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Bibliomaníaca e melómana. O resto terão de descobrir por vocês!

Wednesday, February 29, 2012

“N.” de Ernesto Ferrero (Teorema)








Ernesto Ferrero é autor de vários romances , biografias ensaio e teatro. É, também, tradutor da obra de Gustave Flaubert  e Céline, para a língua italiana. Com “N.” recebeu o Prémio Strega 2000, uma das maiores distinções literárias daquele país.

A obra de que aqui tratamos é um romance que se assemelha com características biográficas, acerca de Napoleão Bonaparte e relativo ao período de trezentos dias de exílio, na ilha de Elba.
O Autor é dono de uma escrita pautada por um discurso marcadamente diarístico, narrado pelo bibliotecário local, Martino Acquabona, de origem aristocrática e homem de saber e cultura invulgar.
A obra divide-se em capítulos, a descrever a lenta evolução dos dias que escorrem ao ritmo da insularidade local, porto de chegada e partida, quer dos ilhéus exilados quer dos estrangeiros, invasores. O porto é, assim, a principal fonte de obtenção de notícias para a Ilha e o único ponto de contacto com o exterior. Os movimentos portuários implicam sempre, de alguma forma, uma mudança na vida dos locais, marcando sempre, num ou noutro aspecto o término de um ciclo, seja para alguém em particular, seja para a população ou parte dela. À lentidão das horas que passam de forma pachorrenta nos intervalos do horário do tráfego portuário, está sempre presente o tédio e a indignação de exilados e locais, face à imposição a partir da capital, de um soberano que será a partir de então o Governador Local e cuja megalomania foi responsável pelo dizimar de toda uma geração de jovens rapazes e trabalhadores úteis.
O romance incide todo ele no exílio de Napoleão e sua corte em Elba durante os nove meses que precedem o seu desterro para Santa Helena, mais o epílogo que relata o desfecho narrado pelo sobrinho do protagonista.

Após a restauração da monarquia pelos Bourbon e a vitória de Nelson em Waterloo, Napoleão e a sua comitiva formada por generais, cortesãos, família e amigos próximos de lealdade férrea, continuam a ser uma ameaça para os vencedores: a “águia” está inquieta no seu ninho e demasiado próxima da Europa para ser inofensiva.

Martino Acquabona é o narrador e protagonista, uma personagem ficcional obcecada pela figura do mítico general. Tem o cargo de bibliotecário na Ilha, nomeado pelo próprio N., abreviatura de que se serve para despachar mais rapidamente as questões burocráticas, e que o narrador utiliza para se lhe referir no diário até mesmo para sua protecção pessoal: o mesmo diário que contém revelações algo embaraçosas para a personagem por ele biografada. Acquabona é oriundo de uma família nobre mas empobrecida e senhor de invulgar erudição, a qual também é secretamente invejada pelo general.
Na óptica deste narrador de invulgar talento literário, a comitiva de Napoleão chega à Ilha e instala-se arrogantemente, ocupando edifícios públicos ou expulsando algumas famílias ilustres das suas propriedades, pretendendo compensá-las mediante avultadas prestações pecuniárias mensais. Poderia, à primeira vista parecer um negócio vantajoso para estas famílias, mas na realidade trata-se de expropriações, já que não são apresentadas alternativas aos proprietários. Os ocupantes escolhem as melhores casas da região, pagando o respectivo aluguer, mas trata-se de uma situação que, dadas as circunstâncias, não deixa de ser humilhante para os respectivos donos. Quanto aos edifícios públicos, trata-se de ocupação pura e simples. Os membros da corte de Napoleão tornam-se os novos senhores da ilha, sempre vigiados de longe e pelo canto do olho pelos locais, que enganam o tédio a comentar os mais ínfimos detalhes do quotidiano do ex-Imperador e dos que o rodeiam, incluindo as ordens que dá, os impostos recém-criados, as mudanças de humor, as relações com amigos, inimigos, família, amantes. Tudo temperado com a proporção dada pelo rumor a apimentar a informação original. Nada escapa ao olhar de lince dos insulares, habituados a ver chegar e partir forasteiros, sabendo de antemão que, também para estes, um dia, será a vez de partir.
Mas à medida que avançamos nos capítulos, apercebemo-nos de que a relação obsessiva de amor-ódio que se estabelece entre o bibliotecário e o ex-general se agudiza gravemente com a chegada da bela e frívola Baronesa di Calabria…A partir de então, deixa de haver paz no dia-a-dia de Acquabona, incapaz de fazer frente à ordens e caprichos de N. Este continua a agir como se fosse ainda o Imperador, de facto é-o, embora só naquela Ilha, sentindo-se dono e senhor absoluto da vontade dos homens que aí habitam. E das respectivas mulheres.


Estrutura e Estilo no romance de Ferrero

A estrutura do romance de que aqui tratamos está directamente ligada ao tempo da acção, uma vez que os capítulos estão divididos em meses.
O arranque da acção dá-se com o prólogo, o qual consiste na descrição de um sonho de Acquabona em que este assassina o Imperador. O bibliotecário atribui a esta descrição o título de Reverie em forma de prólogo e cujo conteúdo consiste no verdadeiro desejo do protagonista, desejo esse que nunca chega a realizar. Ao longo da obra, o leitor, debate-se com o desejo de descobrir o motivo que despoleta tamanho ódio, sendo esta curiosidade, em grande parte, a mola que impulsiona a leitura da obra. Mas não só. À medida que se tenta decifrar as motivações para tão violenta reacção, deparamo-nos com uma estranha ambivalência de emoções por parte de Acquabona que vão desde um ódio profundo pela prepotência dos actos do ex-general, até a uma igualmente profunda admiração pelo respectivo génio e capacidade de planeamento. Mas tirando a força que assenta numa vontade de ferro e numa invulgar capacidade de cálculo e previsão, Martino Acquabona considera o novo Governador da Ilha um homem inferior, ao qual o desejo ilimitado de poder conseguiu exterminar por completo qualquer sentido de ética.
No discurso de Acquabona são transparecem as medidas tomadas pelo novo governo local, imbuídas de um estilo de liderança inequivocamente tirânico, apesar de disfarçadas com um manto de racionalidade – o despotismo, mascarado de moral, a avidez e ganância pessoais travestidas de acções direccionadas para as necessidades de desenvolvimento local, que se traduzem em avultados desvios de verbas públicas para os cofres particulares do governador e seus amigos.
A conclusão, à laia de epílogo, é-nos dada pela reflexão de Telémaco – um mês depois do desenrolar dos acontecimentos, isto é, escrita já num tempo fora do tempo da estória -, o sobrinho de Acquabona, herdeiro do Tio Martino.


A Mulher como o pomo da discórdia

Uma palavra para a personagem da Baronesa, a qual não se limita a exercer o sortilégio da própria beleza como a típica mulher fatal: a sedução advém-lhe não só dos atributos físicos, do requinte e da erudição, mas sobretudo de um desejo incomensurável de “ser livre”, dona do próprio destino. O caminho percorrido pela Baronesa revela a profunda ironia com que o  Ernesto Ferrero revestiu o destino desta personagem, cujo maior desejo acaba por ser completamente mutilado ao procurar a libertação, submetendo-se à tirania do Governador.

O ritmo com que Ernesto Ferrero dota o discurso do bibliotecário Acquabona assemelha-se a uma valsa lenta: reflexivo, cheio de momentos de pausa, descritivo mas sem floreados. Não deixa, no entanto, de exprimir emoções turbulentas, fruto de um vincado sentido crítico, que lhe é dado por um misto de erudição clássica e saber científico, conhecendo em profundidade a maior parte das obras da biblioteca e de uma certa impaciência despoletada pela atitude prepotente do invasor. À mistura do racionalismo que lhe vem do conhecimento científico e da extensa cultura livresca associada à efervescência emotiva, dirigida ao ex-Imperador, ainda mais inflamada pela ardente paixão que nutre pela Baronesa, é cozinhado ao longo da trama um delicioso caldo de venenos que torna a leitura da obra irresistível. Como contraponto, o clima ameno e algo anestesianteda ilha do Mediterrâneo.

N. é assim um livro escrito para ser lido ao sabor dos dias insulares, em férias ritmadas pelo movimento de navios que acostem e partam indiferentes ao tédio das horas…


Cláudia de Sousa Dias
31.05.2011




Monday, February 20, 2012

“Histórias da Terra e do Mar” de Sophia de Melo Breyner Andresen (Figueirinhas)








Cinco pequenas estórias, a ilustrar a beleza intemporal dos espaços habitados por seres humanos, enquanto espelhos das almas que os habitam. Uma mão cheia de contos, em cujo âmago extraímos o desejo de liberdade de pensamento, liberdade de expressão e liberdade de escolha.

1. A Escolha: História da Gata Borralheira

A primeira estória intitula-se, História da Gata Borralheira, debruça-se sobre a temática da Escolha, por implicar uma atitude, uma tomada de decisão que vai determinar o desenvolvimento de um personalidade, uma estrada a percorrer. O local onde decorre a acção é uma mansão de estilo apalaçado, um cenário algo hollywoodesco ou cinematográfico, mas no qual a atmosfera do luxo é envolvida pelo mistério da Noite que surge, perfumada, pelos aromas sedutores do jardim e pelo olhar vigilante da Lua, a dar um aspecto irreal ao quadro, envolvendo a casa que ocupa uma posição central, com uma espécie de halo prateado. Esta mesma luminosidade exerce sobre a protagonista, que observa a cena, partindo do exterior para o interior, uma misteriosa e inexplicável atracção.

A trama consiste numa reinvenção do conto tradicional da Cinderella ou A gata Borralheira (Versão de Perrault), mas adaptada aos anos 1940 e 1950 e com um final absolutamente inesperado, que nos é mostrado no epílogo.

A jovem protagonista, oriunda de uma família empobrecida, mas em tempos, abastada, tem um mundo de sonho diante de si, mas receia a discriminação, devido à sua condição socio-económica. Subitamente, surge-lhe e oportunidade de fugir às restrições, mas a oferta é-lhe apresentada como uma espécie de presente envenenado. Esta Cinderella conta com alguns aliados importantes e inesperados mas há a tendência para subestimá-los. A Lúcia – é assim que se chama esta falsa Gata Borralheira – são-lhe apresentadas duas formas de conseguir o que deseja: uma delas é aceitar a “ajuda” da fada madrinha; a outra é resistir, ficar ao lado daqueles que ama e conseguir os seus objectivos através de um longo, árduo e tortuoso caminho. Mas o desejo mais profundo de Lúcia é somente o reconhecimento e prestígio social e isso implica que a qualquer das soluções que se lhe apresentam estão associados ganhos e perdas, pelo que a decisão não se apresenta nada fácil.

Lúcia conta com dois fortes aliados que lhe oferecem a amizade desinteressada e o amor: a jovem do vestido cor-de-rosa – atenta e, simultaneamente, desafiadora, que não hesita em tornar-se sua amiga, apesar de ser notório que o vestido que Lúcia enverga não ter sido feito nem para o seu corpo nem par os seus gostos; e um jovem misterioso, que a convida para dançar, por lhe parecer que Lúcia não é uma mulher superficial – Lúcia olha para as estrelas e não para os vestidos das outras mulheres. Mas engana-se na avaliação dos verdadeiros motivos que estão por detrás destas atitudes exteriores.

O papel da madrinha, nesta versão atípica da Cinderella de Sophia de Mello Breyner, é o papel de uma falsa aliada, uma fada cujas atitudes mais a aproximam do papel de bruxa, uma vez que a sua ajuda tem um preço: Lúcia deve abandonar a casa dos pais, onde é feliz, mas de onde dificilmente conseguiria emergir da actual situação social, inserida numa família, outrora rica e agora remediada, mas sem dinheiro para luxos ou extravagâncias. A mesma tia, manipuladora, utiliza um método constrangedor para a pressionar a tomar a decisão que lhe convém: podendo ter-lhe proporcionado um vestido adequado à ocasião, limita-se a adaptar ao corpo de Lúcia, um vestido velho que não a favorece. Da mesma forma, Lúcia não possui os acessórios adequados. Assim, o vestido e a festa são apresentados a Lúcia como uma armadilha, onde se sente desconfortável, como um peixe fora de água. Lúcia é excluída pela aparência, melhor dizendo, pela situação sócio-económica, que é denunciada pelo traje e ela falta de à-vontade.

A estória desenvolve-se ao ritmo de valsa lenta, com frequentes momentos de pausa. O narrador desempenha o papel de observador, situando-se fora da cena propriamente dita, sem intervir no curso da estória, agindo como se fosse a própria Lua a observar a festa e os movimentos dos convidados, através das janelas que dão para o jardim.

Elementos nocturnos na narrativa: a escuridão, interrompida pela luminosidade lunar

A noite, assim como a sedução da luminosidade pálida da Lua, transmitem ao leitor uma sensação de irrealidade, fazendo-o olhar para as personagens que se movimentam na festa como se assistisse a um filme. Esta luminosidade prateada, quase espectral, envolve o cenário exterior da casa, começando por nos apresentar inicialmente um plano panorâmico, que se vai aproximando, até entrar pelas portas e janelas, permitindo-nos observar o que se passa no interior.

Como uma rapariga descalça, a noite caminha, leve e lenta sobre o jardim.

A noite caminha pelo jardim até se abeirar da entrada da casa. Tal como Lúcia. Apenas a Noite, ao contrário da protagonista está descalça, ao passo que Lúcia calça uns sapatos velhos, que não são os seus, desconfortáveis e que nada têm a ver com a indumentária (os sapatos são azuis e o vestido, lilás). O facto de a noite estar “Como uma rapariga descalça” que caminha pelo relvado implica a ausência de constrangimentos pessoais - há, aqui, uma projecção do olhar do narrador no elemento da noite, na Lua e no cenário que rodeia a casa. A sensação de estar descalça é o extremo oposto do estado de opressão em que se encontra Lúcia: é o prazer da ausência de constrangimentos sociais, da liberdade do conforto absoluto. Por outro lado, no jardim, ao contrário do interior da casa onde domina uma luminosidade feérica e artificial, mas que obriga à sujeição das normas sociais impostas pelos seus proprietários, naquele jardim, a dualidade entre a luz natural e as sombras convida ao sonho, à imaginação e à fantasia. Isto é, fora do interior da casa, a liberdade de pensamento e acção não tem limites. Lá “dentro” ninguém pode entrar com os sapatos desadequados e, muito menos, descalça.

A Escolha de Lúcia

Apesar da desvantagem inicial, Lúcia consegue fazer amigos, independentemente da sua situação económica, sendo estes pessoas não muito convencionais. No entanto, ignora-os. Os dois estranhos que se aproximam de Lúcia durante a festa têm os olhos fixos na Lua e no jardim. Ambos olham para além das aparências, olham para Lúcia, tal como é na realidade. Esta deseja, no entanto, conquistar, submeter, aqueles que a desprezam. Deseja o poder. Negligência o Amor e a Amizade sincera. E a maneira mais óbvia é, para si, de atrair o que quer é através do deslumbramento, usando o luxo como arma de sedução. Lúcia deseja tornar-se igual aos outros convidados. Igual não. Superior. Decide optar pela tia. Vende a alma, que a amiga do vestido cor-de-rosa lhe aconselhara a manter “livre” e sujeita-se ao despotismo da sua “benfeitora”. Ao escolher viver com a fada-bruxa-madrinha, Lúcia exerce a sua liberdade de escolha pela última vez. E escolhe o caminho mais fácil para atingir o objectivo: a escalada do poder que confere o dinheiro. O corolário do seu triunfo é atingido cerca de duas décadas mais tarde, quando exibe uns opulentos sapatos, recobertos de diamantes, que libertam centelhas multicores, deslumbram as outras mulheres, despertam a inveja, causam o espanto, pelo insólito cúmulo da extravagância. E é na noite deste baile que se consumará o seu destino e Lúcia pagará, finalmente, o preço da sua escolha.



2. O Silêncio

Na segunda estória, a Autora começa por apresentar a rotina da lida de casa numa família simples, cujas origens socio-económicas são denunciadas pela austera decoração do espaço interior daquele pequeno apartamento. Ao entrarmos na casa da protagonista, pela voz e olhar do narrador não participante e omnisciente, começamos por notar a impecável assepsia do ambiente, patente na limpeza imaculada das divisões, da cozinha em particular, à medida que acompanhamos o ritual da lavagem da louça.

A primeira parte da história concentra-se na descrição do interior da casa, perfeitamente limpo. As sensações visuais são as primeiras a assaltar-nos.

Só depois nos apercebemos do silêncio que acompanha a solidão da mulher que lava a loiça. Um silêncio, confortável no início, mas omnipresente, sobretudo ao final do dia, a sublinhar a ideia de ordem, segurança, limpeza. Um silêncio higiénico.

Na segunda parte do conto, dá-se uma ruptura: o absoluto silêncio nocturno é subitamente quebrado por um grito.

Um longo grito agudo, desmedido. Um grito que atravessava as paredes, as portas, a sala, os ramos de cedro.

A partir daquele momento, a heroína lavadora de loiça, Joana, sente o medo abater-se sobre ela como uma avalanche, despoletada pelo som da voz abafada que vai invadindo a noite, destruindo o silêncio. Quando cessa o grito, nada é como antes.

Era uma voz de mulher. Uma voz nua, desgarrada, solitária. Uma voz que, de grito em grito, se ia deformando, desfigurando, até ficar transformada em uivo. Uivo rouco e cego.

A impressionante descrição deste grito, na qual transparecem todas as nuances do desespero nele contido, faz lembrar a imagem do quadro O Grito de Münsch, a mais impressionante expressão de reacção ao horror de um holocausto.

Ao prosseguirmos a leitura, compreendemos. A mulher desconhecida grita diante dos muros da prisão, do lado oposto da rua onde mora Joana. A prisão fica mesmo diante da janela.

Percebemos que a mulher grita contra a opressão, o silêncio, imposto pela censura. A mulher diante da prisão “gritava contra o silêncio”. E contra a aparente perfeição que esconde o lixo, causado pela repressão por detrás de uma “higiene” politica.

3. A casa do mar

A estória passa-se, mais uma vez, no interior de uma casa. Neste conto, não há personagens humanas. Melhor dizendo, há, mas estão ausentes. Mas percebe-se, que a casa é habitada. Todas as divisões transpiram vida.

O mar é um tema recorrente, tanto na prosa como na poesia, de Sophia de Mello Breyner. E neste volume há duas estórias onde se faz sentir a presença do mar. Mas A Casa do Mar é única, de todas elas, onde a presença humana não intervém. Não de forma directa. No entanto, as marcas da acção humana estão presentes em todas as divisões, denunciando a vida e o amor que é colocado em todos os objectos, adivinhados.

A Autora socorre-se do léxico marítimo, como convém à descrição de uma casa situada numa aldeia de pescadores, onde se encaixa esta casa de praia, envolvida pela luz estival que é ampliada pelo reflexo da água, pelo ruído do mar, pelos cheiros marítimos e até, pelos vestígios da actividade piscatória dos habitantes locais, ao longo de todo o ano.

Mas ao descrever o interior da casa temos, por vezes, a sensação de estarmos diante de um quadro de Magritte, com as suas estranhas sobreposições e alegorias multiplicadas pelo reflexo do mar nos espelhos, que mostram a vista enviesada das janelas. Note-se que quase todas as divisões exibem um espelho a servir de multiplicador e ampliador de perspectiva. Outras vezes, estamos como que diante de uma natureza morta, como é o caso da descrição da mesa da cozinha e dos alimentos e utensílios lá depositados, quase uma projecção de uma natureza-morta como a do quadro da sala de jantar.

A descrição do jardim desta casa confere destaque aos elementos que sublinham a aliteração em V e em S, sugerindo os sons do vento e do mar após, a rebentação das ondas.

Verdes jardins sombrios e secretos cujo sussurro se funde no silêncio.

Nos quartos, cada qual com o seu conteúdo específico, a denunciar a sua funcionalidade e a personalidade dos que o habitam e respectivos gestos quotidianos.

Nesta Casa do Mar, nada é frívolo, todo o objecto tem a sua funcionalidade e é conjugado com um certo equilíbrio, dado por uma beleza simples e depurada. E pelo Saber. E pelo Amor.


Mas quem do quarto central avança pela varanda e vê, de frente, a praia, o céu, a areia, a luz e o ar, reconhece que nada ali é acaso mas sim fundamento, que este é um lugar de exaltação e espanto onde o real emerge e mostra seu rosto e sua evidência.

(…)

E tudo parece intacto e total como se ali fosse o lugar que preserva em si a força nua do primeiro dia criado.

A casa é, pois, uma espécie de paraíso, refúgio, um lugar idílico onde tudo, até mesmo na sua mais pequena imperfeição, parece perfeito.


4. Saga


Tal como o nome indica, trata-se de uma estória baseada na construção de um projecto de vida de um homem empreendedor. Este homem, oriundo de uma sombria e brumosa ilha do Norte da Europa - a ilha de Vig, terra de Vikings e marinheiros - chega um dia ao Sul do mesmo continente, impelido pelo desejo compulsivo de cruzar os mares, contrariando o desejo da família, que não queria um filho marinheiro, farta de ver o Oceano a sacrificar os melhores homens da família.

Esta arrojada personagem é, muito provavelmente, inspirada no avô de Sophia, cujos antepassados seriam naturais da terra de Hans Christian Andersen.

O clima hostil, sombrio e algo selvagem da ilha de Vig, no mar do Norte, é apenas um dos muitos obstáculos que se deparam à frente do protagonista ao longo da vida, atravessando várias gerações da mesma família, o que confere à estória a característica de “saga. Trata-se, pois, do percurso de um jovem dinamarquês, Hans, o qual constrói o próprio império depois de se estabelecer numa cidade que, pela luminosidade, características dos edifícios, proximidade junto ao mar ou ao rio e pela relação com o comércio marítimo, poderia ser o Porto. Ali reconhecemos facilmente a descrição da Ribeira e os barcos que transportam o produto das vinhas ao longo do rio. Mas poderia também referir-se a uma outra cidade portuária na Europa, em Itália, ou no Sul de França, por exemplo.

Hans acaba por constituir família naquela cidade de luminosidade branda, por vezes sombria, mas sem esquecer as suas raízes no Norte da Europa. O spleen de Hans é típico de quem sofre a saudade crónica experimentada por todos aqueles que vivem no exílio, já que está proibido de voltar a casa. Hans é, a partir do momento da sua sedentarização no Sul, um marinheiro em terra, atracado ao mundo dos negócios, mas contaminado pela saudade. Trata-se de um homem que vive e morre no exílio, tal como um barco que naufraga em alto mar, sem jamais conseguir regressar a casa.

Mais uma vez há um espaço interior que é descrito como um lugar de refúgio e acolhimento, sendo destacado, tal como acontece nas estórias anteriores: a mansão onde se refugia Hans, após ter enriquecido e que é, em tudo, semelhante à Casa Vermelha, onde viveu a Autora com a sua família.

No final, encontramos um Hans cristalizado, aprisionado no tempo, à medida que os anos passam. O herói, descendente de vikings, congela os seus desejos mais ardentes no passado – reencontrar a família – acabando prisioneiro do próprio tempo, o mesmo receio que atormentava o filósofo alemão Martin Heidegger. Ao ser engolido pelo tempo, o desejo maior de Hans, voltar a ver os pais, torna-se intemporal, porque impossível de se concretizar numa vida terrena. Daí o naufrágio das expectativas. A História de uma vida, marcada por uma felicidade é ensombrada por nuvens de tempestade num mar cinzento e revolto...

5. Vila d'Arcos

No último conto desta mini-antologia, a Autora descreve-nos a tranquilidade aparente de uma pequena povoação do nordeste transmontano, onde o tempo parece ter parado. Onde tudo permanece imutável, sem acompanhar a evolução dos tempos ou sem ser afectada por esta. Os seus habitantes parecem como que isolados do mundo, facto que se encontra patente em todos os aspectos do quotidiano, desde a forma de trabalhar até ao vestuário das mulheres, aos rituais, à rotina, às fórmulas de devoção religiosa. Ali, nada perece mudar e tudo parece eterno:

É uma cidade antiga onde, estagnada, se desagrega e se dissolve (…) uma vida desvivida, gesto por gesto, sílaba por sílaba.

Uma cidade habitada por sibilas, vestidas de negro, vagueiam e tudo vêem, abarcando a vida de todos com o olhar. Uma povoação que se caracteriza como todo o Portugal rural do Norte: onde pululam verdes jardins, silêncios e perfumes da terra, conservando a essência do primitivismo, algo medieval, do lugar. E onde as fachadas das casas e as janelas têm – todas elas – olhos vigilantes.

Aqui parece pairar um sentimento dominante de irrealidade, ampliada pelo isolamento face ao ruído do longínquo mundo urbano. Mais um refúgio aparentemente perfeito. Mas tal como no conto O Silêncio existe, também, o reverso da medalha. Aqui há:

Jardins onde reconhecem que a vida é um sonho do qual jamais acordamos, mas onde tudo se transforma em esquecimento, distância, impossibilidade e detrito. Jardins onde reconhecemos que a nossa condição é não saber. É não poder jamais encontrar a unidade. É encontrar a unidade sem acordar.

Esta é, ao que tudo indica, a estória que descreve a alma de uma Eva para quem os limites do Paraíso serão sempre as grades de uma prisão.

Cláudia de Sousa Dias

30.05.2011

Tuesday, February 07, 2012

“Grandes Esperanças” de Charles Dickens (publicações Europa-América)







Tradução de Carmen Gonzalez


Charles Dickens foi o mais popular dos romancistas no período vitoriano, fazendo-se notar pelo impressionante talento literário e pela escrita de pendor humanista, inspirado nos ideais de Jean-Jacques Rousseau e influenciado, em larga medida, pelo seu contemporâneo, o escritor Victor Hugo. No entanto, Charles Dickens apresenta-se muito mais realista na construção das suas personagens, deixando de lado a idealização em que cai, muitas vezes o seu colega, em terras de França. No entanto, ambos partilham da ideia de que o homem nasce ”puro” de ideias – a teoria do “bom selvagem” de JJR – e de que é a sociedade que o corrompe, ideia que pode ser encontrada no na força motriz que impele o desenvolvimento da trama do romance de que aqui tratamos, sobretudo na cena em que Pip e Miss Havisham discutem o carácter de Estella, onde Pip defende que “mais valia deixar evoluir o carácter da jovem ao invés de moldá-la de forma a torná-la num monstro de frieza”. Trata-se de uma concepção do Homem que se opõe à ideia do “criminoso nato” defendida na altura pela escola de criminologia e pelos seguidores das teses do médico italiano Césare Lombroso, salientando a ênfase do contexto social como agente modulador da personalidade.
A obra tem em si muito de autobiográfico já que Dickens, tal como Pip, foi durante parte da sua adolescência obrigado a trabalhar duramente – dos doze aos quinze anos – facto que influenciou largamente a sua concepção do mundo e da sociedade. Dickens teceu fortes críticas à forma como era, então, explorado o trabalho infantil, durante a segunda fase da Revolução Industrial na Inglaterra do sec. XIX, tornando-se um profundo conhecedor da realidade operária do seu tempo e no seu país. Aos quinze anos, torna-se ajudante de notário e aprende estenografia. Aposta fortemente na própria educação, antes de se tornar escritor, em 1834, aos vinte e dois anos, precisamente a idade da emancipação de Philip Pirrip – Pip. 
Do autor, dizem-no herdeiro do pensamento idealista e do romance sentimental, mas o teor do texto é marcadamente psicológico, ou melhor, psicanalítico. O narrador – Pip adulto – tenta recriar a visão do mundo e da pessoas com os olhos da criança que foi, embora temperada pela capacidade de distanciamento e discernimento de um homem adulto. Grandes Esperanças é, simultaneamente, um livro de denuncia de inquitações sociais, primando pela exposição crua de situações de desumanidade, desigualdade ou falta de ética.
A beleza do romance está contida na forma pungente como Pip perde a inocência, mas sem se deixar contaminar pela maldade. Dickens acreditava que “uma natureza tendencialmente boa se desenvolve quando é amada”. É por esse motivo que Pip, apesar dos maus tratos de Georgiana, do desprezo de Estella e da perfídia de Miss Havisham, não deixa de irradiar uma persistente bondade natural, uma vez que é amado incondicionalmente por Joe e por Biddy, a preceptora e enfermeira da irmã, que mais, tarde, se torna sua madrasta. É, também, estimado pelos amigos, Wemmick e Pocket.

Violência Doméstica

Georgiana foi uma mulher que, até à altura do ataque de que foi alvo, sempre se deixava levar, ao contrário de Joe e Pip, pelo rancor e pela frustração devido às circunstâncias de viver em permanente situação de pobreza, aproveitando o ensejo de educar Pip com “mão firme” e colocar o marido “na linha” e, assim, descarregar a própria raiva nos seres mais frágeis: precisamente Pip e Joe. Ironicamente, é através da voz de Pip, que o Autor descreve com bonomia e sentido de humor, o ambiente doméstico e familiar que marca a infância do protagonista, caracterizado pelo acentuado clima de violência  exercida sobre os elementos masculinos do agregado, por parte de uma matriarca dependente do álcool que usa de chantagem emocional de forma a manipular os habitantes da casa, para além de recorrer a constantes ameaças de agressão física.

A figura do condenado
Tal como em Os Miseráveis de Victor Hugo, uma das figuras centrais deste livro é um condenado às galés. Mas será só na terceira parte do romance que saberemos a real posição que este ocupa na trama. Magwitch faz uma breve e terrífica aparição no início do romance, no cemitério, surgindo envolto em névoa, como uma alma do outro mundo, num cenário onde dominam as sombras e as cores sombrias e os contornos da realidade não aparecem definidos.

Na primeira parte do romance temos várias personagens a frequentar a casa de Joe, como o Sr. Woopsle, o sacristão que deseja ser actor, o qual é responsável por alguns dos momentos mais cómicos da narrativa; Hubble, o carpinteiro; o já mencionado Mr. Pumblechook, um untuoso negociante de cereais, dono de um armazém de secos e molhados, que introduz Pip na casa Satis, apenas com o objectivo de agradar a Miss Havisham e não exactamente por se preocupar com o futuro de Pip como quer dar a entender.

A Casa Satis
Pip só começa a frequentar a casa de Miss Havisham porque esta deseja um criado que brinque com a filha adoptiva e lhe sirva, ao mesmo tempo de cobaia. Miss Havisham, magoada com o abandono do noivo, deseja criar uma filha que lhe sirva o propósito de se vingar do género masculino, transformando-a numa harpia, treinada para maltratar todos os homens que se apaixonarem por ela. Ao criar esta espécie de louva-a-deus em forma de mulher, Miss Havisham está a prolongar a própria vingança para a posteridade, prolongando-a para além da própria morte. Trata-se de uma personagem movida pelo ódio, apesar da aparente amabilidade para com Pip, o pequeno pássaro que pretende lançar à serpente. Em casa de Miss Havisham todos os relógios pararam na hora exacta em que devia ter ocorrido o seu casamento: uma tentativa de estancar o fluxo do tempo e da memória, conservando, também, intacto, o mesmo ódio, mumificando a própria vida.
Logo no primeiro encontro com Estella, Pip descobre uma criatura de desmedida beleza, mas insuportável de tanto orgulho e altivez, que se empenha em ostentar o desprezo em relação à condição social de Pip. Este encontro é de extrema importância para o crescimento do jovem, uma vez que é precisamente a altura em que Pip toma consciência da desigualdade social e da barreira intransponível que o impede de conseguir o amor da mulher-menina a quem pretende cativar. O sofrimento causado por esta desigualdade não o faz, no entanto desistir do que deseja. Secretamente, alimentará …grandes esperanças.
O clima emocional deprimente na casa Havisham e o constante desprezo de Estella desenvolvem em Pip uma ansiedade permanente sem contudo ser totalmente destituída de esperança. Pip nunca chega a ser completamente feliz na casa Satis. Mas será ali que conhece aquele que será, mais tarde, o seu grande amigo, Herbert Pocket.

Miss Havisham é uma dama sinistra que destila maldade, indiferente ao facto de causar ou não sofrimento nos outros. Está apenas interessada em expulsar o tédio da casa, na qual a luz do sol está impedida de entrar e obcecada pelo prazer de manietar ambas as crianças. A luz solar adquire, aqui, a simbologia da bondade, pelas propriedades anti-depressivas e causadoras do bem-estar, em oposição ao gelo do Inverno e em associação à vitalidade estival. A luz solar está, também, conotada com a lucidez, simbolizando uma personalidade saudável e optimista.

Através de nova intervenção de Pumblechoock, que um dia decide levar Pip ao advogado Jaggers,o mesmo Pip é informado de que existe uma avultada herança de alguém de identidade desconhecida, em favor de Pip. Todos julgam tratar-se de Miss Havisham a identidade do misterioso benfeitor, uma suspeita alimentada pelo facto de Jaggers ser também advogado da terrível senhora de Satis... Trata-se de mais uma mudança que se reflecte no quotidiano da família e um ponto de viragem na trama: Pip muda-se para Londres para estudar e, a partir daí, começa a abrir-se um fosso, um inexorável abismo social entre Pip e os seus parentes...

Na segunda parte, o cenário muda. A acção passa-se em Londres entre o escritório, onde trabalha Pip, o quarto onde vive e o relacionamento com os colegas de trabalho e estudos, fora do local de trabalho. A tomada de consciência de Pip, tocante à perspectiva de receber uma herança, marca o primeiro volte-face no curso do romance. A ascensão social já não é impossível e a mão de Estella parece, no entender de Pip, já não estar tão longe.
Pip trava conhecimento com os colegas de escritório de Mr. Jaggers, conhecido advogado criminalista. Ali, é estabelecida em pouco tempo toda uma rede de simpatias e antipatias entre os aprendizes de Jaggers.
Não deixa de ser irónico e intencional por parte do autor que o elemento com o qual todos antipatizam, o carácter mais duvidoso, seja precisamente aquele com quem Estella acaba por casar.

Herbert Pocket, a quem Pip teria conhecido em casa de Miss havisham, é um jovem ingénuo, porém bastante inteligente, gerador de consensos, honesto mas com pouca autoconfiança. Dá lições de etiqueta a Pip com grande sentido de diplomacia. É em casa da família de Pocket que assistimos a um dos episódios de maior tensão no romance, apesar de narrado com uma intensa tonalidade discursiva de humor negro: em casa dos pais de Pocket, durante um piquenique ocorre um perfeito filme de terror durante o qual as crianças mais pequenas estão permanentemente expostas a uma situação de perigo, fruto da superficialidade e negligência maternas e alguma permissividade por parte do pai.

Em casa de Wemmick , onde Pip vai passar um fim-de-semana, passa-se algo completamente diferente: a dedicação do jovem ao pai, inválido, chega a ser comovente e a discrição do jovem face aos bens de raiz da família torna-o simpático aos olhos do leitor, assim como o facto de disfarçar uma profunda sensibilidade, oculta pelo profissionalismo exibido no escritório, denuncia uma forte necessidade de manter as emoções sob controlo de forma a proteger a própria privacidade: afinal, Jaggers exerce o poder à custa dos segredos e da vida pessoal daqueles que com ele trabalham, sejam eles clientes ou funcionários. Jaggers é alguém habituado a manipular os outros. Tem todos os conhecidos na mão, pois conhece-lhes os segredos.
Ainda durante um convívio em casa de Wemmick , Pip observa a noiva do amigo, reparando numa certa cumplicidade discreta, também, entre ambos. O noivo, sem dar a entender o teor do relacionamento entre os dois, trata-a algo possessivamente, colocando-lhe a mão no ombro ou rodeando-lhe a cintura. Pip só se apercebe da intimidade de ambos quando repara que bebem pelo mesmo copo. A apreciação do detalhe comportamental em termos de atitudes não verbais é outro dos aspectos com que o Autor nos delicia neste romance, a começar a sair do Romantismo e a entrar no Realismo.
Ainda nesta segunda parte, percebemos que o Amor não é imune ao Tempo. A meio do romance, já se percebe que, no momento em que o narrador está a contar a estória, Estella já faz parte do passado. Pip é um narrador omnisciente, porque está para além do tempo em que se passa a acção e está, já, na posse de todos os detalhes que compõem a trama, permitindo-lhe uma interpretação lúcida da realidade. Do Romantismo, vêm ainda os ambientes e cenários macabros como o cemitério, o ar fúnebre da casa Satis, o vento de aspecto fantasmal que envolve o cenário do reencontro entre Pip e o condenado da primeira parte, assinalando o fecho da segunda parte do romance.

Na terceira parte, iremos descobrir as ligações mais insuspeitas entre diversas personagens. Isto apesar de o Autor nos ter já fornecido alguns indícios, para nós insuspeitos, em episódios anteriores, como o pormenor das mãos de Molly, durante um jantar em casa de Jaggers, a forma como Magwitch trata Pip na taberna; o pormenor mais curioso é a ligação entre o desvendar da identidade do benfeitor de Pip e as origens de Estella. Os grandes vilões são desmascarados e tudo perece contribuir para um desenlace feliz…
A personagem Estella revela-se uma personagem modelada, cheia de cmbiantes, que se vai modificando à medida que os acontecimentos se processam, sobretudo na recta final do romance. Estella é uma jovem inteligente para além de bela, mas a falta de afecto na infância e a manipulação de Miss Havisham, tornaram a Estella adulta incapaz de empatia com o sofrimento alheio.
O romance acaba na verdade com dois casamentos ou dois finais felizes para os pares românticos secundários: o de Wemmick e Miss Shiffrin e o de Herbert com a bela e frágil Clara. É notório que o autor valoriza as personagens que cuidam de pais enfermos ou envelhecidos, reflectindo a preocupação social com a assistência à velhice, que a Revolução Industrial trouxe a lume.
Há também o casamento, mais do que esperado entre Joe e Biddy, consolidado pelo aumento da família e pela reaproximação de Pip e aqueles que o amam.
Estella e Pip ultrapassam divergências mas ficam sós, arrastando uma sólida amizade que se prolonga no tempo.
A estória de Pip é a da conquista do amor-próprio, em cujo espelho invertido se observa o depojamento do orgulho de Estella que a prejudicava socialmente impelindo-a para dois casamentos infelizes…
Miss Havisham tem o mesmo destino das bruxas dos contos de fadas, isto é, morre, vítima da própria maldade e do remorso, depois de tomar consciência da crueldade a que submeteu os dois jovens.

O autor serve-se, ainda, da personagem dúbia que é Jaggers para chamar a atenção para o destino das crianças excluídas, expostas a um elevado nível de risco social e à criminalidade para justificar o ter colocado Estella sob a alçada de Miss Havisham.
Já nas últimas páginas do romance, somos surpreendidos por uma cena de maldade aterradora protagonizada por um dos piores vilões do romance.

Grandes esperanças foi publicado pela primeira vez em 1860-1861, tratando-se de uma das melhores obras de sempre deste Autor. Foi aclamada pela crítica como “uma obra poderosa e violenta” e classificada como “um drama do qual não está ausente a sátira e o humor.
Grandes esperanças acaba também por ser um pouco um romance policial, onde só na recta final do desenvolvimento da trama, conseguimos descobrir a verdadeira identidade do benfeitor de PIP e, também a do assassino da irmã do protagonista, Georgiana.
O leitor é habilmente conduzido pela memória de um Philip Pirrip adulto, o qual evoca com uma nitidez impressionante as emoções da infância, antes de ser introduzido na mansão de Miss Havisham pela mão do “tio” Pumblechoock.
É através do fio de Ariadne da memória de Pip adulto, filtrada pela lucidez da passagem das areias do Tempo, que o leitor assiste ao devanear das “grandes esperanças” do jovem Pip, ao processo de construção da própria identidade e ao amadurecimento, pela forma como se coloca diante das relações de amor e de amizade.

Uma obra-prima de um grande Autor da Literatura Universal.


Cláudia de Sousa dias

(28.05.2011)

Wednesday, February 01, 2012

“O Desejo” de Safo (Teorema)





imagem retirada daqui:



Tradução de Serafim Ferreira

Safo e o Desejo. Safo e o Amor. Os termos fundem-se (se é que alguma vez estiveram separados) quando lemos os poemas da poetisa de Mitilene, a primeira e mais difundida autora de poesia da Antiguidade Clássica, cujos escritos chegaram até nós e cuja qualidade estética, presente na sua obra, a colocam, indiscutivelmente, na categoria de produtora de Arte. Os seus escritos foram compilados e reunidos em nove volumes, depositados na desaparecida Biblioteca de Alexandria, dos quais hoje só resta uma pequena parte.
O Desejo e o Amor são a temática central abrangendo todos os tipos de Amor, em todas as suas manifestações: desde o Eros (o desejo físico violento) ao Agapê (o amor sublimado dentro da conjugalidade), passando pelo filial ou fraternal (filia). Todos eles estão contidos na poesia de Safo, contrariamente àquilo que o título sugere e, levado à letra, nos poderia fazer pensar somente no amor ligado ao erotismo. Em O Desejo, estão também contidos os ódios, relacionados com o despeito, os rancores e as mágoas, todos eles filhos transgienizados do Amor, ou do Desejo, e por isso mesmo, de certa forma, vinculados a Afrodite mas de forma invertida, tal como a imagem simétrica num espelho.
Os primeiros poemas reunidos nesta edição são constituídos por fragmentos, nos quais a Poeta descreve  sintomas de paixão, a qual identifica como uma febre, súbita e inesperada, que prostra o sujeito, durante algum tempo e depois se desvanece (aqui refere-se ao eros ou o desejo, o tema central da obra).
O Desejo é o servo da astuta Afrodite”.
O principal defeito desta Edição será, talvez, o de não se apresentar na forma bilingue, uma vez que, com a tradução, desaparecem a maior parte dos jogos semânticos, assim como a musicalidade conferida pela métrica sáfica, conjugada com repetições periódicas e alternância entre sílabas longas e breves na língua grega.
Na escrita de Safo, estão também presentes desabafos, divagações e pensamentos que se transformam numa quase narrativa, tal como acontece no canto a Átis - uma jovem a quem é dedicado um amor não correspondido e que ama, por sua vez, um jovem, "belo como um deus".

No capítulo intitulado “As Deusas”, encontramos a sublimidade numa bela e comovente oração a Afrodite que se desdobra num diálogo entre o sujeito poético e a Deusa, podendo facilmente identificar-se as duas vozes facilmente distinguíveis no diálogo: a humana e a divina. Na primeira, inflamada, domina-a o desespero e o pânico, diante da indiferença do ser amado, criando um forte contraste face à compaixão e à condescendência demonstrados pela Deusa, invulnerável, envolta no manto da imortalidade conferida pelo amor que lhe dedicam os humanos, mesmo quando nela não acreditam ou quando lhe atribuem outro nome.

A este contraste entre a benevolência da Deusa opõe-se ao ciúme e ao despeito, exibidos pela voz da narradora, quando pede a Afrodite que a amada não volte “a gozar de novo de um perfeito amor”, que é o mesmo que implorar para que ela própria não seja esquecida, apagada da memória do objecto amado, emoções que são alvo da simpatia de Afrodite.
O Amor e a Perda estão presentes no capítulo “Trocas” durante o qual a Poeta propõe um acordo com a Deusa: “a vida pela morte e a eterna convivência com o amor”.

Em “Intimidades” a Poeta faz confidências acerca dos sentimentos mais pessoais como a adoração pela filha,

lindíssima Cleis ()(1)
A quem não entregaria
a ninguém
nem por todo
o oiro da Lídia”.

Já nos “AforismosSafo deixa entrever os diferentes estados de alma, partindo duma atitude contemplativa, ao servir-se da natureza de inspiração para o amor.
Outras vezes, é o espectro da velhice que assoma ao pensamento da narradora, fruto de uma contradição que se estabelece entre um corpo no qual se esvaem as forças e uma alma onde continua a arder o Desejo, a despeito da juventude, a qual se volatiliza deixando, em seu lugar, a ausência da beleza que a torna o sujeito invisível, ao mesmo tempo que ergue muros da indiferença e desvia os olhos do desejo alheio para outras direcções…

Na descrição de cenas do “Quotidiano” a poeta canta a beleza dourada dos loiros, quando adornados de púrpura e o ritual da toillette feminina. As cenas do quotidiano, assumem a forma de breves descrições, registadas em frases curtas assemelhando-se a pequenos flashes, breves momentos do dia-a-dia, sob a forma de apontamentos ou pequenas notas.

No capítulo intitulado de “Os Outros” a Poeta descreve o epílogo de algumas relações do passado, tais como o destino da bela Átis, ao recordar com nostalgia e alguma saudade o encanto da jovem grega, cuja beleza triunfa na Lídia. A narradora fala, ainda, das amantes, discípulas da escola que dirigia em Mitilene.

Mas nem só de boa vontade vive a alma humana. E os Gregos tinham destas coisas. Exaltavam tanto os defeitos como as virtudes. Sobretudo nos seus deuses, que eram tão só o reflexo ou a projecção do sentir humano. No capítulo “Inimigos” encontramos a traição o despeito e o orgulho, sendo este último motivado pelo facto de se sentir preterida por uma mulher a quem considera inferior a si mesma.
A maledicência também faz parte dos dotes desta Safo, cujo requinte atinge a forma de arte na expressão do mais violento desprezo que vota àqueles a quem detesta.

As mulheres de Polianactides
dedilham as cordas da suas lira
com um falo artificial…”

...em alusão à grosseria das suas produções musicais.

Em “Mitologia” estamos perante um conjunto de mini-narrativas, respeitantes a vários episódios das lendas clássicas, relatados num tom épico, eivado de lirismo, numa escrita descritiva mas depurada, sem floreados.

Em “Peças de Encomenda”, encontramos breves trechos que são pedidos à Poeta, feitos à medida, para ocasiões específicas como casamentos, funerais, celebrações, rituais religiosos – ou momentos marcantes que sublinhavam o ritmo de vida dos Gregos. Nestes trechos é cantado, também, o Amor heterossexual, subjacente ao casamento e como contraponto, a volúpia das relações extra-conjugais de ambos os sexos, que cedem lugar a um amor, total e recíproco, dedicado, a partir de então, a uma só pessoa. Um amor sublime que deverá tornar-se único. De onde se entrevê a forma como a Poeta encara o amor: o contrário de um acordo, realizado entre famílias, tendo por objecto interesses económicos ou políticos e que nunca poderia caber dentro dos limites de um gineceu (e que provavelmente norteou o relacionamento da Autora com o Poeta Alceu, pelo menos durante o tempo em durou a paixão entre ambos) – um amor entre dois seres autónomos e independentes, pautado por uma relação de cumplicidade e paridade, sem jogos de poder. Uma utopia que perseguiu durante toda a sua existência. Na voz da Poeta sobressai, neste cântico nupcial, a importância de um amor ideal, único, baseado numa identificação quase total onde a liberdade de movimentos não poderá estar ausente. O cântico termina com a exortação aos noivos entoada pelo coro nupcial.
Os elogios fúnebres, incluídos também nestas “Peças de encomenda”, parecem ter como objecto integrar inscrições lapidares, como aquela destinada à jovem Timos(1), morta antes do casamento ou do jovem pescador adolescente, Pelagos (1).

Em “Natureza” estão presentes as descrições de vários elementos, numa poesia que coincide com a beleza elementar dos Haikus orientais. Deve-se, no entanto salientar que a poesia de Safo não foi originalmente concebida desta forma, uma vez que nos chega em estado fragmentário, pelo que a maior parte destes poemas faria parte de um texto poético de maiores dimensões. Mas a semelhança com a beleza das imagens e metáforas da poesia do extremo oriente é marcante, apesar da distância geográfica e da impossibilidade de haver, na altura, um contacto (a não ser remoto) entre ambas as civilizações, de forma a possibilitar a troca de elementos literários a este nível. A poesia de Safo vem assim demonstrar o carácter universal da sensibilidade a uma beleza de contornos puros, arquetípica.

Quando a Lua se torna clara
ilumina a terra
e as estrelas em seu redor perdem o seu brilho”.

Uma metáfora dirigida a uma jovem, provavelmente à filha, Cleis(1).
Na secção “Cenas da vida descobrimos pequenas frases/aforismos que pintam quadros respeitantes não já ao quotidiano doméstico, mas relativos à vida de uma pequena comunidade onde se movimenta a Poeta, descrevendo tradições, rituais sagrados relacionados com o ciclo das estações do ano, com as colheitas, traduzidas em cerimónias religiosas. Por exemplo:

Outrora, os cretenses dançavam em ritmo
à volta de um altar deslumbrante
e esmagavam com os pés
delicadas flores tenras
e frágeis pedaços de erva”.

Aqui, mais uma vez, se entrevê uma metáfora onde se nota uma leve crítica a um tipo de sexualidade brutal sem respeito pelo corpo do ser a quem se deseja ou se possui, podendo identificar-se as “flores delicadas” com raparigas púberes e os “frágeis rebentos de erva” com jovens efebos.
As cenas que compõem este quotidiano encadeiam-se, de forma a constituir um todo, como a pintura de um fresco, no interior de um edifício, dando a sensação de estarmos perante um quadro vivo, em que a sucessão dos diversos momentos confere a sensação de movimento.
Por último, em “Moral” são reunidos um conjunto de provérbios ou epígrafes, ou pelos menos àquilo que parece restar, a partir de poemas mais vastos originalmente compostos, e cujo conteúdo de foi perdendo ao longo dos séculos, (esperemos que um dia a ciência possa recuperar a bibliotecas incendiadas a partir das cinzas e museus destruídos pelos bombardeamentos) onde se chama a atenção para a necessidade de se observar uma moralidade pós-convencional, livre de pré-juízos e de estereótipos.

Por exemplo, “Um homem belo, só o é na aparência. O homem bom será igualmente belo.”
Ou ainda:
A morte é um mal. Foi assim que os deuses o entenderam; de contrário, seriam mortais”.

No entanto, parece que, no tocante à (i) mortalidade nas mulheres da Antiguidade Clássica, os mesmos deuses parecem ter decidido abrir uma excepção para Safo.


(1) A grafia utilizada é a mesma utilizada pelo tradutor, embora em Português por norma se utilize Cleia ou Clea para Cleis, Tima (para o género femininlivro_161363033_1_490_tn.jpgo) em vez de Timo e Pélagon em vez de Pelagos.

Cláudia de Sousa Dias
Artigo publicado originalmente em Outubro de 2009 no site Orgialieraria


Nota: Os meus agradecimentos a Tatiana Faia pela revisão ao meu texto e pela explicação quanto à acentuação, à grafia grega, à métrica utilizada, à alternância entre sílabas longas e breves e, também, à clarificação relativa a alguns aspectos relacionados com as diferentes manifestações do amor, na visão dos poetas da Antiguidade Clássica.