si próprio. Bettina está apaixonada pela ideia do amor e não pela pessoa em si. Trata-se da imitação de um sentimento que, segundo o Autor, degenera em histeria.
O autor explica que o posicionamento dos três escritores do início do século XX, baseando-se no conceito de romance que, na época, tinha grande impacto no público: o romance extraconjugal.

Na altura a instituição da Igreja proibia o sexo fora do casamento e sendo este mesmo casamento o casamento, a cena final do romance, o sexo a ele associado tirava a magia ao desenvolvimento da trama. Logo, Christiane estava em desvantagem em relação a Bettina. Logo, esta teria, para a época, o perfil de heroína romântica, infeliz e desprezada pelo homem que se refugia no casamento. Kundera vai ainda mais longe chegando, inclusive, a afirmar que, a história da literatura europeia, deixa de fora o casamento não para proteger os leitores do possível tédio matrimonial, mas para os protegerem do coito. É talvez por esta razão que, na mesma literatura europeia, o sexo (sempre em contexto extra-conjugal) vem quase sempre associado a algo de nefasto, acompanhado da tragédia, ou da ideia do Mal.

Esta fase do romance destina-se a desmascarar os detractores de Goethe e Beethoven, resgatá-los da lama do ridículo.

O Acaso

O papel do Acaso está relacionado com a história de Agnés, onde o Autor explora a forma como duas pessoas que, aparentemente, sem ter nada em comum, constroem uma relação baseada em falsas premissas, na esperança de o parceiro entrar no seu mundo, compreendê-lo e extasiar-se quando, na realidade, ambos têm uma compreensão e interpretação do meio ambiente completamente oposta e inconciliável. Tudo em nome da perseguição do ideal de amor. Uma planta espontânea que nasce do fruto do acaso. E de uma série de coincidências sucessivas.

A Imortalidade é um romance onde não há unidade de acção. O Autor quebra continuamente a intensidade dramática com as suas corrosivas reflexões pessoais que só enriquecem o romance, tornando-o apetecível. Um livro para ser saboreado frase a frase.

O Mostrador

O Relógio da Vida é, segundo a óptica de Kundera, marcado por um tema (o qual, para um psicólogo seria a personalidade base, estrutural) e pelas respectivas variações (a personalidade modal, adaptável consoante o binómio indivíduo/meio social), em analogia com as composições musicais e a evolução da personalidade e, também, com o percurso solar pelas constelações que correspondem às doze casas do zodíaco! O papel do fatalismo da astrologia na cultura europeia.

Um curioso aspecto nesta fase do romance é aquilo que começa por ser uma dissertação sobre as diferentes fases da vida erótica do ser humano que acaba por se transformar numa sequência de acasos que constróem um romance (tal como acontece em A Insustentável leveza do ser) fechando um ciclo tal como acontece com o mostrador do relógio e com o ano zodiacal.

A celebração

Esta última parte acaba por ser um epílogo, no qual o mistério que envolve a vida das personagens é desvendado, revelado ao leitor e, também, à maior parte das personagens. De facto, só uma delas fica a flutuar, entregue à sua bem-aventurada cegueira. A sua estultícia e decadência de espírito fazem com que os outros o olhem com uma piedade mesclada de desprezo. Os bem-aventurados contemplam, do alto das suas espreguiçadeiras, o esplendor etílico do espectáculo de um condenado ao inferno do ciúme e da infidelidade.

Nada é tão fútil como o apetite narcísico por uma imortalidade vazia de sentido.

Algo que só encontra fundamento na expressão máxima da Arte e do Belo.

O espírito helénico Milan Kundera, n’A Imortalidade.

Sublime.

Em todos sentidos.


Cláudia de Sousa Dias

Thursday, March 01, 2007

“Patagónia Express” de Luís Sepúlveda (ASA)


Patagónia Express é um caderno de apontamentos que relata as viagens do Autor durante o período de exílio – motivado pela incompatibilidade dos seus ideais com o regime de Pinochet – através das terras acidentadas e gélidas da Patagónia/ Terra do Fogo. Com alguns desvios da rota até ao Equador, Brasil, Bolívia e, a derradeira etapa, a soalheira Andaluzia, a terra dos seus antepassados.

Trata-se um conjunto de crónicas de viagens, que contêm uma cadeia de peripécias, alternadas com episódios de uma beleza poética a rivalizar com Allende ou García Márquez. Pequenas estórias que, como o próprio Autor afirma, “são como pão amassado, deixadas a fermentar, a levedar...” em cima da antiga mesa de padeiro que é o lugar onde, em cima do qual, normalmente, as redigia. Um caderno que foi, durante muitos anos, deixado na gaveta para...levedar, precisamente!

O nome de Patagónia Express, é apesar de nem todas as estórias se passarem na Patagónia, uma homenagem do Autor a “um caminho-de-ferro que, embora já não exista, continua a viajar na memória dos homens e mulheres da Patagónia”.

A primeira parte deste caderno intitula-se Apontamentos de uma viagem a lado nenhum e começa por fazer referência à infância e ao principal mentor do cronista: o Avô. Este toma a seu cargo a tarefa de lhe inculcar os ideais de pendor marxista que o tornam avesso à noção de propriedade e lhe fazem germinar na alma o repúdio pela Igreja e pela influência dos sacerdotes, num divertido e escatológico episódio de protesto.

O gosto pela literatura foi-lhe, também, incutido pelo Avô, com os romances de aventuras de Verne, Salgari e Stevenson.

Mas estes dois factores são nada mais, nada menos do que o passaporte ou, melhor dizendo, um bilhete só de ida para lugar nenhum, num regime político totalitário, baseado numa Ditadura militar como foi o caso do Chile após o golpe de estado que vitimou Salvador Allende. Ou seja, um Estado onde não há lugar para ideias libertárias e onde o pensamento crítico é uma ameaça latente porque incontrolável.

O avô é, sem margem para dúvidas, um romântico revoltado inspirado pelo socialismo utópico de Proudhon e Rousseau mas também pelo espírito anárquico que grassa a Europa nos finais do século XIX e inícios do século XX. O neto toma, por sua vez, como modelo os ideais de Che Guevara, factor que marca, então, “a hora de pagar um suplemento do bilhete para lado nenhum” ficando, a partir de então, rotulado de forma indelével, com o estereótipo de “comunista”.

A descrição dos anos passados na prisão chilena em muito pouco diferem das descrições de Mestre acerca dos “métodos de disciplina” da prisão cubana em A Rumba de Lázaro: os métodos de tortura são os mesmos assim como os motivos para justificar uma repressão ideológica – o pensamento crítico que ameaça colocar a nu as falhas do regime e os respectivos abusos de poder.
Curiosamente, Luís Sepúlveda empenha-se em mostrar os perigos do exercício da profissão de crítico literário num regime não democrático onde é fácil fazer inimigos entre aqueles que se julgam possuidores de um génio literário sem precedentes. Uma profissão de risco, sem dúvida.

À segunda parte, Sepúlveda dá o título de Apontamentos de uma viagem de ida relata um período de tempo durante o qual o estigma de exilado político é gerador de desconfiança por parte dos países que o recebem.

Um roteiro que passa pelo Panamá, Bolívia, Brasil, Argentina e Equador, ao longo do qual se observam os reveses da fortuna onde o tempo de miséria – que anda de mãos dadas com a solidariedade –, é periodicamente alternado com inesperados golpes de sorte que acabam por proporcionar uma apreciada bonança financeira. O cronista, jornalista, escritor e professor universitário vai coleccionando amigos de infortúnio que procuram tempos melhores.

A par do trabalho, a vida boémia aproxima-o, ainda mais, dos tempos da juventude de Jorge Amado e Gabriel García Márquez. A sua alegria e desenvoltura a dançar o tango despertam simpatia, paixões e a desconfiança das beatas e “senhoras bem”.

O tango simboliza um momento de convívio, boa disposição com que se combate a solidão das pampas. Um elemento cultural que não é somente exclusivo dos argentinos, é, também, partilhado com os chilenos.

Nesta parte, destaca-se o episódio referente à exploração financeira do pessoal docente no Equador e o da coleccionadora de pássaros – a magia da trágica (para os pássaros) estória da rica herdeira fascinada por pássaros exóticos, cuja solidão a aproximava do pássaro-touro (uma ave das florestas bolivianas cujo canto, semelhante ao mugir de um boi, afugenta todos os outros pássaros).


A terceira parte, Apontamentos de uma viagem de regresso é quase um diário de bordo através da Patagónia, pela costa, de barco, por terra, de combóio ou por ar de avião. Uma viagem que, ao longo de alguns troços, é uma autêntica prova de sobrevivência.

O isolamento é, em algumas regiões, de tal ordem que a comunicação e o abastecimento de produtos essenciais só pode ser feito por via aérea. Os regionalismos, o aspecto pitoresco da região e a hospitalidade das gentes locais, contrastam com a arrogância e a prepotência de alguns caciques da Terra do Fogo.

É nesta penúltima parte do romance/crónicas de viagens que Sepúlveda mostra a importância e o papel da efabulação, tanto na literatura como nas lendas, transmitidas através da tradição oral. O objectivo é colorir os relatos, de forma a torná-los mais emocionantes aos ouvidos daqueles que os escutam. A mentira é construída com o objectivo de provocar alegria ou hilariedade. “Nesta terra mentimos para ser felizes. Mas nenhum de nós confunde a mentira com o engano.” (sic).

É precisamente esta a fase deste romance/crónicas de viagens onde se aglutinam alguns dos mais belos episódios da obra tais como os da Enseada do Incesto ou a pungente estória de Panchito Barria e do seu golfinho. A ecologia, o amor e a revolta face ao domínio do deus do dinheiro são as bandeiras pelas quais Sepúlveda se bate enquanto cidadão do mundo.

Patagónia Express é, assim um comboio que transportava os ovelheiros da acidentada Terra do Fogo e que agora nos leva a fazer uma viagem virtual por quase toda a América do Sul sonho. Era um comboio que nunca cumpria horários e unia as terras destinadas às pastagens e as pampas, uma paisagem verde e castanha que se veste de um branco gélido no Inverno. Uma terra onde a escassez de frutas e legumes tornam o cancro no estômago numa doença quase endémica para as populações locais. Uma terra cujo isolamento permite que sejam facilmente perpetrados crimes contra a humanidade como o extermínio dos camponeses revoltosos que, em 1921, clamavam pela reforma agrária, mortos a mando dos grandes latifundiários…

E também como não referir a ironia do cientista que perde o Prémio Nobel por se refugiar numa povoação onde os olhos do mundo, não conseguem chegar para ficarem a par das suas descobertas? Sarcástico, o cientista lança o repto para os responsáveis governamentais das grandes potências industrializadas no sentido de deterem a poluição atmosférica uma vez que “os prémios são para as rainhas de beleza”…sem falar no piloto que sobrevoa as regiões mais remotas de toda a América do Sul, explorando os limites da selva amazónica. Um apaixonado pela vida selvagem, acerca do qual quase que podemos dizer que lhe corre sangue verde nas veias…Sepúlveda afirma, a dado momento, que tanto ele como o piloto trazem a Amazónia dentro de si, uma paixão que os faz mover o mundo. Algo que só vem confirmar o que já tínhamos depreendido com a leitura do romance O Velho que lia Romances de Amor.

Por último, à laia de epílogo, temos o Apontamento de Chegada, a parte final da viagem empreendida pelo Autor com o objectivo de ir em busca das suas próprias raízes: a procura dos seus parentes distantes, em terras de Andaluzia, de onde partiu o Avô, há muitas décadas atrás. Fecha-se o ciclo. A pista é encontrada em conversa informal, numa taberna, onde encontra o rasto da família.
É tempo de regressar e reencontrar o calor e a reconfortante sensação de se sentir, finalmente, em casa.

O merecido repouso de um guerreiro da utopia (felizmente que ainda os há), num final cheio de emoção.


Lindíssimo.


Cláudia de Sousa Dias