“A Rainha da Canela” de Ayala Monteiro (Ideias e Rumos)
Ayala Monteiro nasceu em Angola, em 1957, foi jornalista, crítico literário, tradutor e editor. Frequentou o curso livre de Estudos Árabes na Universidade Nova de Lisboa. E, em 2005, publicou o primeiro romance A Rainha da Canela e, dois anos depois, Os mensageiros de Lúcifer, um segundo romance. Para A Rainha da Canela, Ayala Monteiro criou a figura fantasmal e diáfana da cadela Diana, à qual atribui o papel de consciência crítica da sociedade cortesã à época do reinado de Dom João II. A cadela, que se senta como uma espécie de guardiã aos pés do monarca, assemelha-se à figura inspiradora da gazela que acompanhava o general romano Quinto Sertório, no século I A.C. durante a campanha na Península Ibérica e nas escaramuças com Viriato. Tanto a corça branca de Sertório como a cadela esguia de Dom João II acabam por ter o mesmo fim trágico. No romance de que aqui tratamos, Diana é uma narradora que pensa como uma mulher vinda de um outro continente, de um mundo exterior ao das intrigas da Corte onde pulula a hipocrisia e a bajulação.
Diana, cobiçada pela beleza e postura atenta é, várias vezes oferecida, passando por vários donos, que é um recurso do Autor para justificar a mudança de cenário no romance, tornando ao mesmo tempo possível a observação directa, a tempo inteiro, de várias personagens que intervém na trama: desde a lendária rainha de origem mouro-granadina, descrita como uma figura retirada de um conto de fadas ou das lendas das Mil e uma Noites, a qual se refugia na Índia para escapar à perseguição dos Reis Católicos. Esta mulher fora do comum transforma-se numa figura de especial importância no comércio das especiarias, vindas do Oriente, e de outras substâncias, indispensáveis ao fabrico de perfumes. Esta figura feminina adquirindo adquirire não só uma invulgar posição de destaque para uma mulher na época como acumula uma vultuosa fortuna, semelhante à dos antigos sátrapas orientais, ao ficar dona de um entreposto comercial de especiarias e especializar-se na confecção de perfumes e iguarias à base de canela.
Na verdade, Diana começa por ser a cadela favorita de Dom João Segundo mas não se aguenta muito tempo na corte onde o comportamento individual daqueles que se destacam é sobretudo marcado pela maledicência e pela violência contra os seres mais frágeis. É, posto isto, cedida a Dom Julião César Lopo acompanhando, depois, Dom Afonso de Albuquerque, no seu vice-reinado à Índia onde, depois, conhece a “Rainha da canela” e em cuja corte é feliz usufruindo finalmente da merecida tranquilidade, como se estivesse no jardim das Hespérides.
O Estilo Cortês
A linguagem utilizada por Ayala Monteiro abunda em sonoridades arcaicas, resultando num misto de cerimonial cortesão, a que se junta a rudeza do calão dos marinheiros e dos homens de armas. Reproduz, no entanto, um ambiente social de extrema violência, exercida sobre os outros povos, sobre as mulheres e mesmo sobre os animais domésticos, tratados muitas vezes com requintes de crueldade. A posição de Diana é, por natureza, especialmente vulnerável já que o canídeo é, neste caso e à luz da cultura da época, visto como uma espécie de servo do dono, dependendo do humor ou da benevolência do mesmo. Mas, neste caso, Diana é sobretudo alvo da falta de respeito, ainda que dissimulada, das visitas ou dos rivais dos respectivos donos, algo a que o Autor dá especial ênfase, através da linguagem, que chega a ser chocante, pelo conteúdo agressivo que lhe está subjacente. Ayala Monteiro possui um sentido estético patente na sua escrita literária, algo elaborada, a descair para o erudito mas de fácil leitura, embora abusando um pouco dos adágios e provérbios. Para mais, o Autor recorre frequentemente a fórmulas cerimoniais e construções frásicas típicas do século XV e XVI e, por vezes, ao uso do castelhano para melhor retratar a época, acentuando o contraste entre o comportamento individual do cortesão quando dirigido ao Rei e o comportamento do mesmo inter pares, denunciando o grau de hipocrisia das atitudes de uma sociedade que centra a acção na guerra e no culto da aparência motivado por um cristianismo com objectivos mais materialistas do que altruístas.
A consciência crítica de Diana
O apurado sentido crítico de um ser mudo, com sérias limitações no que toca à própria defesa, já que se trata de um ser que é sempre propriedade de alguém, torna-a o ente ideal para olhar a sociedade de então de um ponto de vista crítico, porque alheia aos interesses materiais relacionados com o poder.
Diana, sendo um canídeo, tem além dos sentidos extremamente apurados, como é o caso do olfacto e do ouvido, uma capacidade muito superior à dos humanos e de identificar características individuais que os humanos nem sonham. A isto junta-se a capacidade de interpretar as informações sensoriais que recebe de forma muito semelhante à dos seres humanos, o que lhe amplia de forma exponencial a lucidez de julgamento. O único inconveniente é não ser muitas vezes, total ou parcialmente, compreendida pelos humanos, mesmo quando a amam… Pode-se mesmo dizer que possui qualidades típicas de um ente sobrenatural, de natureza angélica, uma marca inequívoca de realismo mágico, senão mesmo de surrealismo, na obra.
Diana é uma cadela culta, se não mesmo erudita, fazendo lembrar a voz da narradora de um conto de Luísa Monteiro em “As Novas Bruxas do Ave” ou mesmo de Virginia Woolf. Diana sabe ler (silenciosamente), interpreta textos, palavras, gestos e até pensamentos. Diana chega ao ponto de identificar que, também na Índia tal como na Europa, se cometem atrocidades em nome de Deus, denunciando a maturidade do próprio pensamento crítico, não deixando, inclusive, de sublinhar alguns aspectos positivos da colonização portuguesa, como a proibição do ritual sati e a criação de uma bolsa de apoio a crianças pobres, extinta logo após o falecimento de Dom Afonso de Albuquerque.
Os aspectos negativos, apontados por Diana, são no entanto muito mais numerosos: desde os elevados encargos com que os Portugueses tributavam a população local, o atraso nos pagamentos, o problema crónico do défice nas contas públicas – cujo fantasma assombra o Estado já desde o reinado de Dom Pedro I - , Diana apercebe-se de uma multiplicidade de factores que contribuem para que Portugal se volte para outros continentes. A tudo isto junta-se, ainda, o incomensurável desvio de verbas e públicas para bolsos privados, deixando o Estado numa situação de penúria que o leva a procurar financiamento além-fronteiras.
Outro aspecto negativo da colonização portuguesa prende-se, nesta visão de Ayala Monteiro projectada em Diana, está relacionado com o choque de mentalidades, que se traduz numa forte repressão sexual. Mais ainda, quando se trata de homossexualidade, já que a educação lusa, sofreria ainda durante vários séculos, fortes constrangimentos culturais do que toca à orientação da sexualidade; à época, a homossexualidade era tão mal vista quanto um casamento baseado exclusivamente na atracção erótica, sobretudo entre etnias diferentes, os quais só poderiam ser justificados, depois, pela cristianização dos respectivos descendentes.
O final vai um pouco ao encontro do início do romance, fazendo da trama de A Rainha da Canela” uma narrativa de evolução circular, em consideração à questão da violência, dirigida quer às mulheres quer aos animais, expressa tanto na linguagem como nos actos perpetrados. No entanto, os últimos parágrafos deixam no ar uma certa beleza poética, quase a atingir o sublime, quando a heroína se volatiliza, da mesma forma que o perfume da canela, fazendo deste romance histórico um pouco o espelho da actualidade, mas sem mascarar a História com falsos altruísmos…
Cláudia de Sousa Dias