O Doente Inglês de Michael Ondaatje (Dom Quixote)
Michael Ondaatje nasceu no Sri Lanka a 12 de Setembro de 1943. Em 1954 foi viver para Inglaterra e, desde 1962, estabeleceu residência no Canadá onde é considerado um dos mais proeminentes escritores contemporâneos daquele país. Possui uma vasta obra que se reparte por vários géneros literários, sobretudo o conto e a poesia, mas é ao romance que deve a sua notoriedade. E foi precisamente O Doente Inglês que, após ter sido adaptado ao cinema por Anthony Minghella, o tornou mundialmente conhecido. O Doente Inglês ou The English Patient, foi vencedor do Booker Prize 1992 e, também, do Governor General’s Literary Award for Fiction no mesmo ano.
O Doente Inglês é uma obra de invulgar talento , escrita em meados dos anos 1990, isto é, durante o interregno das duas Guerras do Golfo. No entanto, ao invés de optar por um romance de propaganda ao Ocidente, Ondaatje recusa-se a esconder o peso da acção dos Países Aliados, na configuração das tensões geopolíticas que resultaram do desfecho da segunda Grande Guerra.
1. Contexto histórico e localização espacial: uma casa em ruínas a norte de Florença
A história passada na Vila de San Girolamo representa um microcosmos representativo do drama pelo qual estava a passar a Itália durante a retirada alemã na fase final da guerra. O território intensamente minado, tornava impossível as actividades diárias mais banais como cultivar a terra colher frutos das árvores, tirar água de um poço. Os próprios móveis das casas e instrumentos musicais encontravam-se armadilhados. Também as cidades se encontravam inabitáveis e com o património histórico e cultural gravemente danificado.
A fome grassa em Itália e, na villa San Girolamo, não é excepção, Hana nunca consegue saciar completamente a fome. Chega mesmo a deambular pela cidadezinha mais próxima, junto das padarias para sentir apenas o cheiro do pão recém-saído do forno.
1.1 A acção Principal
O romance desenvolve-se em dois tempos, não muito distantes entre si, e dois lugares diversos, ganhando sentido através do encaixe de duas narrativas paralelas. A narrativa principal desenrola-se lentamente mas já a aproxiamar-se o desfecho da guerra, logo após a retirada das forças alemãs do território italiano, o qual é, nesta fase, é passado a pente fino pelos Aliados, numa minuciosa operação de desminagem.
As personagens que de movimentam dentro da narrativa principal desenvolvem uma intensa e complexa rede de relações, condicionada por uma que se caracteriza pelo elevado risco que implica viver num território detalhada e perversamente semeado de bombas, cujo objectivo é exterminar indiscriminadamente civis e militares. O ritmo da acção é lento, pautado pelas sombras que deslizam nas paredes parcialmente destruídas, como se de um relógio de sol se tratasse. Os sentimentos vão-se entrelaçando entre as quatro personagens como trepadeiras, formando uma espécie de quadrado amoroso entre Hana e os três homens com quem a jovem convive no dia-a-dia.
Com o misterioso doente que no hospital diziam ser “inglês” Hana entabula uma relação de dever que se mistura com a compaixão pelo sofrimento do ex-piloto, ao qual compara a um Cristo. Hana vê nele um mártir, com o corpo quase totalmente destruído pelo fogo. À compaixão soma-se a admiração, pelo ao saber e pela vasta cultura que aquele insiste em partilhar com a jovem. Em troca, Hana lê-lhe os livros que, entretanto, apodrecem na biblioteca, exposta às intempéries. Dedica-lhe também, um amor filial, semelhante àquele que sentiria pelo pai, falecido entrtanto.
Relativamente a Caravaggio, o mutilado de guerra, amigo de família - um homem de cerca de quarenta anos que começa a perder a sua fulgurante beleza - Hana trata-o como a um primo, ou tio, pelo qual tivesse tido um dia uma paixoneta de adolescente. Transfere-lhe um pouco da compaixão dedicada ao seu doente acamado, pois as dores em provenientes da mutilação dos polegares aquando da tortura, sofrida as mãos da Gestapo, obrigam-no também, a depender de morfina.
Caravaggio nutre pela jovem uma espécie de amor platónico, que se consolida pela resistência de que dá provas durante a estadia na Villa.
A relação que nasce entre Hana e Kip, o engenheiro mecânico perito em minas, é de outra natureza. A atracção erótica vai-se manifestando com o convívio diário, é intensificada pela sensação de segurança e protecção que lhe proporciona não apenas o saber técnico como perito em minas mas, sobretudo, pela postura de Kip em relação à vida, o equilíbrio, a serenidade e o sangue frio e, também, uma invulgar capacidade de adaptação à mudança.
Kip é meticuloso mas delicado, não possui o menor resquício de vaidade, exibicionismo ou tendência para a "vanglória". O desapego de Kip provém da crença de que a morte não existe, só a transformação, o que lhe dá uma certa invulnerabilidade em situações face às quais a maior parte dos ocidentais ficariam dominados pelo terror ou pânico.
1.2 Os diálogos de Almásy, o Doente inglês, e as restantes personagens
Para Almásy, Hana é o seu elo de ligação com o exterior. Depende dela para tudo. A jovem é simultaneamente a filha que não teve, uma irmã e uma mãe. É, também, a ouvinte. Hana é o público diante da qual abre a porta do próprio passado, guiando-a através de um tortuoso labirinto de memórias. Hana torna-se umo pretexto o ex-piloto libertar o páthos da sua paixão por Catherine, que parece sair de um dos clássicos dramas gregos. A narração é catarse.
E assim chegamos à acção secundária, embutida dentro da acção principal. O catalisador desta acção dramática é um livro de Heródoto, do qual Almásy jamais se separa e que lhe serve de base para as suas investigações como cartógrafo do deserto norte-africano.
O referido livro começa por captar a atenção de Hana, sobretudo pelas anotações nas margens e folhas soltas, inseridas entre as páginas da obra, levando-a a espreitar a vida secreta do seu”doente inglês”. O mesmo livro tinha antes atraído, também a atenção de Katharine Clifford, de forma irresistível, deixando-a fascinada por uma lenda antiga onde se misturam paixão, traição e vingança.
Caravaggio também se interessa pelo passado de Almásy, cuja identidade permanece incógnita, para os restantes ocupantes da Villa, durante a maior parte do romance. Caravaggio sente-se, ainda, dentro do seu papel de espião, apesar de a guerra estar praticamente acabada. Não mede esforços para encontrar um culpado para a sua condição de mutilado de guerra. Assume, por isso, o papel de advogado de acusação, se não mesmo o de juiz. Recorre, inclusive, a métodos questionáveis, sobretudo se aplicados a um doente: uma espécie de "soro da verdade", fabricado à base de uma mistura entre morfina e álcool.
Kip é o único elemento masculino que vive na casa com quem o doente “inglês” encontra afinidades. Lazlo Almásy é, também, um perito em bombas e armamento, tornando-se extremamente útil a Kip por conhecer com detalhe os engenhos alemães e a melhor forma de os utilizar. Kip admira-lhe um quase inesgotável reservatório de conhecimentos e o estoicismo. Almásy, por sua vez, admira a discrição, a destreza e o desapego do jovem.
2. O clássico triângulo amoroso
Almásy, Katharine e Clifford formam um triângulo amoroso, construído segundo os moldes das tragédias clássicas. A narrativa secundária, de que faz parte a vida passada do piloto e geógrafo Lazlo Almásy, acaba por ser a parte da memória que o mantém agarrado à vida, após o acidente. O próprio narrador, através do olhar de Hana, dá a entender que toda a vitalidade do “doente inglês” se encontra concentrada no cérebro e a maior parte da actividade mental, voltada para o passado.
A forma como Almásy conhece os Clifford, é anterior à guerra. Quando se dá o primeiro encontro entre o trio, em pleno deserto, esta é, ainda, uma possibilidade que se vai tornando cada vez mais verosímil. Quando a guerra está eminente, os conhecimentos de Lazlo tornam-se uma preocupação para os países Aliados, que receiam que o inimigo venha a beneficiar dos seus conhecimentos.
Almásy desconhece as intenções de Clifford. Este cativa-o com a sua jovialidade e displicência de milionário excêntrico. Mas a forte atracção sexual que surge entrea Almásy e Katharine é quase imediata, embora de início Almásy não se aperceba. O estado de paixão só se activa através do uso da palavra: primeiro quando a ouve declamar um poema e depois de a ouvir ler um episódio do seu volume de Heródoto: a história do Rei Candaules e de uma rainha de fatal beleza.
A lenda assume um pendor marcadamente feminista, por ao expressar a raiva de uma mulher que se vê exposta e exibida como um objecto. Katharine identifica-se com a personagem e acaba por precipitar os acontecimentos, como se o episódio narrado pelo historiador funcionasse como uma profecia e exercesse sobre as personagens uma espécie de sortilégio.
A paixão entre ambosperece estr, no entanto, directamente ligada ao sofrimento. A Almásy porque o começa a consumir o ciúme; a Katharine porque não suporta a duplicidade a que a obriga a condição de amante. Os próprios encontros entre ambos chegam a assumir uma faceta patológica: Katharine manifesta comportamentos algo violentos com Lazlo, maltratando-o fisicamente, o que faz com que a relação adquira laivos de Sado-masoquismo. O próprio colega de equipa de Lazlo, Maddox, chega a comentar as contusões e escoriações de Almásy, ao que este responde com galhardia mesclada de fleuma britânica.
A história de Katharine e Lazlo desenvolve-se de forma ligeiramente diferente da do rei Candaules. É o marido ciumento quem desencadeia a tragédia, numa altura em que a mulher e o rival já não são amantes, porque não suporta saber-se suplantado.
3. A morte de Maddox. A guerra como barreira afectiva
Maddox, o melhor amigo de Almásy, desempenha o papel de amigo, confidente e conselheiro embora se possa pensar que a afeição por Almásy ultrapasse a esfera da amizade. Maddox ocupa uma posição discreta na trama, mas de suma importância, uma vez que exibe um desgosto que parece avolumar-se à medida que a história de Lazlo e Katharine se desenrola.
As circunstâncias em que se dá o suicídio de Maddox, já regressado a Inglaterra, durante um serviço religioso onde o sacerdote anglicano anuncia o início da guerra e aproveita para exortar a população a nela participar activamente, forma um dos episódios mais dramáticos do romance.
Neste romance Michael Ondaatje utilizando a beleza da escrita e a descrição do absurdo para sublinhar a forma irracional em como a guerra divide pessoas. Situações como a de Almásy e Maddox, Almásy e Katharine e, até, entre Hana e Kip são disso exemplo.
Os muros que se erguem durante a guerra parecem, inclusive, prolongar-se pela vida fora, muitas décadas depois do seu términus. De facto, as muralhas ideológicas erguidas depois da guerra colocaram o mundo sob tensão nas quase cinco décadas seguintes, agudizando-se com a situação no Médio Oriente, anos mais tarde, após a invasão da Faixa de Gaza por Israele com o barril de pólvora em que se transformaram as relações com países como o Irão, o Iraque e o Afeganistão.
O Doente Inglês foi escrito durante o interregno das duas guerras do Golfo Pérsico, nos anos 1990, podendo perfeitamente ler-se nas entrelinhas e pela atitude de Kip, o papel que tiveram os Aliados na formação das tensões geopolíticas que hoje se fazem sentir.
O que não se consegue explicar é a omissão no filme de Anthony Minghella da reacção de Kip ao lançamento das bombas como resultado do ataque a japonês a Pearl Harbour, optando antes por criar um final adocicado e pouco convincente para um filme que, apesar de tudo, conseguiu arrecadar o Óscar devido, muito provavelmente, à fotografia e ao excelente desempenho dos actores principais.
4. A escrita de Ondaatje
A escrita de Michael Ondaatje tem muito de poético. Trata-se aliás, como já foi mencionado, de um autor que conta, no seu curriculum, com vários volumes de poesia. Na prosa, as cenas retratadas que se revestem de um evidente teor poético, assemelham-se à descrição de quadros ou fotografias. Algo que facilita muito a adaptação ao cinema, pela composição de quadros ou planos detalhados, que parecem ajustar-se perfeitamente à objectiva de uma camaraman. As cenas descritas são como fragmentos de tempo, contextualizadas e explicadas pelos diálogos entre as diferentes personagens. Trata-se de uma escrita predominantemente visual e, em segunda instância, táctil e auditiva, como vemos na descrição do tilintar dos frascos de vidro do boticário que trata das horrendas queimaduras de Almásy.
O romance pretende demonstrar que deixar as convicções desfazerem algo que lhe é superior pode preservar algo como a cultura, a identidade e a civilização mas perde-se algo que é vital: a felicidade.
Cláudia de Sousa Dias