Oriundo de uma família aristocrática, Nicolai Gógól foi, durante muitos anos, funcionário público e, também, historiador e professor. A escrita de “O Nariz” insere-se na fase de maior consciência política da sua carreira literária. Trata-se de uma sátira onde o autor denuncia algumas contradições e falhas do sistema social assente no Imperialismo Russo e na máquina burocrática do Estado, ao ilustrar situações onde se faz notar a corrupção do funcionalismo público a vários níveis, os subornos, as chantagens e a censura.
O Autor, no entanto, após ver censurada a sua obra “Almas Mortas” é assolado por uma grave depressão, procurando refúgio no misticismo religioso. Os períodos depressivos acabam por tornar-se cada vez mais longos e condicionar-lhe fortemente a escrita. Por último, o Autor revestir-se-á de uma profunda religiosidade, observando rigorosos jejuns e penitências, colocando em risco a própria sobrevivência levando-o a sucumbir à morte, após um longo período de agonia e delírio.
Esta edição, da Assírio & Alvim, inclui o prefácio de Vladimir Nabokov, o qual destaca o apoio de Pushkin a Gógól, que lhe publica “O Nariz” na revista da qual era editor. Nabokov era da opinião de que este conto faria parte da “fase mais crítica e oposicionista do jovem Gógól em que a crítica e a sátira sociais suplantam o misticismo latente no Autor.”
Gógól tinha a perfeita noção do quanto era vigiado, um facto que, a opinião de Nabokov, se repercute na estrutura interna do conto, sendo notório que o Autor assume,não raro, uma atitude de autocensura, a qual enfatiza, paradoxalmete, a ironia das situações expostas, pautando-se por uma notória acidez no discurso.
Para o Autor de “Lolita”, este conto de Gógól oscila entre o trivial (o quotidiano das primeiras cenas ) e o absurdo (o passeio do nariz solitário pelas ruas da cidade). Trata-se de dois extremos do mesmo continuum a partir dos quais o Autor esboça a acção a acção através da técnica do contraponto, conferindo dinamismo à narrativa ao fazê-la oscilar entre a realidade e o imaginário, ou inverosímil, a que junta a sátira para realçar, de forma caricatural, a hipocrisia, a venalidade ou a mesquinhez das personagens, sobretudo nas cenas que descrevem o exercício da autoridade policial em situação de incontornável abuso de poder.
Pode-se considerar ainda Nicolai Gógól um precursor, tal como Lewis Carrol, do surrealismo na literatura, pelo cruzamento do plano onírico com a realidade.
Vladimir Nabokov explica o protagonismo atribuído por Gógól a esta parte da anatomia humana: “uma técnica literária, própria do humor bruto carnavalesco em geral e das piadas russas em particular (…). É preciso ter em conta que o nariz, por si só, desde sempre lhe pareceu algo cómico (aliás como a qualquer russo), algo à parte, não pertencendo bem ao seu proprietário, e ao mesmo tempo (aqui tenho de fazer uma concessão aos freudistas), algo de exclusiva e notoriamente viril”.
A presente edição inclui os episódios suprimidos pela Censura Imperial, aquando da sua primeira publicação, na revista dirigida por Pushkin.
O Conto – Estrutura e Personagens
Gógól começa por descrever a ocorrência de um facto insólito, no quotidiano de uma família humilde a viver na cidade, pessoas que vivem modestamente, numa casa relativamente confortável para os padrões da época, mas sem dúvida pobres. A casa é, na realidade o único indicador que o coloca acima do limiar da pobreza, uma vez que o orçamento doméstico não parece ser suficiente para se fazer uma vida desafogada. Ou uma refeição completa. Muito menos para uma despensa bem fornecida. A dieta da família é frugal: a contenção de despesas obriga os dois protagonistas a sacrificarem o estômago, tendo de optar entre beber café e comer pão com cebolas ao pequeno almoço.
Praskóvia Ossipovna e Ivan Iakovlevitch são pessoas honestas mas de carácter tempestuoso e rude. A carência também não ajuda a adoçar os gestos e as palavras. Algumas reacções de Ossipovna revestem-se de alguma agressividade que não deixam de ter o seu lado cómico, sobretudo no momento em que Iakovlevitc encontra um nariz humano num pão confeccionado pela mulher.
A discussão estala mas, nela, estão subjacentes os fantasmas do Medo e da Fome que afectam as massas populares e o descontentamento que irá abalar as estruturas daquele país, alguns anos mais tarde…
Iakovlevitch é um artífice judeu. Barbeiro. Gógól coloca em evidência o facto de as classes trabalhadoras russas recorrerem ao álcool para suprirem a falta de aquecimento e enfrentarem o rigoroso inverno russo. Uma dependência que nos é apresentada como um factor cultural, potenciado por condições climáticas, mas associado sobretudo a determinados estratos sociais. O Autor ironiza, também, com o preconceito generalizado que levava a sociedade de então a classificar os artífices plebeus como bêbados incorrigíveis, sendo que o álcool, grande aliado da preguiça, e não a pobreza explicava o desmazelo de um homem que tratava de aprimorar a toilette dos outros.
“Iván Iakovlevitch, como qualquer verdadeiro artífice russo, era um bêbado…”
(…)
“embora todos os dias rapasse os queixos dos outros , o dele tinha sempre a barba por fazer. A casaca de Ivan (…) era malhada; ou seja, era de cor preta, mas toda às listas amarelas e cinzentas; a gola, ensebada, e em vez de três botões, pendiam-lhe as linhas.”
Por outro lado, a manifesta antipatia que se estabelece entre o barbeiro e o Major Kovaliov, assessor de uma colégio de raparigas, deve-se à extrema vaidade e arrogância de um homem que julga ser dono do mundo e dos que nele habitam, no qual residem, ainda, restos de mentalidade feudal.
Kovaliov é um homem tão detestável para Iakovlevitch, a quem não suporta, sobretudo pela extrema vaidade exibida ao exigir o tratamento por “Major” – antiga função que desempenhou num cargo anterior. Um facto que acabará por despoletar, supostamente, o desejo secreto do barbeiro em arrancar-lhe o nariz, quase trincado por Iakovlevitch, ao aparecer-lhe, sem se saber como, no meio do pão. A antipatia entre ambas as personagens é evidente:
“Era grande cínico, Ivan Iakovlevitch, pois quando durante a rasoura, o assessor do colégio Kovaliov lhe observava: ‘As tuas mãos, Ivan Iakovlevitch, tresandam sempre!’
(…)
E Ivan Iakovlevitch, após uma pitada de rapé, ensaboava-lhe, por vingança, as faces e debaixo do Ariz e detrás da orelha, e debaixo do queixo, numa palavra, por todo o lado, onde lhe apetecia, ensaboava” (…).
O “Major” Kovaliov goza de uma confortável posição social, ao contrário do seu antagonista. É assessor de um colégio feminino e detentor de influência considerável na corte. Sabe fazer-se valer da sua posição na hierarquia social de forma a obter favores sexuais de jovens belas mas em situação socioeconómica vulnerável. Gosta de exibir o seu estaturto, apresentando vários anéis de sinete como insígnias de poder.
A descrição das suíças do major é feita, também, a pensar em dotá-lo de um aspecto a tender para o ridículo e para a vulgaridade:
“Tinha umas suíças das do género que ainda hoje é possível encontrar entre os agrimensores de província e de distrito, os arquitectos e os médicos militares e ainda entre os detentores de vários cargos policiais”.
Estas suíças de que fala o narrador estão associadas a uma determinada classe emergente, que atinge cargos de relativa importância mas não sabe exactamente como lidar com a mudança de estatuto social de que beneficiaram.
Assim, o Autor decidiu exagerar os traços normalmente associados a um dado tipo social de forma a punir, pelo uso do ridículo, uma categoria social a que estão associados determinados tipos de abusos. Escolhe, para tal, um personagem tão enfatuado que apetece mesmo dar-lhe uma lição, fazendo-o perder …“o nariz.”O nariz, que é apenas a tendência de apontar com aquela parte anatómica, para o céu ou para a terra, conforme o grau de autoconfiança, surge aqui como símbolo de estatuto social, de que o Major se vê subitamente privado. O nariz representa a sua vaidade masculina (tal como o pénis para os freudianos) e o aprumo, a forma como se mostra aos outros. Tal perda irá obrigar a personagem a uma demanda em busca do ego perdido. A perda do nariz e os esforços para o recuperar acabam por fazer vir ao de cima o carácter mais venal de Kovaliov.
O aspecto mais insólito desta estória de Gógól é o facto o nariz (ou a atitude) adquirir vida própria (agora entrando no plano onírico e simbólico) e tornar-se ele próprio uma personagem animada, gerando toda uma intriga palaciana à sua volta.
“O comissário recebeu Kovaliov bastante secamente e declarou que a hora após o almoço não era hora para instrução do processo, que a própria natureza estabelecera que após a refeição era de toda a conveniência repousar (…) que a um homem probo jamais arrancariam o nariz e que havia por esse mundo fora muitos majores que nem roupa interior decente tinham e a circularem por todo o género de locais depravação.”
Perante tal atitude, Kovaliov chega até a suspeitar de bruxaria…Até ao dia em que lhe anunciam ter encontrado o tão desejado nariz, colocando o suspeito Iván Iakovlevitch a ferros.
A história não fica por aqui. Perdida a imagem, é preciso que esta volte a aderir, que a antiga atitude volte a ter a credibilidade de outrora. E o que acontece é que precisamente o antigo “nariz” não adere à velha cara. Trata-se sem dúvida de uma metáfora: o nariz é a máscara social que não adere ao mesmo rosto ao qual está associado um passado, ou às palavras que não coincidem com as atitudes e por isso não são credíveis.
O saltar do plano real para o plano onírico e vice-versa é o truque utilizado pelo Autor para conferir ao conto alguma verosimilhança e, simultaneamente, lançar alguns virotes a determinadas categorias sociais, desmascarando as contradições a que se sujeita o ser humano durante ao estado de vigília.
Neste caso, o absurdo serve de bitola para por revelar as lacunas de um determinado sistema social e, ao mesmo tempo, para estimular o espírito crítico dos seus leitores.
Uma obra, de facto, temível…para quem tiver a consciência pesada.
Cláudia de Sousa Dias